Arte Comentada
Arte Comentada
Atena Editora
2019
Jeanine Mafra Migliorini
(Organizadora)
2019 by Atena Editora
Copyright da Atena Editora
Editora Chefe: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira
Diagramação e Edição de Arte: Geraldo Alves e Lorena Prestes
Revisão: Os autores
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
A786 Arte comentada [recurso eletrônico] / Organizadora Jeanine Mafra
Migliorini. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. – (Arte
Comentada; v.1)
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Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-057-5
DOI 10.22533/at.ed.575191801
1. Arte – Crítica e interpretação. 2. Arte – Filosofia. I. Migliorini,
Jeanine Mafra. II. Série.
CDD 707
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de
responsabilidade exclusiva dos autores.
2019
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www.atenaeditora.com.br
APRESENTAÇÃO
Arte é um vocábulo carregado de significado, em cima dele existem muitos
discursos, ao mesmo tempo que abre leques de possibilidades de entendimento,
restringe a compreensão por parte da maioria. Afinal sempre procuramos a resposta
certa, fechada, para as questões, e isso não será encontrado na arte. Existem sim
conceitos e respostas para ela, mas não um único significado, são caminhos que nos
levam a reflexões que enriquecem ainda mais esse discurso.
O que é arte? Este é um questionamento que perpassa os séculos e mantêm-
se atual, afinal arte é reflexo da sociedade, que está em constante mudança. Arte
é resultado da sociedade, e por isso se ressignifica, muda de sentido e de função.
Neste momento histórico muitas linguagens artísticas se apresentam como forma de
expressão, novas formas de arte que trazem à tona representações, questionamentos,
ampliam a abrangência e muitas vezes desmistificam que a arte se volta apenas para
uma elite a que ela tem acesso.
Outra grande influência na arte é a própria tecnologia, que além de possibilitar
novas linguagens auxiliam na propagação da produção artística atual e histórica.
O acesso a arte se torna mais possível, e esse conhecimento cria novos artistas,
permitindo assim um círculo virtuoso de produção e conhecimento.
Apresentam-se aqui discussões acerca da arte nas suas mais variadas
linguagens, e sua compreensão: a arte é única e individual, seu entendimento depende
do repertório, da vivência de cada um, e esses múltiplos olhares complementam a
obra.
Discute-se a função social da arte, seu papel como crítica social e o impacto
dessa crítica, e apresenta a necessidade de se classificar essas linguagens, como se
faz nas ciências exatas. Esse universo amplo permite que se englobem as discussões
sobre os sons da cidade, as performances, a dança, as imagens. Percorrendo este
caminho chega o momento de o cinema entrar neste debate, além dos movimentos
coletivos de arte, finalizando com a imagem, uma vasta discussão sobre suas funções,
sua estética, sua função.
Tão ampla como a temática deste livro, essa discussão não se encerra, ela
busca respostas e novos caminhos de que podem ser seguidos por pesquisadores,
curiosos, estudantes. Quem mergulha neste universo em busca de respostas, acaba
encontrando mais perguntas.
Boa leitura! Trace seus caminhos, suas interpretações, suas impressões, e que
elas lhe proporcionem muitas reflexões!
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1.................................................................................................................7
JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO, ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO DO MUNDO.
Sandra Makowiecky
DOI 10.22533/at.ed.5751918011
CAPÍTULO 2...............................................................................................................20
COLETIVO ANDORINHA: UM ANO DE EXISTÊNCIA, DE RESISTÊNCIA, DE POLÍTICA, DE ARTE,
DE EDUCAÇÃO
Samara Azevedo de Souza
DOI 10.22533/at.ed.5751918012
CAPÍTULO 3...............................................................................................................28
AS ARTISTAS NO INÍCIO DO SÉCULO NO RIO GRANDE DO SUL E A CRÍTICA DE ARTE
Ursula Rosa da Silva
DOI 10.22533/at.ed.5751918013
CAPÍTULO 4...............................................................................................................29
TANTO FAZ SE É PERFORMANCE OU NÃO
Natasha de Albuquerque
Maria Beatriz de Medeiros
DOI 10.22533/at.ed.5751918014
CAPÍTULO 5...............................................................................................................41
ENTRE JANELAS E PESSOAS: EM BUSCA DE UMA ESCUTA CITADINA
Thais Rodrigues Oliveira Sainy Coelho
Borges Veloso
DOI 10.22533/at.ed.5751918015
CAPÍTULO 6...............................................................................................................55
A ARTE DO CORPO PERFORMÁTICO MEDIADO PELA TELA DO CINEMA DOCUMENTAL: AS
FORMAS-FENDAS DO OLHAR NA(DA) DANÇA
Cristiane Wosniak
DOI 10.22533/at.ed.5751918016
CAPÍTULO 7...............................................................................................................69
MEMÓRIA EM DIÁRIOS DE VIDEOGRAMAS – UM DIÁLOGO ENTRE A RETOMADA DE IMAGENS
DE ARQUIVO PROPOSTA POR JONAS MEKAS E HARUN FAROCKI
Guilherme Bento de Faria Lima
Monica Rodrigues Klemz
DOI 10.22533/at.ed.5751918017
CAPÍTULO 8...............................................................................................................80
“SOMBRAS DO PASSADO”: O PERDÃO EM BUSCA PELA VERDADE E RECONCILIAÇÃO
Alessandro Galletti
Ricardo Vilariço Ferreira Pinto
DOI 10.22533/at.ed.5751918018
CAPÍTULO 9...............................................................................................................94
DISPOSITIVO E COLETIVOS ARTÍSTICOS: UMA METODOLOGIA DE NARRAR O ENCONTRO
Lara Lima Satler
Lisandro Magalhães Nogueira
DOI 10.22533/at.ed.5751918019
CAPÍTULO 10...........................................................................................................109
PRODUÇÃO DE SENTIDOS E (RE) SIGNIFICAÇÃO NA HISTÓRIA A PARTIR DO MOVIMENTO
BLACKFACE
Daiany Bonácio
Giuliano Mattos
Viviane Dias Ennes
DOI 10.22533/at.ed.57519180110
CAPÍTULO 11...........................................................................................................125
DA LEMBRANÇA AO SONHO: ANÁLISE FÍLMICA DE “A DANÇA DA REALIDADE”, DE ALEJANDRO
JODOROWSKY.
Ana Carolina Ribeiro
DOI 10.22533/at.ed.57519180111
CAPÍTULO 12...........................................................................................................134
BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ONÍRICO, OU UMA PRIMEIRA IMERSÃO NAS IMAGENS
SEM LUZ
Carlos de Azambuja Rodrigues
DOI 10.22533/at.ed.57519180112
CAPÍTULO 13...........................................................................................................142
IMAGENS SENDO IMAGENS: REFLEXÕES DE UM CAMPO DE LUTA, RESISTÊNCIA E PODER.
Patrícia Quitero Rosenzweig
Rosa Maria Berardo
DOI 10.22533/at.ed.57519180113
CAPÍTULO 14...........................................................................................................158
QUESTÕES ESTÉTICAS DAS MÍDIAS: LATITUDES COMO EXEMPLO TRANSMIDIÁTICO
Vanessa de Cassia Witzki Colatusso.
DOI 10.22533/at.ed.57519180114
CAPÍTULO 15...........................................................................................................169
IMAGEM E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA A PARTIR DO ARQUIVO DO FOTÓGRAFO
PROFISSIONAL
Thiago Guimarães Azevedo
DOI 10.22533/at.ed.57519180115
CAPÍTULO 16...........................................................................................................177
OS PIONEIROS DA FOTOGRAFIA EM PONTA GROSSA: UMA ANÁLISE DO JORNAL O PROGRESSO
E CASA DA MEMÓRIA
Tais Maria Ferreira
Carlos Alberto de Souza
DOI 10.22533/at.ed.57519180116
SOBRE A ORGANIZADORA....................................................................................189
Arte Comentada Capítulo 1 7
CAPÍTULO 1
JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO,
ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO DO MUNDO1
Sandra Makowiecky
Universidade do Estado de Santa Catarina,
UDESC
Florianópolis – Santa Catarina
RESUMO: Em simpósio que se propõe
refletir sobre o tema “ Passado – presente: a
temporalidade heterogênea na história da arte”,
enfatiza-se que a história da arte tem buscado
novosmodelosdetemporalidade,poisaimagem
do tempo já não condiz com as ideias de origem
e linearidade provenientes do historicismo
positivista. As imagens não são apenas formas
da semelhança com a origem, mas sintomas da
dessemelhança e de transformações. Partindo
do entendimento do termo “janelas múltiplas”-
pontos de vistas diversificados em relação a uma
imagem e “imagens-fantasma”, descortinam-se
obras a partir do tema “janelas”, almejando um
exercício de entender o que obras em geral
podem pedir ao olhar. As imagens dialéticas
são autenticamente históricas, imagens não
arcaicas, que sobrevivem no presente de forma
diferente, carregando em si a prova, a latência
daquilo que um dia foi.
Palavras-chave: “Janelas Múltiplas”, “Imagens-
fantasma”, “Temporalidades heterogêneas”.
ABSTRACT: In a symposium that proposes
to reflect on the theme “Past - present: the
heterogeneous temporality in the history of
art”, it is emphasized that the history of art has
sought new models of temporality, since the
image of time no longer matches the ideas of
origin and linearity from positivist historicism.
Images are not only forms of resemblance to the
origin, but also symptoms of dissimilarity and
transformations. Based on the understanding of
the term “multiple windows” - diverse points of
view in relation to an image and “ghost images”,
works can be seen from the theme “windows”,
aiming at an exercise in understanding what
oeuvres in general can ask for the look.
Dialectical images are authentically historical,
non-archaic images, which survive in the present
in a different way, carrying in themselves the
proof, the latency of what once was.
 
KEYWORDS: term “multiple windows”; “ghost
images”; “heterogeneous temporality”.
1 | 	INTRODUÇÃO
O simpósio “ Passado – presente: a
temporalidade heterogênea na história da
arte”, busca pensar a história da arte sob
1( Artigo publicado nos anais do 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Campinas:
PUC- Campinas- Anpap 2017, 2017. v. 1. p. 2067-2083).
Arte Comentada Capítulo 1 8
a perspectiva de modelos temporais heterogêneos, entendendo que enquanto o
passado sobrevive no presente, o presente torna-se atemporal, anacrônico. Partindo
desses pressupostos e de dois conceitos principais, a saber, “ janelas múltiplas” e
“imagens-fantasma”, o texto buscará estabelecer possíveis constelações. Como diz
Didi-Huberman, saber e olhar não tem o mesmo modo de ser, nunca se vê o bastante,
sempre há uma integralidade que escapa da obra de arte, sempre resta algo a dizer,
fazendo com que a acumulação tranquila daquilo que se conhece ceda seu lugar ao
proliferante infinito (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 297 a 346).
2 | 	JANELAS MÚLTIPLAS
Georges Didi-Huberman emprega o termo “Janelas Múltiplas” para descrever
a condição do fazer histórico (DIDI-HUBERMAN, 2011a, p. 56), que descortina a
possibilidade de hipóteses e considerações sobre o passado como movimento em
obras de arte, devido ao transbordamento de referências históricas, artísticas e
mitológicas, visando “abarcar o visual e o temporal reunidos na imagem dialética” (DIDI-
HUBERMAN, 2011a, p. 21), que forma uma constelação de possibilidades, fazendo
que dos detalhes se produzam aparições, permitindo analogias infinitas segundo o
olho de quem vê. Borges, no livro “O fazedor” (BORGES, 2008), diz que o escritor
é como um ator que encena o texto de um autor outro, de tal modo que o principal
“ato” de um texto é repor os textos anteriores que foram decisivos para a existência
do seu. Vamos tentar fazer algo assim, considerando que o que veio antes, motiva a
escrever agora. Para Stéphane Huchet (2012, p. 11) “a teoria da arte contemporânea
não se concebe como uma atividade de predicação de seu objeto, isto é, de busca
de definições ou de confirmação das convenções estéticas e metodológicas”, mas
pensar por imagens, a partir de relações, principalmente com o passado e presente
histórico e artístico. Seguindo o mesmo raciocínio de Huchet, Hubert Damisch, em
uma entrevista, afirma que “o objeto teórico é um objeto que provoca outros objetos.
É um objeto que não pode ser estudado por si próprio. Para nos aproximarmos dele
é necessário referir outros objetos” (apud LEAL, 2007, p. 13). Não há finalidade de
usar a teoria como objeto motor de análise e sim o contrário, o objeto é a obra de
arte, porém a teoria é aquilo que faz com que a aproximação aos outros objetos se
componha. Em entrevista ( MORISAWA, 2012) sobre a 30ª Bienal de SP, o curador
Luis Pérez-Oramas afirma que fez uma curadoria baseada em constelações e
vínculos, em que partiu do princípio básico no legado moderno, sobre a compreensão
dos sistemas simbólicos, de que os signos, as formas simbólicas (e a arte é isso, para
além de todas as vanguardas) não têm significado em si mesmos a não ser quando
estão relacionados entre si e com outras formas, símbolos, estratégias expressivas.
Isso os levou a privilegiar os vínculos, as relações e os fez necessariamente falar de
constelações. Citou ainda Deleuze e Guattari, que dizem que se as obras de arte
Arte Comentada Capítulo 1 9
produzem sentido por relações, o destino delas é ser constelar, isto é, quando alguém
entra em contato com a obra, imediatamente pensa em outra. Ninguém olha para
ela sem criar relações. A pretensão deste texto não é criar modelos teóricos para
compreender o objeto, mas ser ajudado por uma abordagem de modo a construir
uma argumentação, como esboço daquilo que se tornou legível a partir de um detalhe
e que será escrito para fazer de um lampejo, uma propagação no contemporâneo.
Se uma imagem reúne em si vários tempos heterogêneos, não é possível fazer uma
história verdadeira da história das imagens, e por isso, qualquer determinação de
significado será uma montagem interpretativa, constituinte de uma memória histórica
de um arquivo complexo de um indivíduo. Estas imagens só podem ser vistas quando
há um tensionamento entre os indícios que buscamos, de modo a construir tramas
quando avistamos os fantasmas que habitam as imagens, partindo da premissa de
consciência sobre o uso do anacronismo, evitando cair em uma espécie de relativismo,
perigo iminente, onde tudo pode ser e tudo é válido.
As imagens, muito antes de serem portadoras de história, foram e continuam sendo
portadoras de memória. Interrogando a ideia de que nelas cabem apenas os
enquadramentos cronológicos, reconhece seu poder de ultrapassar as molduras
de uma época, permitindo novas configurações e proximidades empáticas. (DIDI-
HUBERMAN apud ROMERO, 2007)
Trata-se de entender a imagem como noção operatória que diz respeito a
procedimentos que se metamorfoseiam e persistem na contemporaneidade. É na
imagem como noção operatória e não como mero suporte iconográfico, que aparecem
as sobrevivências, anacrônicas, atemporais, memórias enterradas e que ressurgem.
Para Didi-Huberman, em “ Imagens apesar de tudo” ( 2012, p.131-146), o arquivo
é sempre “uma história em construção”, pois a cada nova descoberta aparece nele
como uma “brecha na história concebida”, uma singularidade que o investigador vai
unir com tudo o que já sabe para possivelmente produzir uma história repensada
do acontecimento em questão e deve ser sempre elaborado mediante recortes
incessantes, mediante uma montagem cruzada com outros arquivos.
3 | 	“IMAGENS- FANTASMAS”
Podemos dizer que de acordo com Warburg e Didi- Huberman, são aquelas
imagens que nos assombram, que nos tiram o chão,  que nos levam a querer entender
um pouco mais da arte e de nós mesmos, de nossas pesquisas.  Um leitmotiv imagético
(  figura de repetição, no decurso de uma obra literária, de determinado tema, a qual
envolve uma significação especial), se for o caso. Nossas imagens fantasmas podem
ser nossas ausências que resultam dos entrevistos, dos vistos há muito tempo, dos
sugeridos, dos quase perdidos. E que ficam ali, à espera de uma redenção. O ausente
nos remete às oportunidades renegadas e às batalhas ainda não travadas. Este artigo
investe nas amplas possibilidades da latência, das lacunas. Em La Imagem Mariposa,
Arte Comentada Capítulo 1 10
Didi- Huberman (2007), considera os objetos na medida em que se apresentam, mas
também pelo que neles se ausenta. Pois aquilo que falta suscita na imaginação uma
permanência justamente pelo fato de ter desaparecido e pode então retornar mais uma
vez e incessantemente num outro tempo. É esse o fascínio da imagem, cuja fixação
passageira de uma aparição se torna reincidente e marca uma temporalidade feita de
golpes inesperados e de contragolpes infindáveis. Quando se põe em jogo o não-saber
dasimagens,ostemposseconfundemeopassadoirrompenopresente,impregnando-o
em cada instante, como numa possessão. Estar sob o domínio das imagens é entregar-
se ao fascínio da ausência de tempo, que como nos esclarece Blanchot ( 2011), é
“sem presente” e não nos devolve a um passado pura e simplesmente. Ainda que a
ação passada sobreviva na lembrança e seja possível invocá-la livremente no agora,
o que é “sem presente” não aceita a atualidade de tal lembrança, pois nele nada
se afirma, uma vez que tudo está entregue à indeterminação que dilui as fronteiras
entre os opostos, fazendo do presente algo inatual, inscrito no ritmo eterno de um
retorno ( BLANCHOT, 2011). Como conclui o autor, o que se manifesta nesse tempo
“vem como já e sempre passado”. Ao aparecer, a imagem modifica completamente a
temporalidade na qual se apresenta, pois seu sempre presente sem presença é inatual,
é da ordem do retorno. É sem tempo na medida em que é, mas cuja presença abre o
agora ao indeterminado. No tempo do fascínio, estamos submetidos aos poderes da
imagem, aos tremores que pela distância nos seduzem e nos deslocam sempre para
fora – e sempre dentro desse fora – na oscilação sem fim entre presença e ausência.
A esse respeito, nos pergunta Blanchot: o que acontece “quando o que se vê, ainda
que à distância, parece tocar-nos mediante um contato empolgante, quando ver é um
contato à distância?” Precisamente nessa distância, nos adverte o escritor, ocorre a
paixão da imagem. Pelo fascínio, a presença fantasmática da imagem nos possui de
tal forma que nosso olhar encontra aquilo que o impede de jamais terminar, como um
clarão neutro que não se apaga. Movimento incessante de quem navega das margens
ao infinito do impensado, na torrente do imaginário, criando aberturas dentro e fora do
espaço da arte ( RODRIGUES, 2016, p. 68). Dizer agora “era uma vez um fantasma, a
imagem” significa não desprezar por completo a semelhança e a representação, mas
jogar com elas pela diferença que pode ser produzida, pela apresentação da imagem
e, sobretudo, pela possibilidade de pensar seus intervalos. “ [...] A imagem é pouca
coisa: resto ou fissura. Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível
ou legível (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.86-7). No texto Quando as imagens tocam o
real (2012), Didi- Huberman, atravessando os postulados de Aby Warburg e Walter
Benjamin, entre outros, argumenta que a imagem não é um simples corte praticado no
mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo
que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos,
heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar.
Arte Comentada Capítulo 1 11
4 | 	AS IMAGENS
O que motivou este artigo? Justamente umas imagens vistas no ano de 2007, na
Itália e outras em 2014, na França, que remeteram em lembrança, às de 2007. Já se
passaram dez anos das primeiras e elas me perseguem, como imagens fantasmas. As
primeiras imagens se encontram no monumental Mosteiro de Pavia, a segunda, em
Roma, ambas na Itália e as terceiras, em Bourges, na França . Em Pavia, tratam-se de
dois cartuxos em vestes brancas pintados em afrescos, pendurados nas janelas a olhar,
ao que parece, com serena indiferença os visitantes dentro do templo: um no corredor
esquerdo pela segunda bifora ( bifora é um tipo de janela dividida verticalmente em duas
partes, característica da arquitetura gótica),ooutronocorredordadireitapelasextabifora.
Certosa di Pavia é um mosteiro de Cartuxos, em Pavia, na Lombardia, Itália. Fundado
em 1396, este enorme complexo teve os trabalhos interrompidos entre 1402 e 1412 e
continuou a renovar-se até 1782. Durante todo esse tempo pode ser constantemente
enriquecido constituindo um testemunho histórico da região, como o demonstra a rica
ornamentação dos dois claustros, assim como a construção da igreja terminada em
1473, quando se iniciou a decoração da fachada com mármore, o que demorou mais
de um século e inúmeras alterações do projeto (Fig. 1a e 1b). A Ordem dos Cartuxos,
também chamada de  Ordem de São Bruno, é uma  ordem religiosa  católica  semi-
eremítica de clausura monástica e de orientação puramente contemplativa surgida
no século XI. É conhecida como aquela que professa maior austeridade no modo de
vida dos seus membros e ao longo de toda a sua existência manteve sempre o espírito
de pobreza. No presente, os monges cartuxos continuam ainda a prática, com pequenas
modificações, de tal austeridade. As imagens dos Cartuchos na pintura mural (figs. 2a,
2b e 3) constituem um trompe-l’oeil , técnica artística que, com truques de perspectiva,
cria uma ilusão ótica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir
três dimensões. Provém de uma expressão em língua francesa que significa «engana
o olho” e é usada principalmente em pintura ou arquitetura. O Trompe-l’oeil pressupõe
um tipo particular de interação com o espectador e caracteriza-se como um jogo
visual. Podemos ver na imagem dos Cartuchos, formas problematizadas como
espetáculo do mundo. O trompe l’oeil se coloca como uma tipologia ou abordagem da
pintura caracterizada pela invasão do espaço do espectador, simulando uma verdade
documental enfatizada pela fiel representação da realidade. Assim, confundindo o
próximo e o distante, o interior e o exterior, o sombrio e o luminoso, a superfície biplanar
se torna dotada de carnalidade, constituindo-se numa espécie de espelho que projeta
uma hiper-presença palpável da coisa ausente, registro de uma materialidade que se
afirma mediante o desfalecimento da realidade e permite pensar o que emerge na sua
condição enganosa ( BAUDRILLARD, 1997). Recurso que insiste em afirmar que o
olho é traiçoeiro e sua certeza uma fraude, pois exagerando a aparência do real, as
coisas são desnudadas de aura, produzindo uma confusão do código visual, em que
ocorre a revelação de uma operação enganosa e a persistência do triunfo absoluto da
Arte Comentada Capítulo 1 12
ilusão como condição humana.
Fig. 1a. Certosa de Pavia. Fundado
em 1396.
Fig.1b. Certosa de Pavia. Fundado em
1396. Interior da nave central.
Fig.2 a. Pintura mural. Nave lateral.
Certosa de Pavia. Corredor esquerdo. Afresco
Di Borgonone.
Fig.2 b Pintura mural. Nave lateral.
Certosa de Pavia. Corredor Direito. Afresco Di
Borgonone.
Fig.3. Pintura mural. Nave lateral. Certosa de Pavia. Afresco Di Borgonone. (1453 – 1523)
No âmbito religioso, estas imagens em Trompe-l’oeil, remeteram à outra imagem-
fantasma, por acaso, sobre um monge da ordem dos Cartuxos, desta feita, em Roma
( Fig. 4). O interior da primeira porta que dá para o claustro contem uma pintura a óleo
dentro da porta em madeira, em trompe l’oeil representando o monge da ordem dos
Arte Comentada Capítulo 1 13
Cartuchos, chamado Fercoldo, pai do Papa Clemente IV. Fercoldo, que morreu em
1265, se tornou monge após a morte de sua esposa. A pintura é assinada por Filippo
Balbi (1806-1890) e foi realizada em 1855. Na madeira na porta são expostos, em
prateleiras, alguns objetos típicos utilizados nas atividades da vida de clausura. Um
crânio e um crucifixo, em referência à meditação sobre a morte e reflexão sobre a Paixão
de Cristo; a oração do rosário como uma ferramenta, e a vela vapor para simbolizar
a ajuda humilde para as orações da noite; a ampulheta, símbolo da passagem do
tempo, que em um mosteiro parece estar suspenso; as canetas de pena e tinta, estão
listados no quadro de pessoal do cartuxo, como ferramentas essenciais ao trabalho no
mosteiro; um instrumento de corda de alto flagelo e um par de óculos de leitura “pince-
nez”, que remetem ao arrependimento e à possibilidade de ser leitores e estudiosos
cuidadosos; livros, simbolicamente colocado ao lado de alimentos e adequados para
a nutrição do espírito e da mente; alimentos, consistindo de pão e vegetais, em uma
clara referência à dieta rígida que não inclui o consumo de carne.
Fig.4. Pintura em Trompe l`oeil representando um monge da ordem dos cartuchos- “Re-
trato do monge Fercoldo” - feita por Filippo Balbi ( 1806-1890), realizada em 1855. Claustro di
Michelangelo, da Basílica de Santa Maria degli Angeli – Roma .
Estão também presentes, livros pilares do conhecimento religioso: antigo e novo
testamento, juntamente com Consuetudini Guigo, ou a regra dos cartuxos; uma cesta
cheia de lenha para queimar no fogão a lenha e aquecer os quartos. No interior da
porta, vemos Fercoldo que indica o retrato de seu filho, o Papa Clemente IV( realizado
por Guy Foucois). Na mão esquerda, Fercoldo segura um papel em que está escrito:
“Erudi Filium tuum et te et refrigerabit dabit delicias animae tuae. Provérbio. XXIX. 17.
Traduzindo: Discipline seu filho, e você será feliz e você vai adquirir consolações.
Provérbios 29:17”. O outro folheto, abaixo da imagem de Clemente IV, conta os dados
da história aqui descrita, bem como a data da morte de Fercoldo. Vemos, por fim,
uma gata, anfitriã silenciosa que se destaca como uma observadora atenta da cena
Arte Comentada Capítulo 1 14
retratada. Seriam os cartuchos tão silenciosos como se diz? E com todos os seus
silêncios, continuam ecoando em nós, através dos séculos?
Em 2014, em outra viagem, mais imagens - fantasma ( fig.5), esculpidas em
uma parede, ao alto, que fizeram relembrar as primeiras imagens. Trata-se do Palácio
de Jacques Couer, cidade de Bourges, França, tesoureiro de Carlos VII, construído
entre 1443 a 1451, obra prima da arquitetura gótica tardia e um dos mais belos
edifícios civis da época. Este edifício nasceu da vontade Jacques Couer de construir
uma grant’maison (grande casa) na cidade natal. Prefigura os hôtels particuliers que
florirão no Renascimento. Todavia, o tesoureiro de Carlos VII nunca chegou a habitá-
lo, pois caiu em desgraça em 1451. O palácio conheceu sortes diversas. Comprado
pelo Estado em 1925, foi completamente restaurado. Está classificado com o título de
Monumento Histórico desde 1840. Comerciante e banqueiro audacioso, ponte entre
Oriente e Ocidente, Jacques Coeur foi o pilar financeiro da unificação da França no
reinado de Carlos VII. Filho de um modesto negociante de peles, tornou-se o homem
mais rico de França. Financiou Carlos VII ajudando-o a acabar com a Guerra dos Cem
Anos. Mudou o olhar sobre o Oriente e viajou através de todo o mundo então conhecido.
Com ele, a Europa passou do tempo das Cruzadas ao tempo do comércio. Tal como o
seu palácio de Bourges, metade castelo medieval e metade palácio renascentista, ele
é uma figura de duas faces: tão familiar dos reis e do papa como das casas modestas.
Ao cume da glória sucederam-se a queda, a miséria e a tortura, antes de encontrar
de novo a liberdade e a fortuna. Entre as paixões da sua vida, a mais perturbadora
foi a que o uniu a Agnès Sorel, a beleza suprema da sua época, modelo dos famosos
quadros de Jean Fouquet, o mais proeminente pintor francês e entre eles, destaca-
se “ A Virgem e o Menino rodeados de anjos” ( Fig. 8). Agnés, primeira favorita real,
faleceu aos vinte e oito anos. Esta relação conduzirá à ruptura de Jacques Couer
com Carlos VII e à sua prisão e exílio no Vaticano e no Mediterrâneo, na ilha de Cos.
Jacques Couer está representado, ele mesmo, na fachada principal, ao lado esquerdo.
Ao lado direito, sua mulher e novamente em efeito de trompe l’oeil. O que fazem na
janela? A fachada do lado da rua e a do edifício principal estão lindamente decoradas
com o emblema real de Jacques Coeur, juntamente com uma infinidade de esculturas
que retratam temas religiosos, as viagens de Jacques Coeur, personagens ou cenas
da vida cotidiana. A fachada principal se organiza em duas alas em que domina a
porta central de entrada.  Esta entrada, de inegável caráter monumental, é prodiga em
homenagens ao rei Carlos VII. O tímpano do vitral apresenta uma flor de lis suportada
por dois corações. Abaixo do vitral, um dossel de pedra que acolhia até 1792, uma
estátua equestre do rei. Em ambos os lados do dossel, falsas janelas que acolhem
retratos escultóricos de Jacques Couer e sua mulher ( fig.6.a,6.b,7.a,7.b). A esquerda
do pavilhão de entrada, encontramos uma torre com escada em cuja balaustrada se
exibe uma das máximas de seu proprietário: “ Nada é impossível para os corações
valentes”. Ainda, na fachada, em detalhes nas balaustradas onde ficam suas figuras,
dois de seus emblemas: Uma coquille Saint Jacques e um coração.
Arte Comentada Capítulo 1 15
•	 Fig.5. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, o próprio
Jacques Couer e à direita, sua mulher.
Fig. 6a. Palácio de Jacques Couer.
Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, Jac-
ques Couer.
Fig. 6b. Palácio de Jacques Couer.
Bourges. Sec. XV. A Direita da fachada, a mu-
lher Jacques Coeur, Macée de Léodepart
.
Fig. 7a. Palácio de Jacques Couer.
Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, Jac-
ques Couer. Abaixo da balaustrada, em detalhe,
a imagem de um emblema de Jacques Couer:
Coquille Saint Jacques.
Fig. 7b. Palácio de Jacques Couer.
Bourges. Sec. XV. A Direita da fachada, Ma-
cée de Léodepart. Abaixo da balaustrada, em
detalhe, a imagem de um dos emblemas de
Jacques couer: um coração.
Arte Comentada Capítulo 1 16
Fig.8. Jean Fouquet. “A Virgem de Melun” ou “A Virgem com o Menino e os Anjos.
Parte direita de um díptico, que foi desmembrado. Madeira. Circa 1450. 93 x 85 cm. Real
Museu de Belas Artes, Antuérpia.
Em “A virgem com o menino e anjos”, embora se trate de um tema sacro, com
a presença de anjos, o modo como o pintor representou a Virgem está carregado de
erotismo, ou seja, traslada do divino para a esfera do profano. A Madona tem um seio
bem modelado à vista, e sua visão nada tem a ver com o tema, pois o Menino não se
encontra amamentando, e o seio foi sempre visto como uma imagem erótica por si só.
Contudo, alguns críticos têm para o peito nu uma explicação teológica: Maria mostra o
seio aos homens em referência a seu papel de Mãe e de intercessora. A Virgem é uma
mulher belíssima, que usa um vestido de seda cinza azulado, entrelaçado de fita no
decote, que deixa o ombro e o peito esquerdos a descoberto, usando na cabeça uma
larga coroa de ouro com pérolas e pedrarias, e segura um luxuoso manto forrado de
arminho. Encontra-se num trono suntuosamente decorado com ouro, pedras preciosas
e pérolas, transportado por um grupo de anjos azuis e vermelhos, que preenchem o
restante da composição. Ela sustenta no joelho esquerdo o Menino Jesus,  nu e com
o mesmo tom de pele da mãe. É interessante notar o contraste irreal que o artista
conseguiu, ao usar o azul e o vermelho na feitura dos anjos. Todas as cores usadas
são fortes e contrastantes e não existe lógica espacial na composição. Contudo, os
detalhes ornamentais usados na coroa e no trono demonstram extrema sensibilidade.
Agnès Sorel tinha o estatuto de favorita oficial, o que era uma novidade : os reis de
França tinham tido sempre amantes, mas estas deveriam ser discretas. A sua arte
de viver e as suas extravagâncias roubaram a atenção que devia ser dada à rainha.
Os véus e outras peças de vestuário foram abandonados, e ela inventou os decotes
de ombros nus desaprovados pelos crônicos da época, e os seus penteados eram
decorados com pirâmides. Para obter estas preciosidades, ela torna-se na melhor
cliente de Jacques Couer e usava grandes quantidades de tecidos caros, sendo imitada
pelas outras mulheres da corte. A primeira amante oficial de um rei da França morreu
com 28 anos de idade, em 1450. A sua morte foi tão súbita que houve logo suspeitas de
Arte Comentada Capítulo 1 17
envenenamento. Uma autópsia do seu cadáver revelou em 2004-2005 que um tubo no
seu sistema digestivo estava infestado de ascaris e que ela tinha absorvido mercúrio.
Foi a ingestão deste metal que acelerou a sua morte. Contudo, as doses de mercúrio
observadas são tais (cem mil vezes a dose terapêutica) que é difícil acreditar que tenha
sido um erro médico. O envenenamento intencional é então uma hipótese que não se
deve descartar. Mas quem são as personagens outras que aparecem na fachada? (
Fig.8 a, 8b). Certamente carregam muitas coisas inapreensíveis para nós.
Fig. 9a. Palácio de Jacques Couer.
Bourges. Sec. XV. Detalhe da fachada.
Fig. 9b. Palácio de Jacques Couer.
Detalhe da fachada.
Como os monges cartuchos da Certosa de Pavia fizeram chegar emAgnès Sorel?
Talvez a filosofia explique: “ [...] O olhar ensina um pensar generoso que, entrando
em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar,
identidade do sair e entrar em si, é a definição mesma do espírito (CHAUÍ, 1988, p.60-
1)”.
Neste sequência, de uma observação intrigada dos silenciosos cartuchos que
olhavam de cima para o grande teatro do mundo à distancia, cheguei em outro
cartucho que também silenciosamente nos relata os objetos que resumem a vida e
hábitos no mosteiro de cartuchos, bem como a transmissão de valores de pai para
filho. De lá, parte-se para um castelo, símbolo do poder profano. De uma imagem de
casal fortemente impregnada na parede para percorrer os séculos e ficar registrada
na história, a quem inicialmente se imagina fortemente ligados, descobre-se que na
verdade nem habitaram o castelo, que a mulher do dono do castelo, vestida quase
como uma freira, está ao lado dele na fachada, que é quase uma peça de marketing,
hoje. Quase não se fala no nome dela, Macée de Léodepart, mas todos conhecem a
amante. Macée de Léopart era casada com um homem riquíssimo que caiu de amores
e em desgraça por uma mulher retratada em muitas obras do principal pintor francês
do século XV, que também era amante do rei Carlos VII, rei que tinha no dono do
castelo, seu tesoureiro. Descobre-se ainda, em 2005, há apenas 12 anos atrás, que
ela foi provavelmente envenenada e por isto, morreu tão jovem. Quem disse que a
história da arte não é uma coisa divertida e repleta de surpresas?
Arte Comentada Capítulo 1 18
5 | 	JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO, ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO
DO MUNDO:
Marilena Chauí (1988), escreveu um texto chamado “Janela da alma, espelho
do mundo”, do qual me aproprio dos títulos neste texto. Diz a autora: “ Porém, porque
estamos igualmente certos de que a visão se origina lá nas coisas, delas depende,
nascendo do ‘teatro do mundo’, as janelas da alma são também espelhos do mundo
[...]”.(CHAUÍ, 1988, p.34). Segue dizendo que ver é ter à distância, pois o olhar apalpa
as coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria. É
a imaterialidade da operação visual que a torna tão propícia ao espírito. Espelhos,
janelas ou faróis, os olhos estão no limite entre a materialidade e a espiritualidade.“
Pois vincular é o ato primordial de cada ser, e a cada ação, a magia, as artes, a
memória e a ciência não são senão o poder de fazer vínculos (CHAUÍ, 1988, p.51).
Retornamos com Didi – Huberman ( 2013, p.297 a 346), quando nos diz que sempre
há uma integralidade que escapa da obra de arte, sempre resta algo a dizer, fazendo
com que a acumulação tranquila daquilo que se conhece ceda seu lugar ao proliferante
infinito e que sempre existe uma espécie de refugo, um lapso, algo que produz um
efeito disjuntivo, que tem a força de uma imagem onírica, quando a figuração é
afetada por um acidente soberano. Que acidente seria esse? Porque essas imagens
me perseguiram tanto tempo? Estas imagens, esses detalhes, coisas que a princípio
pareciam uma coisa, acabaram levando a outras.
[...] compreendemos que a história se faz por imagens, mas que essas imagens
estão, de fato, carregadas de história. Ela é uma construção discursiva que obedece
a duas condições de possibilidade: a repetição e o corte. Enquanto ativação de um
procedimento de montagem, toda imagem é um retorno, mas ela já não assinala
o retorno do idêntico. Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado
(ANTELO, 2004, p. 09-12).
As formas do passado, conforme nossa receptividade, podem ser novamente
equacionadas como problema. As nossas imagens fantasmas nos levam a caminhos
que parecem uma extravagância, têm a aparência de uma insensatez, o visual
se torna indeterminado e a figuração interrompe a ordem e as regras em proveito
do  inapreensível, produzindo uma  fenda ou rasgadura   do olhar, gerando  uma
vibração que produz uma estranha presença e um diferencial perturbador.  Recusando
a consecutividade e o linearismo,  faz com que o passado e o presente modifiquem a
noção de atualidade.
REFERÊNCIAS
ANTELO, Raul. Potências da Imagem. Chapecó: Editora Argos, 2004.
BAUDRILLARD, Jean. A Arte da desaparição. R.J.: Ed. UFRJ / N-Imagem, 1997. Capítulo I.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011
Arte Comentada Capítulo 1 19
BORGES, J.L. O fazedor. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.
CHAUÍ, Marilena. Janelas da alma, espelhos do mundo. In: NOVAES, Adauto (org). O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.31–63.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Edições Graal
Ltda., 2006.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes.
Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011a.
______. Diante da imagem. São Paulo: Ed. 34, 2013, p. 297 a 346
______. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012, p. 130.
______. La Imagen Mariposa. Barcelona: Mudito & Co, 2007.
______. Quando as imagens tocam o real. Tradução Patrícia Carmello e Vera Casa Nova. Revista
Pós: Revista do Programa de Pós Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG. V. 2. N. 4.
Nov. 2012. Disponível em http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/60, acesso em
16 jul. 2014.
______. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011b.
Fra Fercoldo e la genesi di Cartusialover. Disponível em <
https://cartusialover.wordpress.com/page/107/?app-download=ios>. Acesso em 6 ago.2017.
HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo. Edusp, 2012.
LEAL, Joana Cunha. Entrevista com Hubert Damisch, Revista de História da Arte, Lisboa, n. 3, p.
7-18, 2007. Disponível em: <http://issuu.com/ihafcshunl/docs/rha_3>. Acesso em: junho de 2014.
MAKOWIECKY, SANDRA. Janelas Múltiplas, janelas do olho, espírito da alma, espelho do
mundo. In: 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas- ANPAP 2017,
2017, Campinas. Anais do 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.
Campinas: PUC- Campinas- Anpap 2017, 2017. v. 1. p. 2067-2083.
MORISAWA, Mariane. 30 Bienal de SP: uma entrevista com o curador Luiz Pérez-Oramas. Set. 2012.
Disponivel em< http://casaclaudia.abirl.com.br/profissionais/30a-bienal-de-sp-uma -entrevista-com-o-
curador-luiz-perez-oramas/>. Acesso em 28.mai.2017
RODRIGUES, Rodrigo Freitas. Intermitências da imagem manuscrito : um diálogo com o tempo.
2016. 226 f.: il. Tese (Doutorado do Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas
Artes), Universidade Federal de Minas Gerais, Minas gerais.
ROMERO, Pedro: Um conocimiento por El montaje. Entrevista com Georges Didi- Huberman. Madrid,
2007 http://www.circulobellasartes.com/fich_minerva_articulos/Un__conocimiento__por__el__mo
ntaje_(4833).pdf
RUFIN, Jean- Christophe. O grande Jacques Couer. ( 1a
ed.) Porto Editora, 2012.
Arte Comentada Capítulo 2 20
CAPÍTULO 2
COLETIVO ANDORINHA: UM ANO DE EXISTÊNCIA,
DE RESISTÊNCIA, DE POLÍTICA, DE ARTE, DE
EDUCAÇÃO
Samara Azevedo de Souza
Universidade de Lisboa, Faculdade de
Belas-Artes, Mestrado em Arte Multimédia
(Audiovisuais). Centro de Investigação e de
Estudos em Belas Artes (CIEBA). Lisboa,
Portugal.
RESUMO: Esta investigação visa apresentar
primeiramente a existência e as práticas do
Coletivo Andorinha, que partem da narrativa
da discussão política, mas se expandem para
além. Discorre sobre o conceito de escultura
social de Joseph Beuys, que entende a arte em
horizontes mais amplos e como o mecanismo
de uma nova ordem social. Traz também
algumas reflexões de Paulo Freire no âmbito
da educação, a entendendo como ferramenta
crítica, política e de intervenção no mundo. Por
último, tece aproximações entre os conceitos
apresentados e as práticas do Coletivo
Andorinha.
PALAVRAS-CHAVE: escultura social, Coletivo
Andorinha, pedagogia da autonomia, arte-
política, arte-educação.
ABSTRACT: This research aims to identify
the existence and practices of the Coletivo
Andorinha, which begin with the narrative of
political discussions, but expand beyond that.
It discusses the concept of social sculpture
of Joseph Beuys, who understands the art in
broader horizons and as the mechanism of a
new social order. It also brings some reflections
of Paulo Freire about education, understanding
it as a critical tool, political and intervention
in the world. Finally, it weaves about the
approximations between the concepts used and
the practices of the Coletivo Andorinha.
KEYWORDS: social sculpture, Coletivo
Andorinha, Pedagogy of autonomy, art-politics,
art-education.
1 | 	INTRODUÇÃO
Desde a crise mundial de 2008, o
mundo tem passado por mudanças políticas
significativas. É claro que vive-se sempre
em tempo de mudança. Mas o retorno de
um conservadorismo radical, de discursos
xenófobos, a crise de refugiados, as soluções
através de figuras políticas de discurso fácil e de
milagres imediatos, passando pelo retrocesso
de direitos dos mais frágeis, têm apresentado
novos desafios para os indivíduos se colocarem
no mundo.
Desafios estes tanto para os indivíduos,
quanto para as artes e para a educação.
Momento novo para a geração que nasceu nos
Arte Comentada Capítulo 2 21
anos oitenta e noventa, mas que traz um carácter cíclico pertencente a outras fases
da história da humanidade.
Frutos deste período, surgem novas propostas de organização, que não atendem
a lógicas associativas, nem partidárias, nem artísticas isoladamente. Como exemplo,
nos referindo à situação política no Brasil, que vivencia ares reacionários desde as
grandes eleições de 2014, surgiram diversos grupos de atuação política dentro do país
e também mundo afora: a Rede de Brasileiros no Mundo contra o Golpe conta com
representações em mais de 74 cidades.
Uma dessas representações acontece em Portugal: o ColetivoAndorinha – Frente
Democrática Brasileira em Lisboa. O Coletivo surgiu em março de 2016, juntamente
com as grandes manifestações no Brasil de apoio à permanência do governo eleito
pelo processo democrático até então vigente no país.
2 | 	DESCOBRINDO FORMAS PRÓPRIAS DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL: A
EXPERIÊNCIA DE “COLETIVO”
Andorinhas!
Quem nunca as viu? Cantam e dançam, por cima de todas as coisas. Querem
ouvi-las? Têm de levantar os olhos para o céu, o Zulwine, lavar os olhos no azul
que tranquiliza a alma e escutá-las. Elas inspiram-nos a descobrir a grandeza da
alma na imensidão do mundo. Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das
andorinhas (Ditado Chope)” (CHIZIANE, 2013)
Asandorinhassãopássarosmigratórios.Têmaexpressãodaliberdadeagregadas
ao seu nome. São pássaros encontrados em grande número no Brasil e em Portugal.
Sendo assim, foram escolhidas para batizar e poetizar o coletivo recém-criado.
Formado em grande parte por brasileiros estudantes, professores e
pesquisadores das mais diversas áreas, assim como por trabalhadores brasileiros e
portugueses simpatizantes à causa, o Coletivo Andorinha tem como motor primeiro
tentar compreender a situação política do Brasil atual e discutir contranarrativas não
veiculadas pela mídia tradicional.
Essas contranarrativas se expressam em proposições das mais diversas
naturezas, tais como atos/performances/manifestações de rua (Figura 1 e 2), criação
de manifestos escritos e materiais gráficos (Figura 3), mesa de debates (Figura 4),
ciclo de filmes, apoio e participação de eventos da cidade de Lisboa, assim como de
associações organizadas com objetos afins. Neste um ano de existência, o grupo já
soma mais de trinta e cinco atos realizados.
Arte Comentada Capítulo 2 22
Figura 1- Ato em apoio à greve geral no Brasil e contra a PEC 241/55. 12nov2016. Praça do
Rossio, Lisboa. Foto: Manuel Almeida/Agencia Luso.
Figura 2 - Ato em apoio à greve geral no Brasil e contra a PEC 241/55. 12nov2016. Praça do
Rossio, Lisboa. Foto: Manuel Almeida/Agencia Luso.
Figura 3 - Material gráfico para divulgação de ação no dia 31 de julho de 2016. Ilustração:
Alexandre Guedes.
Arte Comentada Capítulo 2 23
Figura 4 - Encontro com a presidenta eleita do Brasil, Dilma Rousseff e o Núcleo do Partido dos
Trabalhadores em Lisboa. 14mar2017. Casa do Alentejo, Lisboa. Foto: Filipe Ruffato.
O grupo trabalha de forma horizontal, de modo que as decisões são tomadas
por aqueles que podem estar presentes e que podem doar seu tempo no momento.
Sem a necessidade de hierarquização de cargos ou vontades, as ações acontecem
ou quando notícias surgem por internet e são ocultadas pela mídia tradicional, tanto
brasileira quanto portuguesa, ou quando convocados por eventos portugueses. As
ações são coordenadas a partir do interesse, do desejo de alguns dos integrantes, seja
de todos, seja de poucos (a partir das bases fundamentais da luta pela democracia no
Brasil).
O Coletivo Andorinha se coloca como um espaço de reflexão e pensamento, que
se traduz em seus manifestos, materiais gráficos e discursos, mas que se afirma nas
ações de rua e nas produções de fotos e vídeos destas, em caráter de denúncia. Na
tentativa de contar a história pelo ponto de vista não controlado pelo mercado, mas
também de expurgar e de canalizar os sentimentos de frustração, decepção, raiva e
medo presentes atualmente em um número expressivo da comunidade brasileira fora
de seu país de origem.
Uma das preocupações atuais do grupo, é entender seu papel imagético. Vídeos
produzidos no âmbito de suas performances/manifestações de rua alcançaram
expressiva quantidade de visualizações, mesmo compostos por número reduzido de
pessoas, se comparados às práticas ativistas realizadas no Brasil.
Há mais de um ano o grupo permeia áreas que estabelecem zonas de confluência
entre política, arte, educação. Sem necessidade de estabelecer fronteiras entre
estas, constrói modos de se organizar a partir das necessidades de se expressar
Arte Comentada Capítulo 2 24
apresentadas pelas várias atualizações dos contextos, e que atualmente, no Brasil e
no mundo, mudam drasticamente em dias.
3 | 	A ESCULTURA SOCIAL: TODO MUNDO UM ARTISTA
Eu acho que a arte é o único poder político, o único poder revolucionário, o único
poder evolucionário, o único poder capaz de libertar a humanidade de toda a
repressão. (BEUYS, 1990:34)
Joseph Beuys, artista, professor e atuante político, através de seu conceito
escultura social discute relações de interdependência entre arte, política e educação.
ParaBeuys,aideiadeescultura,edearte,eraentendidademodoalargado,embriagada
de uma atitude política.
O artista determina três estágios desta sua visão alargada de escultura e de
arte. O primeiro estaria contido pelo campo das ideias, suas abstrações, seus moldes,
sua energia caótica, “materiais invisíveis usados por todos”: formas de pensamento.
O segundo estágio acontece no momento em que toda essa potência confusa passa
por um afinamento, uma harmonia, uma contenção e se transforma em forma, em
palavras: formas faladas. E no terceiro estágio acontece um processo determinado,
no qual se cristalizam formas, onde se fazem conexões objetivas: a escultura social
(BEUYS, 1990:19).
Estando os materiais invisíveis disponíveis a qualquer pessoa, e sendo qualquer
indivíduo dotado de uma potência livre criativa em si, logo, todos podem ser artistas,
“todo mundo um artista” (BEUYS, 1990:19).
Beuys entendia a arte como uma das engrenagens sociais, intrinsecamente
conectada à política e a educação, trazendo em suas reflexões resquícios de sua
própria história, uma vez que, além de artista, também foi professor e membro de
organizações partidárias socialistas na Alemanha.
Considerava que a construção de uma obra de arte total se daria naturalmente
em uma futura ordem social, perpassando por uma nova postura individual. De
acordo com nossos perfis individuais e coletivos, através da liberdade que todos nós
experimentamos, nós iríamos determinar a nossa participação nas esferas legislativas,
econômicas e culturais. (BEUYS, 1990:22)
4 | 	INTERVIR NO MUNDO: A EDUCAÇÃO EXIGE LADO
Em favor de quê estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem
estudo? (FREIRE, 2002:47)
Ainda na perspectiva da amplitude e a interdependência dos saberes, sob o ponto
de vista de um educador, Paulo Freire em seu livro Pedagogia para a Autonomia,
quando discute “ensinar exige apreensão da realidade”, também vai dizer que “a
Arte Comentada Capítulo 2 25
educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral” (FREIRE,
2002:41). Lida com objetos, com materiais físicos, mas também lida com medos, com
frustrações, com construção estéticas e subjetivas.
Por isso, o professor deve estar em constante diálogo com seus alunos e
sua realidade. Não existe educação sem contexto, sem propósito. É preciso ter a
consciência de que a educação, a escola presta serviço a um sistema, que valoriza o
mercado em detrimento do humano.
É função da educação, e consequentemente do professor, lutar contra as lógicas
globalizadas fatalistas na sala de aula, que tentam “convencer os prejudicados das
economias submetidas de que a realidade é assim mesmo” (FREIRE, 2002:78)
O discurso político está contido em cada ação do educador, estando ele consciente
disto ou não. Está contido nas escolhas dos programas, nas proposições de desafios,
nos modos de se construírem os saberes. E não apenas nestes. O educador, não
deveria ser um mero reprodutor de técnicas, pois deste modo está apenas a atender
interesses dominantes.
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar
o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos
que a nada levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua
cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com
sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a
outra menos injusta e mais humana. (FREIRE, 2002:63)
Ao mesmo tempo, também é ingênuo acreditar que uma revolução pode ser
ditada a partir de uma sala de aula. Pois, por maiores que sejam a esperança e a boa
vontade do educador, a escola não é uma força que atua livremente, sem obstáculos
e sem duras dificuldades. (FREIRE, 2002:61)
A utopia pode levar a frustrações e ao fracasso. É preciso ter consciência que
a escola é parte de uma engrenagem mercadológica que não pretende criar seres
autônomos, críticos, cidadãos conscientes de seu papel no mundo. Segundo o autor,
seguindo os ideais dos dominantes, a educação é concebida para amansar mentes,
para conter os indivíduos de modo imobilizador e ocultar destes verdades e realidades.
(FREIRE, 2002:61)
É preciso trabalhar a partir dessa consciência, com potência e assertividade
para subverter a lógica estabelecida nos espaços que sejam possíveis, mas tendo em
vista que, para o fazer, é necessário definição. É necessário que se tomem posições,
entendendo que a educação, que a prática educativa nunca é neutra. E o mero tentar
ser é estar do lado do dominante, do opressor.
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder
ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição.
Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. (FREIRE, 2002:63)
Arte Comentada Capítulo 2 26
5 | 	CONCLUSÃO
As ações desenvolvidas pelo Coletivo Andorinha em seu um ano de existência
contemplam em si possibilidades de confluências entre arte, política e educação, a
partir de manifestações rua, intervenções urbanas, criação de manifestos, de conteúdo
midiático independente; de escolhas inventivas, criativas, inerentes às práticas
humanas que permeiam os campos citados.
Entre o ativismo político e a arte performativa, o pensamento político se confunde
e se representa a partir de escolhas estéticas e críticas, capazes de conterem em si
sentidos redimensionados de formação, de arte e de política.
A olhar pela perspectiva dos estágios apresentados por Beyus, as formas de
pensamento, a caótica potência criativa apresentada pela nossa liberdade individual
fazem do Coletivo um lugar para o reconhecimento destas formas de pensamento, ao
mesmo tempo que o constante ato de falar, de discursar, de debater e de escrever,
inerentes em suas ações, o faz percorrer o segundo estágio chamado por Beyus de
formas faladas.
O terceiro estágio, escultural, artístico, social, em uma nova ordem pensada pelo
viés da arte, se apresenta nas ações desde a rua até a utilização de ambientes virtuais
e poderia estar no âmbito do que Beyus define como escultura social.
	 Beyus ainda vai defender que a arte é o único meio evolucionário-revolucionário
capaz de desconstruir os efeitos de um sistema repressivo.
Só uma concepção de arte revolucionada até este ponto pode se transformar
em uma força politicamente produtiva, percorrendo cada pessoa e moldando a
história. (BEYUS, 1990:22)
Se para Beyus a arte era capaz das mudanças necessárias de paradigmas,
para Freire é através da educação que esta afirmação amplificada é ressignificada.
“A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é
política.” (FREIRE, 2002:69)
Freire ainda chama para os educadores a responsabilidade de refinar as posturas
rebeldes e as transformar em posturas revolucionárias “que nos engajam no processo
radical de transformação do mundo” (FREIRE, 2002: 47)
É preciso transformar os rebeldes em revolucionários. Para Beyus, através da
potência caótica da arte. Para Freire, através da conscientização daquele que estuda,
seja de que área for. Para o Coletivo Andorinha, nas formas de se colocar no mundo,
de pensar suas práticas, de se unir aos que também se rebelam e se revoltam contra
o retorno da manutenção imoral do privilégio de poucos. Em tempos atuais, em que
uma ala reacionária, preconceituosa, conservadora se revela e se consolida não só
no Brasil como no mundo, arte e educação só podem ser, só podem acontecer, por
excelência, como lugares de resistência, de pensamento crítico, com consciência de
seu viés estético, ideológico e político.
Arte Comentada Capítulo 2 27
REFERÊNCIAS
CHIZIANE, Paulina (2013) As andorinhas. Belo Horizonte: Nandyala.
FREIRE, Paulo (2002) Pedagogia da Autonomia. Publicado originalmente em 1996. Versão online
2002. Coletivo Sabotagem. Disponível em:
https://sonhosdeumprofessordeeducacaofisica.files.wordpress.com/2015/09/pedagogia_da_
autonomia_-_paulofreire.pdf
BEYUS, Joseph (1990) Joseph Beyus in America: Energy plan for the Western Man. Writtings by
and Interviews with the Artist. Compiled by Carin Kuoni. 1ª ed. New York:Four Walls Eight Windows.
(tradução nossa)
Arte Comentada Capítulo 3 28
AS ARTISTAS NO INÍCIO DO SÉCULO NO RIO
GRANDE DO SUL E A CRÍTICA DE ARTE
CAPÍTULO 3
Ursula Rosa da Silva
(UFPel)
RESUMO: Em geral, os periódicos divulgavam
as exposições de arte com textos da crítica, ou
seja, até meados do século XX, não se usava
a fotografia para mostrar as obras e os textos
substituíam as imagens. Neste período, nas
artes e na ciência, a mulher era considerada
mais frágil e de condições inferiores ao homem
para exercer determinadas funções sociais e de
trabalho. A mulher, enquanto artista e indivíduo
foi, por muito tempo, invisibilizada nos registros
históricos e no espaço público. A história da arte
e a crítica de arte não valorizavam as artistas
mulheres, em sua capacidade de produção e
de criação. Este texto traz um estudo da crítica
de arte em Ângelo Guido, sob o enfoque de um
olhar para as artistas mulheres nos anos de
1930 a 1950, no Rio Grande do Sul. A pesquisa
se propõe a avaliar a maneira como o crítico
tratou as artistas mulheres e que distinções
existiam no tratamento aos artistas homens,
com o objetivo de trazer visibilidade e pontuar
novas integrantes para uma cronologia histórica
e artística feminina.
PALAVRAS-CHAVE: gênero e visualidade,
crítica de arte, mulheres na arte.
ABSTRACT: In general, the journals
disseminated the art exhibitions with texts
of criticism, that is, until the middle of the
twentieth century, did not use the photograph
to show the works and the texts replaced the
images. In this period, in the arts and science,
the woman was considered to be more fragile
and of lesser conditions than man to exercise
certain social and work functions. The woman,
as an artist and an individual, was, for a long
time, invisible in the historical records and in
the public space. Art history and art critique
did not value women’s artists, their capacity for
production and creation. This text brings a study
of art critique in Angelo Guido, under the focus
of a look at women artists in the years 1930
to 1950, in Rio Grande do Sul. The research
proposes to evaluate the way the critic treated
the female artists and what distinctions existed
in the treatment of male artists, aiming to bring
visibility and punctuate new members to a
historical and artistic chronology of women.
KEYWORDS: Gender and visuality, art critique,
women in art.
O presente texto tem como objetivo
abordar os aspectos referentes à produção
artística das mulheres, trazendo inicialmente
questões de diversos campos do conhecimento,
Arte Comentada Capítulo 3 29
como sociologia, história e artes visuais. O uso desse diverso apanhado de questões,
tratadas sob um viés de gênero, possibilita a criação de diversas justificativas para
explicar a maneira como a mulher foi negligenciada ao longo da história, do relato
dos acontecimentos públicos, da produção direta da criação de arte, tendo a esfera
doméstica e o resguardo da mesma como seu ambiente de atuação social.
	 Michelle Rosaldo e Louise Lamphere, em seus textos, explicitam os possíveis
aspectos que ocasionaram a desigualdade social entre homens e mulheres durante
os séculos. Além da explicação biológica e hormonal, há a justificativa da atribuição de
valor das atividades realizadas pelas sociedades primitivas: caçar animais de grande
porte exigia força, enquanto a mulher cuidava da prole. A caça é vista como um ponto
importante na evolução social e tem como agente principal o homem. O papel da
mulher, por sua vez, exigia comunicação e habilidades cooperativas tão importantes
para o desenvolvimento social quanto a caça. Rosaldo afirma que “os biólogos podem
nos dizer que, estatisticamente, os homens são mais fortes do que as mulheres,
mas eles não podem nos dizer por que a força e as atividades masculinas, em geral,
parecem ser valorizadas em todas as culturas.” (1979, p. 21).	
Segundo a historiadora francesa Michelle Perrot, a “história é o que acontece,
a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem
o devir da sociedade” e completa “mas também é o relato que se faz de tudo isso.”
(PERROT, 2008, p. 16). Conforme ela, pouco se falou diretamente sobre a história das
mulheres antes da metade do século XX, quando se estabeleceu como foco de análise
o indivíduo, a mulher em sua unicidade, partindo progressivamente até a história das
mulheres em esfera pública.
Como causa para a invisibilidade da mulher na história, Perrot traz dois pontos: a
falta da presença das mulheres no espaço público, limitadas ao ambiente doméstico,
e o silêncio das fontes; ocasionado pela escassa quantidade de material produzido,
tanto pelo acesso aos meios de produção do mesmo, quanto pela aceitação de uma
incapacidade por parte das mulheres, subjugadas a outros afazeres. Então, o que se
falou de mulheres foi o que permeou o imaginário masculino, uma vez que não se
falava sobre mulheres, mas de mulheres. Uma história contada por homens resulta em
uma história de imaginação e representação.
Como compensação à falta de fontes e registros, que apagaram as mulheres,
há milhares de representações visuais, plástica e literárias, feitas por homens. O que
se tem de registro são olhares masculinos que tão pouco estabelecem contato direto
com a realidade cotidiana das mulheres representadas. “Discursos e imagens cobrem
as mulheres como uma vasta e espessa capa. Como alcançá-las, como quebrar o
silêncio e os estereótipos que as recobrem?” (PERROT, 2008, p. 25)
Outro fator importante também se constituiu a partir do conteúdo e da época em
que os relatos foram produzidos: os primeiros historiadores gregos se fazem valer
dos acontecimentos públicos, como guerras e reinados. Para se contar a história
dos acontecimentos, era preciso voltar atenções para o ambiente público, existindo
Arte Comentada Capítulo 3 30
uma distinção antagônica entre os termos “doméstico”, entendido como as atividades
referentes à esfera privada, ao lar, aos filhos, as atividades femininas etc, em oposição
ao “público”, referente aos grandes acontecimentos que trouxeram a evolução das
sociedades e que tinham como agentes principais, o homem.
A necessidade da construção de uma história das mulheres se dá, então,
por diversos fatores: fatores científicos, que se referem à crise dos sistemas de
pensamento, que tornou sexuada a questão do comportamento; fatores sociológicos,
considerando a presença da mulher nas universidades, como professora e aluna; e
fatores políticos, pois, a partir de 1970, com o movimento de liberação da mulher,
temos como consequência a crítica de um saber institucionalizado e masculino.
Sobre o tema da educação, Michelle Perrot fala sobre o pensamento que existiu
em boa parte do século XIX, em que se acreditava que o saber e a feminilidade se
contrapunham, pois tal aspecto não possuía relação com seu papel na sociedade,
uma vez que “a leitura abre as portas perigosas do imaginário, uma mulher culta não é
uma mulher”, (2008, p. 93) que estando restrita ao ambiente doméstico o que lhe deve
ser ensinado são seus respectivos afazeres: o lugar da boa mãe, a esposa e a dona de
casa, e ainda os valores morais que preconizam o pudor, a obediência e o sacrifício.
O acesso das mulheres ao ensino secundário irá acontecer no início do século XX, e
o ingresso à universidade se dá no período entre guerras e em maior quantidade em
1950, devido à necessidade de instrução para o trabalho no setor terciário. Para obter
o conhecimento, foram necessários meios alternativos em um esforço autodidata.
Aquestãodoensinodaarteaindatinhacomoconstituiçãoumolhardesuperioridade
às mulheres, que se deparavam com um ensino modificado e com conteúdo abrandado.
Perrot cita Rousseau, dizendo que “toda a educação das mulheres deve ser relativa
aos homens”, sendo dever das mulheres “amparar os homens, cuidá-los e tornar
suas vidas agradáveis” (2008, p. 92). Muito dessa restrição imposta, na questão do
ensino, foi mais uma vez, um pensamento sobre a incapacidade feminina, em que
foram atribuídos aspectos biológicos distintivos para justificar construções culturais.
Se criou a relação polarizada entre o sopro abstrato masculino e criativo e atributos
femininos como sensibilidade e intuição, não existindo criação às “imitadoras”.
No campo da arte, assim como em outros campos que exigiam faculdades mentais
ligadas à criação e à abstração, as mulheres foram afastadas: como elas poderiam
fazer arte, a arte como criação de algo? Elas copiam, traduzem e interpretam. No
texto Mujer, Arte y Sociedad (1992), Whitney Chadwick inicia o texto falando sobre
o caso da Royal Academy: Mary Moser e Angelica Kauffmann, que fizeram parte do
grupo de fundadores da instituição inglesa, mas se tornaram apenas representações e
não representantes de um grupo. Um dos registros das aulas na academia é a pintura
Os membros da academia real (1771-1772), de Johann Zoffany, na cena figura uma
aula de modelo nu, mas as alunas não estão presentes na aula, elas foram reduzidas
à representação dentro da representação no canto superior da imagem, em que
aparece os seus retratos pintados. Perrot afirma:
Arte Comentada Capítulo 3 31
No Salon, os júris inteiramente masculinos, esperavam das mulheres que se
conformassem com os cânones da feminilidade, pelos temas de naturezas- mortas,
retratos, cenas de interior e buquês de flores, que formavam uma seção inteira, e
pelo estilo. Nem nu, nem pintura de história. (2008, p.102)
Johann Joseph Zoffany, Academicians of the Royal Academy, 1771-1772.
Adentrando os apontamentos sobre campo da arte, há um consenso, entre as
teóricas feministas que buscam trazer à tona uma história das mulheres, que a história
da arte é um relato de acontecimentos organizados de maneira cronológica de homens
sobre homens, dos historiadores sobre “grandes mestres”.
De que se constituiu a problemática das artistas mulheres na prática? Dos
aspectos culturalmente estabelecidos abordados anteriormente: a cadeia produtora
de um comportamento passivo e submisso, da redução de seu espaço de atuação
ao âmbito doméstico, da distinção entre público versus privado, em que público se
refere ao masculino e privado limita o espaço feminino, a ideia de que as mulheres
eram imitadoras, sem capacidade criativa, seus fatores biológicos, constituição física,
a moral, os bons costumes, a sociedade, a visão própria de inferioridade.
Sobre os cerceamentos impostos no quesito acesso ao ensino da arte, Ana
Simioni no texto O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias
do século XIX (2007), realiza importantes apontamentos. A situação em relação ao
ensino acadêmico da arte, ao longo dos séculos XVIII e XIX, possui diversas distinções
para artistas homens e mulheres. Partindo do ponto já citado anteriormente usando
como base as ideias de Michelle Perrot e Whitney Chadwick, de que existe mais por
trás da negligência e falta de mulheres artistas do que a real inexistência delas ou da
falta de capacidade delas, é coerente salientar alguns dos fatores que tornaram árduo
o caminho das artistas ao sistema das artes.
Na base do cerceamento institucional estava a questão do estudo a partir do
modelo vivo e do modelo nu, considerado indecente para o “sexo frágil”, Assim, o
acesso ao ensino artístico, com as bases necessárias da representação do período,
foi-lhes negado através dos fatores sociais em perspectiva de gênero e a atribuição
de uma conduta moral à mulher. O acesso à informação era inicialmente vetado nas
Arte Comentada Capítulo 3 32
academias. As artistas que tivessem interesse em ter o conhecimento sobre o cânone
tinham como saída buscarem ateliês privados. Simioni comenta, sobre a Academie
Julian – instituição francesa fundada em 1867, que mesmo com o destaque pela
abertura de turmas mistas tinha como agravante a questão financeira, de tal modo que
“o único senão ali é que deveriam pagar caro por tantos privilégios”, que constituíam
no estudo do modelo vivo por até 8 horas, e onde “as mensalidades para as mulheres
custavam, geralmente o dobro das masculinas.” (Simioni, 2002, p. 92)
Indo por outro caminho seriam classificadas como artistas de artes menores, que
não necessitavam do conhecimento da representação do corpo, como a pintura de
paisagem e a natureza-morta. Além disso, a maneira como a crítica às classificava era
decisivo, pois ao serem clarificavas como “amadoras”, em comparação ao chamado
“trabalho sério” dos artistas homens, elas eram facilmente excluídas da história da arte.
A dificuldade da profissionalização das mulheres artistas se deu ainda pela construção
de um conceito de “arte feminina”, com temas “menores”, em contraste com a arte
masculina, histórica e com temática pública. Além dos ateliês privados, Simioni diz
que as artistas recorriam a “uma série de caminhos alternativos, onde a artista pode
aprender o corpo humano e descobrir quais as melhores maneiras de representá-
lo” (2002, p. 86). Sendo excluídas desse conhecimento pelo meio acadêmico, lhes
restava ainda recorrer a esboços de seus próprios corpos ou de amigas íntimas.
Mesmo com a possibilidade de entrada das artistas na academia desde 1770, o
acesso era distinto do masculino e seria necessário contar com uma indicação real,
que atribuísse a elas o título de excepcionalidade. Em 1896, as artistas conseguiram
a liberação para frequentar as aulas de anatomia e história da arte, mas necessitavam
de diversos requisitos para que fossem aceitas: a comprovação de que tinham entre
15 e 30 anos, uma requisição por escrito e uma carta de indicação de um professor
ou artista renomado. Apenas em 1990 foi destinado às artistas um ateliê exclusivo.
As reações acaloradas por parte dos alunos têm como justificativa, como se refere
Simioni, o “medo da feminilização da profissão e sua correlata desvalorização social”
(SIMIONI, 2002, p.94).
Apesar do caso brasileiro ser mais favorável para as artistas, já que aqui
puderam ingressar na academia legalmente desde 1892, a instituição possuía as mais
diversas carências, havendo um baixo nível de institucionalização. Havia um caráter
de autoridade e dominação ocasionados por relações pessoais, pois se uma mulher
desafiasse a autoridade masculina “estava fadada ao pior dos castigos: a exclusão
absoluta do campo da arte e da memória coletiva, ou seja, uma dupla morte.” (SIMIONI,
2008, p.5)
A partir dos diversos apontamentos feitos aqui sobre a situação cultural atribuída
à mulher e sua esfera de atuação enquanto ser social, alguns dos aspectos de
dificuldade de acesso às instituições destinadas ao ensino da arte, se segue uma
abordagem sobre outro aspecto importante na inclusão ou apagamento de artistas
mulheres na história da arte: a crítica.
Arte Comentada Capítulo 3 33
O capitalismo, então, não seria uma causa direta, uma vez que a subordinação
feminina existe desde muito antes desse sistema econômico. Tal teoria buscaria então
fatores causais que fossem descolados de uma relação puramente física a respeito de
homens e mulheres. Sobre a relação entre o capitalismo e o patriarcado responsável
pela dominação masculina, a autora diz que o sistema econômico e o sistema de
gênero não eram a causa fundamental, mas que interagiam para fixar estruturas
socioeconômicas que perpetuaram as estruturas de dominação.
As identidades subjetivas de gênero são processos de diferenciação e distinção,
que exigem a supressão de ambiguidades e de elementos de oposição a fim de
assegurar uma coerência e uma compreensão comum. A ideia de masculinidade
repousa na repressão necessária de aspectos femininos e introduz o conflito na
oposição entre masculino e feminino. (1995, p. 82)
Ao longo do texto, a autora cita diversas teorias e suas bases, e utiliza como
exemplo de uma visão limitadora acerca do conceito de gênero a teoria de Chodorow,
que tem como premissa o conceito de gênero ligado basicamente à esfera familiar e
experiência doméstica:
Sem dúvida está implícito que os arranjos sociais que exigem que os pais trabalhem
e as mães executem a maioria das tarefas de criação das crianças estruturam a
organização da família. Mas não estão claras a origem e nem as razões pelas quais
eles estão articulados em termos de uma divisão sexual do trabalho. Tampouco se
discute a questão da desigualdade, por oposição à de assimetria. (p. 81)
Sendo assim, dentro dessa teoria seria falha a tentativa de explicar a atribuição
de poder na masculinidade, levando em consequência a carga negativa associada
com feminilidade em comparação com a virilidade. De que maneira a estrutura familiar,
por si só, poderia gerar essa repercussão de maneira direta? Para Joan, então, o
caminho a ser seguido passa pelos sistemas de significação, uma vez que sem esse
processo de significação não existe significado. Existem articulações de regras feitas
pela sociedade para estabelecer relações sociais para representação de gênero. O
processo de significação se dá através da linguagem, que por resultado dá acesso até
mesmo a crianças que não são integrantes de um modelo familiar nucleado, à ordem
simbólica.
A relação entre masculino e feminino é estabelecida de maneira imaginativa. Tal
circunstância torna problemática as categorias de homem e mulher, sendo construções
subjetivas. A autora cita Sally Alexander e Denise Riley acerca do antagonismo
e polaridade inerentes para a aquisição da identidade sexual, e que tal caráter
historicamente construído, através dessa situação de extremos, tem por consequência
uma “oposição invariante e monótona entre homens/mulheres”. (RILEY, 1988)
Michelle Rosaldo, teórica acerca das questões de estudos de mulheres e
antropologia de gênero, afirma Vejo agora que o lugar da mulher na vida social humana,
não é, de qualquer forma direta, um produto das coisas que ela faz, mas do significado
que suas atividades adquiriram através da interação social concreta. (1980)
Para abordar questões de gênero é necessário fazer uso da noção de concepção
Arte Comentada Capítulo 3 34
política e de organização presentes em cada período abordado. É necessário analisar
através de uma visão expandida que inclua o mercado de trabalho, que atua de
maneira segregacionista pelo sexo; e a educação, fator não apenas institucional,
mas de passagem de conhecimento. A subordinação feminina está além das causas
biológicas pura e simplesmente, mas tem como base para atuação o processo de
significação construído a partir do pensamento instaurado socialmente de sujeito-
verbo-objeto, além da construção de uma identidade sexual pautada na escolha
baseada na dicotomia feminino-masculino. É necessário utilizar gênero não como uma
categorização imposta a um corpo sexuado, mas fazê-lo como aspecto analítico de
um indivíduo, a organização social em que está inserido e as relações estabelecidas
a partir disso.
Tanto no texto de Whitney Chadwick, Arte, mulher e sociedade quanto no de Ana
Simioni, O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século
XIX, sobre a maneira como a mulher foi tratada na história da arte, são citadas como
exemplos duas artistas, escolhidas através de fatores externos, como aparentemente
justificativa para suas entradas nas academias: filhas de alguém, indicadas pelo rei,
com sobrenome de seu marido, um célebre artista, apadrinhadas por algum membro
da sociedade, em maneira de sustentar o argumento de que eram mulheres e que eram
produtoras de arte, não por sua clara capacidade criativa, mas inseridas na relação
com homens. Rivalizadas entre si mesmas, sendo minoria, eram comparadas e em
um consenso masculino, detentoras de obras inerentemente femininas reconhecíveis
e passíveis de serem distinguidas de uma obra feita por um homem.
A maneira como as artistas eram vistas dentro do campo, podem ser salientadas
utilizando trechos encontrados em Arte, mulher e sociedade (1992), de Whitney
Chadwick:
O quadro de Zoffany, igual a outras muitas obras de arte, recorre aos pressupostos
culturais acerca das mulheres, que submetiam os interesses das mulheres aos
dos homens, e estruturavam o acesso da mulher a educação e a vida pública
de acordo com suas crenças acerca do natural. Reitera a incumbência marginal
tradicionalmente aplicada a mulher artista na história da pintura e da escultura, e
confirma a imagem da fêmea como objeto de contemplação pelo macho em uma
história da arte geralmente alinhavada seguindo os feitos dos velhos mestres e das
obras mestras. (p. 8)
O trecho citado por Chadwick se refere a obra de Johann Zoffany Os estudantes
da Royal Academy (1771-1772), cuja temática é pictoricamente mostrar a maneira
como as aulas dentro da academia se configuravam. Levando em consideração que
duas das artistas que serviram como base para a fundação e base constitutiva dessa
academia eram mulheres, Angelica Kauffmann e Mary Moser, e por assim serem,
se encontraram em um contexto de apagamento em uma obra que demonstra o
funcionamento da academia na qual eram membros atuantes, foram apresentadas
como objetos, e não como produtoras de arte. Foram representadas não em meio aos
estudantes, mas como representações, posição atribuída às mulheres durante a maior
Arte Comentada Capítulo 3 35
parte do tempo na história da arte.
Tal fato enfatiza claramente a relação da mulher com o ensino da arte nesse
período. Como poderiam elas, mulheres, estarem posicionadas ao lado de homens,
realizando o fazer que passou pela mão de grandes mestres? Chadwick chama
atenção para a desigualdade representada no quadro acerca da posição masculina e
feminina presente dentro da história da arte, e acrescenta o questionamento recente
sobre a situação:
No início da década de 1970, os artistas, críticos e historiadores da arte feministas
começaram a colocar em dúvida os pressupostos sobre os quais se assenta a
reinvindicação masculina do monopólio dos valores universais de uma história da
arte heroica proclamada como produzida pelos homens, e que sistematicamente
excluía as produções de artistas mulheres desta corrente, a medida em que
transformava a imagem da mulher em uma imagem de consumo e posse. [...]
Porque historiadores da arte decidiram ignorar a obra de quase todas as artistas?
(p. 8)
A autora questiona ainda sobre o caráter de possível “excepcionalidade” presente
nas artistas conhecidas. Seriam elas excepcionais ou vítimas de um sistema patriarcal
que determina que a posição social estabelecida a uma mulher desde o início de sua
vida, é diferente da ocupada pelos homens? Suas posições devem ser reivindicadas por
seu sexo? Para avaliação estética das obras de mulheres artistas foram atribuídas todo
o peso das dicotomias estabelecidas ocidentalmente, consideradas em comparação
aos homens, através de um adjetivos de valoração como decorativas, sentimentais,
intuitivas, ressaltando a diferença pautada na distinção produzida artisticamente por
homens e mulheres.
A cultura ocidental demonstrou que a valoração histórica e crítica de arte das
mulheres foi inseparável do lugar atribuído a elas socialmente.Arespeito das tentativas
das historiados da arte feminista de estabelecer critérios alternativos que analisassem
e por consequência ocasionar a inserção das artistas mulheres na história, Linda
Nochlin, em seu famoso artigo WhyThereBeen No GreatWomanArtists? (1971),
diz que “em todos os sentidos, mulheres artistas e escritoras parecem estar mais
próximos de outros artistas de seu período e panorama, que entre si.” (p. 20) Sendo
possível, a partir desse trecho, perceber que a tentativa de inserir artistas mulheres
no sistema em resposta à negligencia do passado através da análise por caráter de
distinção de uma arte produzida por homens é errônea, uma vez que o que determina
seu desenvolvimento artístico não é seu sexo biológico pura e simplesmente, mas
o contexto em que se insere e as construções culturais de gênero vigentes em seu
período.
A ideia de grandeza dita por Nochlin foi associada ao gênero masculino,
intrinsecamente. A condição de “falta de sucesso” em comparação aos gênios artistas
se dá em grande parte pela condição econômica, racial e de gênero, sendo atribuído
às mulheres papeis e funções sociais que são obstáculos ao desenvolvimento de seu
fazer artísticoç A autora segue o ensaio afirmando que os fatores condicionantes para
Arte Comentada Capítulo 3 36
o possível fracasso das artistas não se encontravam em sua composição física ou
capacidade criativa, mas no contexto de falta de acesso à educação lecionada pelas
academias. A socialização feminina contribuiu de maneira direta para a hierarquização
dos gêneros.
Partindo do ponto citado anteriormente, usando como base teórica os escritos
de Joan Scott e Whitney Chadwick, de que existe mais por trás da negligência e
falta de mulheres artistas do que a real inexistência delas ou da falta de capacidade
negativa atreladas a distinções negativas em grau comparativo com os artistas, é
coerente salientar alguns fatores que tornaram árdua a caminhada das artistas até o
sistema das artes: um dos principais fatores foi o acesso dessas artistas às instituições
responsáveis pela formação artística. A respeito disso, Ana Simioni afirma que “na
base do cerceamento institucional estava a questão do estudo a partir do modelo
vivo, considerado indecente para o ‘sexo frágil’” (p.2), salientando mais uma vez que
o acesso ao ensino artístico, que constituía a base da representação no período, lhes
foi negada através de fatores socialmente construídos e atribuição de idealização na
conduta admitida a uma mulher.
O acesso à informação artística era inicialmente vetado nas academias. Não
suficiente, as artistas que tiveram interesse em desenvolver a representação tinham
como saída recorrer a ateliês privados, onde mais uma vez tinham a questão de
distinção de gênero na questão econômica. Ana Simioni cita a respeito da Academie
Julian, instituição francesa fundada em 1867 e que mesmo com o destaque pela
abertura de turmas mistas tinham como agravante a questão financeira:
Nas novas turmas, as jovens encontraram uma formação equiparável à dos homens,
podendo exercitar-se no estudo do modelo vivo, por até oito horas seguidas, e
contando ainda com as lições fornecidas pelos grandes mestres que também
lecionavam na ÉcoledesBeauxs-Arts. O único senão é que ali deveriam estar
dispostas a pagar por tantos privilégios: as mensalidades e as anuidades para as
mulheres, custavam, geralmente, o dobro das masculinas. (p.92)
Indo por outro caminho, seriam classificadas como artistas de arte menores,
que não necessitavam de conhecimento da representação do corpo, como pintura de
paisagens e naturezas-mortas. Além disso, a maneira como a crítica as classificou foi
um fator decisivo para a invisibilidade ao serem classificadas como amadoras.
O amadorismo trazia implícitas conotações negativas: a ideia de refinamento
(em oposição ao trabalho árduo), frivolidade (versus a arte séria dos homens), a
ausência de profissionalismo, desconhecimento técnico. Vale notar que o termo
era comumente empregado para as mulheres (e raramente usado para casos
masculinos), sendo portando, um termo sexuado e relacional, que tinha como
contraponto a noção de artista, conjugado no masculino. (p.2)
Arespeitodisso,éimportantesalientarquehaviaumpensamentocoletivonoséculo
XIX a respeito das diferenças das faculdades criativas entre os sexos: as mulheres,
vistas como incapazes de possuir capacidade criativa, ligadas essencialmente à
imitação, sendo assim incapazes de serem gênios, uma vez que a arte era vista como
capacidade criativa.
Arte Comentada Capítulo 3 37
Ana Simioni cita o caso de duas artistas francesas: Elisabeth Vigée-Lebrun e
Adelaide Labille-Guiard, ambas admitidas na academia em 1783, como retratistas,
e emergidas do entorno da corte francesa do século XVIII, sendo impulsionadas
pela família, casamento com artista renomado ou proteção direta de membros de
instâncias de poder. O acesso a pintura de nus era subsidiado pelas relações sociais
estabelecidas por elas, que as possibilitaram o transito por coleções privadas. Além
dessa possibilidade, Simioni cita que “as artistas recorriam a uma série de caminhos
alternativos, a artista pode apreender o corpo humano e descobrir quais os melhores
meios de representa-los.” (2007, p. 86)
Sendo excluídas do conhecimento direto do cânone, elas tinham a chance de
recorrer a esboços de seus próprios corpos ou de amigas íntimas. Mesmo com a
possibilidade da entrada de artistas na academia desde 1770, o acesso era distinto
do masculino e seria necessário contar com uma indicação real que as concedesse o
título de excepcionais. Em 1896, as artistas conseguiram a liberação para frequentar
as aulas de anatomia e história da arte, mas necessitavam de diversos requisitos
para que fossem aceitas, sob a justificativa, segundo a autora, de que “o medo da
promiscuidade entre os sexos” (p.94) tornava inviável o contato entre homens e
mulheres, sendo os requisitos a comprovação mediante certidão de nascimento de
que tinham entre 15 e 30 anos, uma requisição por escrito e uma carta de indicação
de professor ou artista.
Apenas em 1890, após embates e solicitações insistentes, foi destinado a elas um
ateliê exclusivo. As reações acaloradas por parte dos alunos, tem como justificativa “o
medo da feminização da profissão, e sua correlata desvalorização social.” (SIMIONI,
2007, p. 94)
Apesar do caso brasileiro ser, cronologicamente, mais favorável as mulheres
artistas, já que puderam ingressar legalmente desde 1892 e na França em 1897, a
instituição possuía as mais diversas carências para acolhê-las. Até 1896, as classes
eram mistas. Simioni salienta que “é importante lembrar que o acesso ao corpo nu,
embora facultado na lei, continuava a ser um grande tabu social e, nesse caso, os
costumes podiam ser ainda mais decisivos para cercear as práticas femininas do que
as prescrições jurídicas.” (2007, p.95)
A respeito das escultoras Julieta de França e Nicolina Vaz de Assis, a autora
destaca:
(A escultura) compreendida como uma arte essencialmente masculina, pela
exigência de força física e contato direto com a matéria, era vista como incompatível
com o sexo frágil. Em uma época na qual se acreditava que o corpo feminino era
naturalmente delicado e potencialmente doente, uma atividade calcada em esforço
físico era considerada uma ameaça virtual. (p. 3)
Julieta de França foi a primeira mulher no Brasil a ter aulas de nu. Logo de início,
após vencer a seleção na qual foi a única candidata, foi para paris e inscreveu-se na
Academie Julian. A artista foi alvo da dominação autoritária do diretor da escola, que
Arte Comentada Capítulo 3 38
após embate direto deixou de participar dos salões oficiais. Como consequência de tal
embate, “ele passou para a história da arte sendo nome conhecido por todos, e ela foi
excluída, tornando-se pouco mais do que uma linha nos dicionários especializados.”
(SIMIONI, 2008, p.4)
Nicolina Vaz obteve uma carreira com projeção pública, recebendo encomendas
importantes, tal como a fonte da Avenida São João em São Paulo, demonstrando o
destaque da artista, já que o campo para a escultura era escasso, e o local escolhido
para a encomenda era uma cidade considerada como próspera para o país. O caso das
artistas demonstra, além dos aspectos referentes às artistas mulheres individualmente,
a maneira como se estabelecia a academia brasileira. Apesar do baixo nível de
institucionalização, houveram reflexos positivos que possibilitaram a notoriedade de
duas importantes artistas brasileiras do período. O aspecto negativo se deu através
da duramente estabelecida hierarquia dentro da instituição dominada essencialmente
por homens, onde “uma mulher que ousasse desafiar a autoridade masculina estava
fadada ao pior dos castigos: à exclusão absoluta do campo e da memória artística, ou
seja, uma dupla morte.“(SIMIONI, 2008, p.5)
O que se conclui, então, sobre o apagamento das mulheres artistas é o fato de que
foram negligenciadas através das relações de poder estabelecidas por uma sociedade
patriarcal, que tem por consequência, um ambiente propício à subordinação feminina,
estando inseridas em uma sociedade em que cada um dos sexos tem sua posição e
função sociais claramente definidas. Porque as mulheres não tiveram acesso direto
à formação artística? Seria pretensão afirmar que foram vetadas do ambiente de
ensino artístico por exclusivamente serem mulheres, mas sim pelos aspectos culturais
negativos atribuídos a elas por grau de distinção de gênero.
Houveram artistas mulheres em toda a real história da arte e a elas foi vetado
o acesso à formação artística em um ambiente cujos membros atuantes e figuras
de importância eram homens, que possibilitaram que essa falta de acesso fosse
estabelecida. Se sabe, então, que a elas não faltou capacidade criativa, interesse
ou um corpo forte o suficiente, mas sim, um campo de atuação com pressupostos de
distinção de gênero e um pensamento coletivo acerca do papel da mulher distanciado
do fazer artístico. Mesmo com os mais variados empecilhos, de gênero, econômico ou
racial, algumas mulheres conseguiram atravessar a barreira construída socialmente
para que não invadissem um espaço que não lhes pertencia, através de aspectos
que envolviam diretamente os homens, como o casamento com artista célebre, que
as tornaram atuantes no campo artístico, e que geraram, por detrás dos (possíveis)
olhares pré-conceituosos, a percepção de que eram tão capazes quanto os homens
de estarem dentro do ambiente da arte.
Não apenas a consciência por parte dos homens de que eram capazes de maneira
equivalente, mas também o receio, de que “tais mulheres usurpassem os ‘seus’
cargos, pois eventualmente receberiam prêmios e bolsas ‘no lugar dos’ homens.”
(SIMIONI, 2007, p. 94)
Arte Comentada Capítulo 3 39
Neste recorte, trazemos dois textos de Ângelo Guido referentes à artista Hilda
Goltz, em dois momentos de sua produção, em duas exposições que traz a Porto
Alegre, na Casa das Molduras, em 1942 e na Galeria de arte do estúdio Os Dois, em
1944.
Professor Ângelo Guido ministra aula na Escola de Artes do Rio Grande do Sul
Fonte: Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Atráves da leitura e análise dos textos publicados no jornal por Guido,
as  críticas referentes à pintora Amélia Pastro Maristany – Notável Pintora
Porto Alegrense, Diário de Notícias, 17.08.1938 p. 8 e ​ Amélia Pastro
Maristany,  Notável pintora de flores, Diário de Notícias, 27.11.1938 p.4 – são
colocadas em analogia com as do pintor e também seu marido, Luiz Maristany –
Exposição  Luiz  Maristany,  Diário  de  Notícias,  08.06.1930,  p.  12.  Inicialmente é
notado por Guido a ascendência das mulheres e maré as da arte, como a dança e a
música, saudando­nas pelo maravilhoso trabalho. Ressalva porém, que infelizmente,
na pintura não há destaque merecido à uma pintora até aquele momento, mas afirma
sua existência e conta que ela é porto­alegrense e reside em Porto Alegre. Em seguida,
conta do seu matrimônio com o esplêndido pintor Luiz Maristany e confirma que ela é
uma pintora autônoma, já que não necessita de imitar o estilo do professor com quem
estudou e reforça isto ao dizer que ela é uma artista de verdade com estilo plástico
autêntico. As críticas referentes à Amélia, portam repetições feitas por Guido, que
apesar de afirmar não julgar a capacidade de se expressar pictoriamente um privilégio
de gênero, repete termos referente a pintora e a sua obra como; excessivamente
feminina, deliciosamente feminino, delicado sentimento feminino, inegavelmente bem
feminino e um gosto feminino que se denuncia. ​( GUIDO,​ 27.11.1938, p. 4) 
(....) Há mesmo, em certa maneira que diria ingênua de compor alguns pequenos
conjuntos e de tratar pequenas flores, um gosto feminino que se denuncia evidente.
Entretanto, seu temperamento pictórico, que se manifesta, ás vezes, em audácias      
incríveis, não tem nada de feminino. Não direi que é um temperamento masculino,
porque não julgo que a capacidade de vibrar intensamente e de se expressar com
Arte Comentada Capítulo 3 40
energia seja um privilégio dos homens. (GUIDO, 27.11.1938, p. 4) 
No texto Amélia Pastro Maristany, Notável pintora de flores, Guido a coloca
em comparação com o pintor Guiomar Fagundes, Georgina Albulquerque,
Haidéa Santiago e outras artistas, que se destacam no gênero de natureza morta
com técnicas mais academicistas, só que perdem em expressividade pictórica,
coisa  que Amélia possui. Isto é ressaltado mais uma vez por Guido quando ele
menciona  Pedro Alexandrino  e  seus  crisântemos,  que  em  suas  palavras:   “Talvez
sejam esses crisântemos as mais belas flores pintadas até hoje no Brasil, num estilo
quente e vigoroso que lembra naturezas­mortas do melhor período flamengo. (GUIDO​
,  27.11.1938,  p.  4.)    Ainda que Pedro tenha os crisântemos extremamente bem
pintados com memória do melhor período flamengo, o crítico ressalta a diferença
com que Amélia traz sua pintura, que é mais instintiva do que intelectual, no sentido
que a pintora interpreta as flores e não necessariamente as copia. Isto reforça um 
estereótipo de gênero, no qual a mulher é o sentimento e o homem é a razão.  Já a crítica​
Exposição Luiz Maristany,​Guido não nos diz que Luiz é casado e não dá colocações
que envolvam gênero, pelo contrário, por toda a crítica ele ressalta a expressividade
natural de Luiz e sua capacidade de ter uma emoção estética e exprimir seu sentir,
com poesia, na pintora; sem que isso seja excessivamente masculino, deliciosamente
masculino, que tenha um delicado sentimento masculino e etc.    O valor do artista
está precisamente em sentir que há uma poesia em coisas que para a maioria são
inexpressivas. Não falta a Maristany essa sensibilidade, e a sua “mostra” de telas é
uma bela demonstração de que ele sabe sentir que ha um poema, uma secreta estesia
profunda em coisas que   aparentemente parecem nada revelar a sensibilidade.  (​
GUIDO​, 08.06.1930, p. 12) 
Numa primeira análise é visível que Guido contribuiu com a repercussão  do
trabalho de Amélia Pastro Maristany, entretanto, a forma como a faz – por
mais que seja com as melhores intenções, ele reforça esteriótipos de gênero
quando neutraliza características ditas femininas. 
Guiomar Fagundes, Flores,Óleo sobre tela, 45 x 65 cm, S/Data
Arte Comentada Capítulo 3 41
Amelia Pastro Maristany, Flores,Óleo sobre tela, 40 x 50 cm, S/Data
Amelia Pastro Maristany, Flores,Óleo sobre tela, 50 x 45 cm, S/Data
Pedro Alexandrino, Flores e Doces, 1899
REFERÊNCIAS
CHADWICK, Whitney. ​Mujer, Arte y Sociedad​. 2ª ed. Barcelona: Destino.    1992. 
Arte Comentada Capítulo 3 42
GUIDO, Angelo. A Exposição Hilda Goltz, Diário de Notícias, 1942, p.9.
______. Diário de Notícias, 1944, p.7.
LOPONTE, Luciana Grupelli. ​Docência Artística: Arte, Estética de Si e Subjetividades Femininas.
Tese. Programa de Pós-­Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. 
PERROT, Michelle. ​Minha História das Mulheres​. São Paulo: Contexto, 2007. 
SCOTT, Joan Wallach. ​Gênero: uma categoria útil de análise
histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2. jul./dez. 1995. 
SILVA, Ursula Rosa. ​A Fundamentação Estética da Crítica de Arte em Ângelo Guido: A crítica
de arte sob o enfoque de uma história das ideias.Tese. Curso de Pós­-Graduação em História.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2001. 
 SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. ​Profissão Artista: Pintoras e Escultoras                 
Acadêmicas  Brasileiras​ . 1ª ed. São Paulo: EDUSP, 2008. 
VARGAS, Rosane. ​Excluídas da Memória: Mulheres no Salão de Belas Artes do Rio Grande do
Sul​. Monografia. Curso de Bacharelado em História da Arte. Instituto de Artes. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013.
Arte Comentada Capítulo 4 43
CAPÍTULO 4
TANTO FAZ SE É PERFORMANCE OU NÃO
Natasha de Albuquerque
Universidade de Brasília, Departamento de Artes
Visuais
Brasília – Distrito Federal
xb
Maria Beatriz de Medeiros
Universidade de Brasília, Departamento de Artes
Visuais
Brasília – Distrito Federal
RESUMO: Este artigo expõe a necessidade da
instabilidade nas definições de arte e propõe o
termo: tanto faz se é performance ou não. Para
tal, é relacionada a teoria de Arthur Danto às
experiências da autora junto ao grupo Corpos
Informáticos. Percebe-se que, quando é dado o
nome de “performance” ou “arte” a uma situação
de desvio, há a tendência da ação justificar-se e
de não questionar-se. Essa tendência anestesia
as tensões de quebra do status quo. Chega-se
ao ponto central que é a própria dúvida. Meio à
flutuação da arte é proposto um nado no nada
pelo relato da “Oficina de Niilismo” - prática
participativa, em espaço público, que permuta
definições ao atravessar tanto o trivial quanto o
artístico.
PALAVRAS-CHAVE: Performance, cotidiano,
dúvida, Corpos Informáticos.
ABSTRACT: This article exposes the need to
the instability when it concerns the definitions
of art and brings out the term: “it doesn’t matter
whether it os performance or not”. To do so,
it relates the theory from Arthur Danto to this
work’s author experience alongside with the
group Corpos Informáticos. When the term
“performance” or “art” is given to a situation of
deviation, there is a tendency for action to justify
itself and not to question itself. This tendency
numbs the tensions of breaking the status quo.
There’s a point of arrival that it is its own doubt.
In the middle of the art’s floatation, it is proposed
that we swim in the void, in portuguese: nadar
no nada, through the Nihilism Workshop -
participative practice, in public spaces, that
change definitions once we cross the boundaries
of both trivial and artistic.
KEYWORDS: Performance, day life, doubt,
Corpos Informáticos.
1 | 	INTRODUÇÃO
Houve o caso, na exposição birutas (e)
vento, realizada pelo grupo Corpos Informáticos
naGaleriaEspaçoPiloto,emqueosfuncionários
da limpeza da galeria pediram uma reunião
conosco, para que o grupo definisse a eles o
Arte Comentada Capítulo 4 44
que era arte e o que era lixo. Foi de certo uma boa pergunta. A partir disso, e rimos
de nós mesmos por não saber muito bem como responder e decidimos na hora o que
poderia ser “limpo”.
Além de performances nos (E)ventos, esta exposição continha fotos, vídeos,
objetos manipuláveis, instalações (figuras 1 e 2) -- quem sabe monumentais quem
sabe nada artísticas. Havia trabalhos que correspondiam a linguagens artisticamente
inteligíveis, como havia objetos que denunciavam processos ou que pareciam estar lá
por questões aleatórias e espontâneas.
Figura 1: Exposição birutas(E)vento com instalação “lance de dados”. Espaço Piloto, UnB.
2014.
Figura 2: Exposição birutas(E)vento com “instalação sonora” e participação indefinida do
público. Espaço Piloto, UnB. 2014.
Somos cerca de dez integrantes no grupo, contaminados por corpos expandidos
e transeuntes que mexem, deixam, levam. Sendo assim, o senso de decisão do
Arte Comentada Capítulo 4 45
que é arte e o que deve ser excluído da exposição, se deixa para todos numa (im)
predominância (sic) de sentenças.
Em experiências de C.U. - Composição Urbana - (Albuquerque & Medeiros,
2013), lidamos diretamente com contextos que não correspondem ao meio artístico,
que, portanto, facilmente desapropriam o trabalho da arte. O trabalho artístico na rua
pode ser um desvio incisivo ou contraponto da normalidade ou C.U. ou arte que se
mistura na banalidade do cotidiano. Tal mistura é provedora de um questionamento:
isso é arte?
2 | 	A DÚVIDA
As perguntas “se isso ou aquilo é arte”, “se é performance ou não” parecem
um tanto comprometedoras. Nós, Corpos Informáticos, não costumamos responder
tais perguntas aos transeuntes perplexos que acreditam, ou não, que nossas ações
sejam arte. Deixamo-los soltos nas indefinições dos seus onze sentidos (Aquino &
Medeiros, 2011). Nisso, escutamos destes mesmos questionadores não somente onze
definições, onze sentidos para aquilo estar acontecendo, mas infinitas interpretações
partindo de um único acontecimento.
 A performance, por estabelecer um status de arte, pode-se manter distante do
cotidianooudoquenãoéarte.Percebe-seque,quandoédadoonomede“performance”
ou “arte” a uma situação de desvio, há a tendência da ação justificar-se e de não
questionar-se. Essa tendência anestesia as tensões de quebra do status quo, perde
espanto, como também gera um distanciamento da vida. A noção de distanciamento é
para Arthur Danto (2005) uma dicotomia entre mundo imaginário e mundo real. Assim,
quando a arte é provocada, é gerado um distanciamento por não a ver como realidade.  
O trabalho fomenta e gera impacto independente dessa pergunta ser respondida.
A questão é: se tal pergunta é tão recorrente, há mesmo necessidade de respondê-la?
Nós, Corpos Informáticos, não nos vemos amarrados em definições de arte,
transitamos na dúvida. Vemos necessidade de misturar as criações artísticas com
qualquer banalidade. Por isso é possível responder: tanto faz se é performance ou
não.
No livro ATransfiguração do Lugar-Comum,Arthur Danto (2005) narra um episódio
tangencial de uma exposição de sua curadoria, que consistia em obras de arte e
coisas que não são arte. Todas as imagens eram equivalentes (retângulo ou quadrado
vermelho pintado sobre uma superfície), mas Danto as descreveu com distinção. As
diferenças estavam não só em suas significâncias, nos títulos, nas faltas de título, mas
também na classificação de obras de arte e objetos que não correspondiam a esse
status. Gera-se uma reflexão perturbadora.
Arthur Danto pressupõe algumas formas de se definir um objeto como arte,
analisando o hiato entre as “obras de arte” e as “meras coisas”, para assim observar
Arte Comentada Capítulo 4 46
seus vazamentos. Nelas são feitas reflexões próprias e de filósofos para chegar a
alguma formulação sobre arte e, em seguida, rebater cada uma destas teorias. Aqui,
como em Danto, afirma-se para desconstruir.
A definição de arte pode começar pelo título; intenção artística, expressão,
símbolo, metáfora, representação, aparição, retórica, reflexão, convenção, filosofia
da ação entre outras. Todas essas tentativas de definir arte - mencionadas a priori,
na filosofia de Aristóteles, Platão e Sócrates – foram analisadas por Danto e, por
conseguinte, vistas como insatisfatórias e assim detidas.
O que não seria arte?
(...) a distinção entre obras de arte e meras coisas reais é inescrutável. Portanto,
nenhuma dessas teorias ajuda muito a estabelecer a linha divisória (...) pois ambos
os objetos são descontínuos em relação a qualquer coisa preexistente. (Danto,
2005, p. 70)
Em diversas discussões, a definição de arte é vista como resultado do negar o
próprio ato de definir. Mergulhamos em contradição. O interessante nessa pesquisa
não é a definição do que é arte (e o que não é), mas seus tropeços, seus saltos,
seus labirintos. Desta maneira, um objeto ou uma ação entram em controvérsia, na
impermanência entre a arte e uma coisa qualquer.
Pode-se entender que as caixas Brillo (figura 3) copiadas por Andy Warhol são
arte no momento que se encontram nas galerias e museus, e também entende-se
que as caixas Brillo do supermercado não são arte. Essa definição e diferenciação
é facilmente clara quando analisada em contextos distintos, quem sabe dicotômicos:
entre instituição de arte e cotidiano. Esses objetos transfiguram seu lugar, porém
conseguem se estabelecer em definições momentâneas a partir de seus contextos. 
Figura 3: Andy Warhol. Brillo Box. Museum United.1964.
Arthur Danto transgrediu a filosofia da arte para acompanhar a produção dos
artistas daquele momento e localidade. Hoje, quarenta anos depois, nos encontramos
Arte Comentada Capítulo 4 47
em um emaranhado muito mais complexo entre a arte e a vida. Não poderíamos
acreditar que uma teoria de outro contexto nos seria suficiente. Com o embasamento
do autor, poderíamos eleger objetos quaisquer como arte, mas não vemos necessidade
de sublimação e hierarquia.
Voltando à exposição birutas (e) vento, poderíamos jogar a arte no lixo ou falar
para os funcionários da limpeza que era tudo lixo, não arte; ou quem sabe, encher a
galeria de rastros nossos e do público – o que transmutaria o lixo em arte da mesma
maneira por estar exposto em uma galeria de arte – mas não vem ao caso deixar a
arte para tratar das “meras coisas”, ou transfigurá-las em arte.
O que a teoria de Danto não discute são as osmoses que acontecem fora de
espaços de convenção artística, as Composições Urbanas, as iterações do público
dentro e fora das galerias, a mistura de todos os contextos, as redes que conectam, a
internet, o esvaziamento do pensamento para uma prática artística.
Chegamos a um ponto em que as fronteiras entre o imaginário e o real bambaleiam
e andam bêbadas de mãos dadas, se contaminam uma na outra, criam um lance.
Afinal “(...)como criar sem vida e como viver sem arte? ” (Mariana Brites, 2016, inédito).
Fazemos arte no cotidiano, fazemos cotidiano na arte para que ambas se diluam por
completo numa experiência caótica. Nesse entremeio, entendido como hiato ou lacuna,
não há definições de caminhos a seguir. Boiamos em estado indeterminado flutuante.
Podemos entender o mundo como um armazém repleto de tipos de coisas,
onde não há um denominador comum. Esta ideia de armazém também é citada por
Arthur Danto (2002) ao analisar o legado de Fluxus. A ironia da História desestabiliza
a habilidade comum para distinguir as obras de arte do inventário do resto do mundo.
Navegamos, pois nenhuma definição nos fará mais sábios.
3 | 	OFICINA DE NIILISMO
Vamos a outro caso para reflexão. Durante o evento Performance Corpo Política
de 2015 (http://performancecorpopolitica.net) realizado pelo Corpos Informáticos,
distribuí boias aquáticas aos componentes do grupo e aos convidados do evento.
Estávamos juntos para realizar um percurso de metrô até a Feira da Ceilândia: local
onde seriam realizadas as performances do evento. (Figuras 4, 5, 6, 7 e 8)
Já na distribuição e na tarefa de encher as boias, a sensação era de caos e
bagunça por parte dos presentes. Não consegui explicar a todos que aquilo tratava
de uma concepção niilista, titulada Oficina de Niilismo onde o nado era no nada e os
entendimentos, as certezas, boiavam na paisagem.
Arte Comentada Capítulo 4 48
Figura 4: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos
e corpos expandidos. Na foto: família Gunther, Matheus Opa, Luísa Gunther, Beatriz Provasi,
Gustavo Silvamaral, Ary Coelho, João Quinto, Diego Azambuja, Bia Medeiros, Arthur Scovino,
Natasha de Albuquerque, Zmário, Diego Torres, Vanderlei Costa, Ayla Gresta e Rômulo Barros.
Fotografia: Matheus Carvalho Costa. Performance Corpo Política. Brasília, 2015.
Queria e tentei organizar algo estético e artístico como uma coreografia de
balé no qual as boias seriam tutus. Isso não se deu logisticamente e aconteceu de
forma dessincronizada. Queria que todos inseridos estivessem entendendo a ideia do
trabalho, que não era uma proposta gratuita por ter uma intenção inicial elaborada.
Fracassada a comunicação uniforme sobre o assunto, partimos.
Estes meus “quereres” foram bem contraditórios e incoerentes, uma vez que
a concepção era o não saber. Estávamos entre artistas, todos no entendimento que
fazíamos acontecer um evento de arte na rua, mas estávamos dispersos, baderneiros,
sem uma linha condutora daquele instante e sem um acordo de que naquele percurso
todos estariam fazendo performance, embora isso fosse um pouco óbvio já que
estávamos fazendo performances nas ruas há dois dias.
Alguns dançaram, outros nadaram no ar, também rolaram, outros nada fizeram,
como outros dormiram. Houveram movimentos simbólicos (de intenção aquática,
de balé, etc.), como também movimentos aleatórios que correspondiam ou nada
correspondiam à ideia inicial ou, ainda, nada correspondiam a nada. Transeuntes
aleatórios nos imitaram, vestiram boias, cantaram, fizeram cara feia, fingiram que
não viram, filmaram, riram, reclamaram, perguntaram o que era aquilo, mas nem nós
sabíamos ao certo.
Arte Comentada Capítulo 4 49
Figura 5: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e
corpos expandidos. Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015.
Figura 6: Oficina de Niilismo.Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e
corpos expandidos.Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015
Figura 7: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e
corpos expandidos. Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015.
Na Oficina de Niilismo ocorrem escapes de uma representação metafórica,
ou melhor, demonstrações de particularidades das expressões mais comuns às
desviatórias (Jacques, 2012) como práticas que escapam ao controle disciplinar através
de ações singulares, plurais, multiformes, astuciosas e teimosas que contrariam e
Arte Comentada Capítulo 4 50
sobrevivem a um sistema de conduta. São estas práticas: O cabelo alisado da mulher
que passou, o bocejo, a cambalhota grupal, a dança altruísta, a artista no canto, o
autista olhando, o senhor que sorriu e logo foi embora. É o que Arthur Danto define
como estilos: aquilo que restou de uma representação. Já Corpos Informáticos, define
toda essa bagunça em presentações, fuleragem e lance. Ainda que dissonantes, todos
estes estilos se agrupam na Oficina de Niilismo mesmo sem vestir boias ou metaforizar
um nado aquático ou decodificar o ocorrido.
São inventadas na hora as diferentes modalidades da oficina:
1. Nado ou nada sincronizado: aglomeração de nadadores no nada.
2. Nádegas a declarar: nado onde as nádegas estão em evidência.
3. Balé de boias: as boias circulares são utilizadas como tutu de balé e os outros
modelos como ajudantes da flutuação dos bailarinos. Esta modalidade também dialoga
com a modalidade 1.
4. Tô de boias: relativo à estar de boas (gíria); não querer algo; ignorar algo sem
causar um conflito; posição passiva de negação; fazer-se de desentendido.
5. Boiada: bando de gente nadando.
6. Nada com nada: Motivação ou solicitação aos nadadores permanecerem em
colagem com o nada: “vai nadar lá com o nada”.
7. Nad(x): relativo ao gênero com falta de distinções do ato de boiar.
As modalidades em branco correspondem ao que não foi inventado.
Algumas explicações teóricas que não foram dadas:
Tô boiando: gíria utilizada em momentos incompreensíveis, ou em momentos
em que não se sabe o que está sendo dito e não há grandes esforços para entender.
Bastante frequente em salas de aula. A sensação de estar boiando pode ser vista por
terceiros como uma expressão de “cara de paisagem” em que se olha, mas não se vê.
Método Scanning: modelo de apreensão visual proposto por Joseph Beuys.
Consiste em sentir o próprio corpo em continuidade com a paisagem; estender suas
linhas à linha infinita do horizonte. Muito utilizado por Beuys para requalificar a relação
do humano com o espaço aberto e afagar as visões descontínuas e fragmentadas da
cidade grande. Para esta oficina, o Método Scanning é sugerido para o deslizamento
nas superfícies da paisagem (a paisagem como qualquer coisa em totalidade,
imensidão.
O ato de boiar também é proposto em ar e em olhar: corpo que boia no vento,
olhar que não vê e se torna paisagem.
Deriva: prática teorizada pelo situacionista Guy Debord que consiste em seguir
um caminho não necessariamente óbvio, mas que se deixa levar pelo desejo e pelos
sentidos. Guy Debord também teoriza a prática da Psicogeografia para análise do
local. No caso, ficaremos com a parte de boas do Debord para contemplar o se perder
e não necessariamente o saber. O que nos leva no acaso e descaso também faz parte
Arte Comentada Capítulo 4 51
da deriva -não é necessário um destino.
Figura 8: Oficina de Niilismo. Por José Mário Peixoto (Zmário) para transeuntes. Fotografia:
Mateus Carvalho Costa. Performance Corpo Política. Brasília, 2015.
Não estávamos em um espaço institucional de arte, a maioria era artista que não
tinha certeza se estava performando porque isto não foi combinado nem descombinado,
não foi declarado um começo da performance nem um final, nem que era performance,
não foi dado um comando, apenas boias foram distribuídas. De fato, uma situação de
desvio e uma performatividade coletiva aconteceram sem uma intenção incisiva.
Estavam misturados: um evento de arte num lugar não instituído pela arte; artistas
com e sem intenção de fazer arte misturados aos transeuntes que compuseram e
decompuseram (DELEUZE, 2012); objetos estéticos elegidos para uma ação artística
com a vulgaridade de lojas de atacado; a funcionalidade de uma boia para não se
afogar com sua inutilidade no contexto não aquático, urbano ou metaforicamente
líquido (BAUMAN, 2009); entre outras misturas retóricas.
O que quero dizer é que neste acontecimento, intitulado como Oficina de Niilismo,
não é possível delimitar o que faz parte do campo artístico e o que não faz parte, o que
acontece como performance e o que é simplesmente vida cotidiana. As transfigurações
entre arte e vida são instantâneas, se redobram, significam e designificam (sic) em
questão de segundos.
A própria ideia de “oficina” é um vazamento da titulação de uma obra de arte, que
se diferencia da arte em si. Além disso, não houve pedagogia ou condução para este
Arte Comentada Capítulo 4 52
acontecimento ser de fato uma oficina. Quero dizer que, a Oficina de Niilismo não é
necessariamente uma oficina; nem obra de arte; nem uma expressão espontânea da
vida, mas ela é todas estas juntas e emaranhadas. Rizoma.
Não há necessidade de signos, metáforas correspondentes e significâncias para
todo e qualquer objeto que colocamos na galeria ou para qualquer movimento feito no
decorrer de uma performance. Não é necessário um título para que a criação aconteça,
nem a convenção de uma instituição de arte. O que interessa é a integração, a mistura
e a falta de diferenciações destes que desestabilizam o senso comum e normativo do
status quo.
Aqui, o ponto estratégico do trabalho é, portanto, a indefinição e a dúvida do
status de arte. A arte e as coisas banais se engolem, se lambuzam e se misturam;
causam perplexidade e dúvida; assim, potencializam-se mutuamente.
Proponho o termo tanto faz se é performance ou não para diluir a seleção do
que compõe e decompõe um trabalho de arte, como também para dissolver quaisquer
definições se o ocorrido é necessariamente uma obra de arte: uma obra que duvida
dela mesma. Digo que o trabalho não nega a arte como também não se firma nela,
ele desliza em ambos sentidos como um estado flutuante e confuso intencionalmente.
Busca-se nisso o estado de perplexidade, do não entender, de tratar do incoerente,
de se confundir, transgredindo num caminho além-inesperado. Daí chegamos na
multiplicidade, ou quem sabe, na complexidade de um rizoma.
É interessante essa reviravolta de uma única coisa, definida como coisa, como
arte, como nada, como inútil, transgressora, contemplativa, válida, inválida, inteligível,
duvidosa, fracassada, imanente. Queremos obras transitórias de um único sentido.
Queremos a liberdade de não se estagnar em um lugar e sair do entendimento
exclusivo para o ambíguo, indeterminado, flutuante.
AOficina de Niilismo tem continuidade por via dos transbordamentos de categorias
e possibilidades. Está sempre recorrente quando as modalidades se apresentam na
vida, num (e)vento, num olhar, num boiar e numa cara de paisagem.
4 | 	(IN)CONCLUSÃO
Estamos em uma poética de atravessamento que não se resguarda em um
único local, mas transmuta incessantemente e perde suas medidas. Tanto faz se é
performance ou não. Tanto faz que façamos ações espontaneamente, tanto faz se o
acontecimento é metrificado ou projetado anteriormente, tanto faz que isso signifique
uma coisa muito importante para nós, tanto faz que tenha ou não sentido para existir.
Nenhuma opção deixa de ser outra, todas as ambiguidades moram juntas e exercem
seu lugar ao mesmo tempo. Que sejamos tudo e nada simultaneamente. Estamos em
trânsito permanente.
As definições de arte, assim como sua indefinição, são inevitavelmente
Arte Comentada Capítulo 4 53
contraditórias. Quanto mais observamos as características da arte e do que não é
arte, estamos diferindo uma da outra mesmo que a busca seja sua integração. Os
conceitos parecem um anular o outro. A resposta para isto é chegar ao campo prático
da experiência e não se estagnar nas dicotomias dos conceitos.
As coisas podem ser criadas do nada, aniquiladas no nada, como também feitas
para nada. Não seria transformar algo em nada, mas desvelar o visto, abandonar algo
imposto e abrir espaço de indeterminações, flutuações ou novos começos. Considera-
se o nada como um ponto de partida, o nado no lugar em que não se sabe e não
se entende, a percepção vazia do espaço, o corpo que nasce em seu avesso e um
perplexo que dá tilt nos entendimentos. O niilismo surge em contextos decadentes,
de crise, enquanto a Oficina de Niilismo surge dos lugares abandonados, do vazio da
cidade, do olhar obtuso e do entremeio não governado que supera as dicotomias rindo
delas.
Nos lançamos na falta de explicações.
REFERÊNCIAS
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política. Brasília: Editora de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2011.
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Tradução: Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. 
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Porto Alegre: Deriva, 2007.                                                             
                                                          
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O Que é Fluxux? O Que Não é! O Porque/What’s Fluxus? What’s Not! Why. J Hendricks, E Salles,
AC Danto - 2002 - Centro Cultural Banco do Brasil.
Arte Comentada Capítulo 4 54
https://natashadealbuquerque.hotglue.me/?toboiando
http://performancecorpopolitica.net/
Arte Comentada Capítulo 5 55
CAPÍTULO 5
ENTRE JANELAS E PESSOAS: EM BUSCA DE UMA
ESCUTA CITADINA
Thais Rodrigues Oliveira
Doutoranda do Programa de Pós-graduação
Interdisciplinar em Performances Culturais
da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Professora do curso de Cinema e Audiovisual da
Universidade Estadual de Goiás (UEG). Goiânia –
GO.
Sainy Coelho Borges Veloso
Doutora em História Cultural pela Universidade de
Brasília (UnB) com pós-doutorado em Cultura y
Sociedad pela Universidad de San Martín, Buenos
Aires. Orientadora da pesquisa e professora
do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar
Mestrado, Doutorado, em Performances Culturais
da UFG. Goiânia – GO.
RESUMO: A investigação aqui sistematizada
procura circunscrever a problemática: os
sons do cotidiano da cidade nos representam
culturalmente? Há uma performance cultural,
sonora, goianiense? Como ela se manifesta?
Portanto, nosso objetivo primeiro foi identificar,
coletar, registrar, sons em quatro lugares
significativos para a cidade de Goiânia e,
posteriormente, editá-los visando a realização
de uma instalação sonora intitulada Janelas
sonoras, a qual nos serve como investigação
quanto à recepção dos sons selecionados.
Para tanto, fundamentamos em autores
teóricos como: Richard Schechner (1985; 2003;
2006), Lilian Campesato (2006; 2007), Bernd
Schulz (1999), entre outros. Esperamos que
essa experiência sensível, sonora, realizada
como investigação poiética, contribua para a
discussão dos sons como performance cultural
sonora e nos permita entender a cultura local
em sua diversidade.
PALAVRAS-CHAVE: Performances Culturais;
Performance Sonora; Instalação Sonora; Arte
Sonora; Performance Urbana.
ABSTRACT: This investigation seeks to
circumscribe the issue outlined here: do
the sounds of the city’s daily life represent
us culturally? Is there a cultural, sonorous,
performance of Goiânia? How does it manifest
itself? Therefore our first goal was to identify,
collect, record, sound in four places meaningful
to the city of Goiânia and, posteriorly, to mix the
sounds for the installation of a sound installation
entitled Sound Windows, which serves as the
investigation of the reception of the selected
sounds. For this, we base theoretical authors as:
Richard Schechner (1985; 2003; 2006), Lilian
Campesato (2006; 2007), Bernd Schulz (1999),
and others. We hope that this sensitive sound
experience, performed as a poetic investigation,
contributes to the discussion of sounds as a
cultural sound performance and allows us to
understand the local culture in its diversity.
KEYWORDS: Cultural performances, Sound
performance, Sound installation, Sound Art,
Arte Comentada Capítulo 5 56
Urban Performance.
1 | 	INTRODUÇÃO
Nesseartigodiscutimosumapropostaartísticadeinstalaçãosonoraaserrealizada
na cidade de Goiânia, estado de Goiás. A produção artística é componente prático
integrante da pesquisa em andamento, para doutorado no Programa Interdisciplinar
em Performances Culturais, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal
de Goiás (FSC/UFG). A investigação se intitula: “Performances sonoras: uma escuta
do cotidiano goianiense” e tem como objetivo averiguar territórios mais expressivos
sonoramente na cidade de Goiânia.
Na primeira fase de pesquisa escutamos, coletamos, registramos e transcrevemos
sonoridades mais expressivas da cidade, apontando repetições e sons específicos de
Goiânia. Em um segundo momento, como indicado nesse artigo, vamos explorar essas
sonoridades com a proposta de realização de uma instalação sonora. Interessa-nos,
portanto, a linguagem artística a partir da sonoridade (o que alguns teóricos denominam
como arte sonora), bem como a relação entre a obra artística e a percepção dos sons
pelos habitantes da cidade.
Ainstalação artística sonora complementa o estudo teórico, bem como o mesmo é
basilar para a primeira. Para tanto, privilegiamos uma abordagem interdisciplinar, com
diferentes autores e conceitos, característica do campo de estudos em Performances
Culturais, um campo interdisciplinar. Estes estudos se propõem a construir um
conhecimento aberto, múltiplo, no qual é possível respeitar cada um dos territórios
particulares de conhecimento, analisando-os conjuntamente aos contextos históricos
e culturais da sociedade. A partir do diálogo entre autores buscamos refletir nesse
artigo a respeito da realização de uma experiência sonora que possibilite ao ouvinte a
descoberta de várias sonoridades de seu meio cultural.
Quando falamos de experiência referimo-nos à apreensão corporal em ação ao
experimentar choques emocionais instantâneos, muitas vezes involuntários. Nesse
processo, segundo Eduardo Duarte Gomes da Silva (2015, p. 73), “a memória toca
a superfície da ação, pois precisa acionar um repertório de referências de reações
imediatas em interação com o mundo”, uma vez que é formada pelas experiências
emotivas. Dessa maneira, a memória, ainda segundo o autor, participa efetivamente
e continuamente da relação do corpo com o mundo. A tríade experiência, emoção e
memória compõem as circunstâncias históricas, contextuais e práticas dos fenômenos
sociais. Impossível desconsiderar o rico imaginário que produzem em referências,
em estruturas míticas, ideias, crenças e desejos, religando o mundo dos fenômenos
práticos, experimentados pelos sentidos, com o mundo dos pensamentos cognitivos,
capazes de escreverem o mundo (SILVA, 2015). Portanto, trata-se de uma experiência
sensível, poiética. Assim, por meio da experiência sonora acreditamos apreender a
Arte Comentada Capítulo 5 57
cultura, em sua diversidade, ao mesmo tempo em que a pensamos para a criação,
pois como afirma Passeron (2004, p. 10), a poiética “é o pensamento possível para a
criação”. Dessa forma, ambas – a investigação e a criação artística – têm o poder de
se autoinfluenciarem nesse processo.
2 | 	PERFORMANCES CULTURAIS E ARTE SONORA: EM BUSCA DE UMA
PERFORMANCE SONORA CULTURAL
O que nos apresenta um som? Fisicamente, é o resultado de percepções de
distúrbios das moléculas de um meio num certo intervalo de tempo, ou seja, o som
é produzido quando alguma coisa faz o ar se mover e isso acontece por meio da
compressão e rarefação do ar. Portanto, se o som se movimenta pelo ar, a nossa
experiência no mundo é intimamente sonora, porque fisicamente o som nos atravessa.
O som nos orienta no espaço físico e social. Localiza-nos em determinado tempo
histórico. Ao escutar uma sonoridade podemos ser capazes de relembrar de pessoas
especiais, momentos e situações cotidianas vividas no passado e também no presente
de maneira individual ou coletiva. Ao reconhecer o som como um elemento capaz de
gerar uma linguagem que remete a codificações diversas, ou seja, a vários símbolos
e significados, é recorrente a utilização do termo sonoridade. Uma sonoridade pode
ser composta por falas (combinação de sons da voz humana organizados em uma
ordem lógica para o entendimento da palavra falada), música (composta de sons que
se formam a partir de pressões acústicas cíclicas e do silêncio) e de ruído (que não
possui ciclo definido e contém frequências distintas entre si).
Assim, a sonoridade se constitui de situações sonoras, muitas vezes não
perceptíveis por nós, uma vez automatizadas em nossas ações diárias. Elas são
capazes de gerar informação e podem carregar um universo gigantesco de significados.
A força imaginativa do som e sua relação com a identidade e memória de um povo
reforçam a sua importância nas diversas práticas sociais. Destarte, podemos afirmar
que ao produzir som estamos realizando uma performance sonora.
O termo performance tem origem incerta e a nós interessa mais sua definição do
que buscar o lugar comum de sua produção. O termo aqui utilizado se assemelha a
uma espécie de atuação, no sentido psicanalítico do termo, em que a emoção real é
simbolizada por um elemento da própria cultura, por exemplo, o som como forma de
comunicação não-verbal. Isso significa que a coesão social se mantém permanente,
todavia, evidencia um conflito; a agitação social preserva-se de certa forma
inconsciente. Ela corresponde ao drama vivido pela cultura e, consequentemente, as
emoções raramente são explicitadas e reconhecidas.
O campo de Estudos das Performances Culturais elabora um conceito plural, que
Sainy Veloso (2014) define como um campo de estudos configurado pela combinação
interdisciplinar de distintas áreas do conhecimento, tendo como base estudos que
Arte Comentada Capítulo 5 58
entrecruzam três matrizes: a sociológica, de Erving Goffman (2001; 2011; 2012); a
antropológica, de Victor Turner (1974; 1985; 2008); e a teatral, desenvolvida pelo
teatrólogo Richard Schechner (1985; 2003; 2006). Esse campo de estudos “engloba a
experiência vivida, ou seja, os aspectos informais da vida cotidiana e do comportamento
humano, indo muito além das artes do espetáculo ou da dicotomia entre arte e vida”
(VELOSO, 2014, p. 195).
Quando referimos à performance da vida, a cultural, estamos compondo as
Performances Culturais, um conceito que deve ser citado no plural, como manifestações
múltiplas, uma vez que
performances culturais se constituem pela identificação, registro e análise de
determinado fenômeno em suas múltiplas configurações, em seu processo
contraditório de formação, de constituição e de movimento, de estrutura e de
gênese, de ser e de vir a ser, na percepção deste fenômeno em diálogo com
estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de
formas culturais contemporâneas. Performances Culturais, mais uma vez sempre no
plural, são a busca da determinação do que foi, do que é e do que se pode tornar,
não apenas um levantamento ou registro particular do “essencial” de determinada
cultura, mas como uma forma em processo de diálogo. (CAMARGO, 2013, p. 10,
grifo do autor).
Complementa o conceito de Robson Camargo, acima mencionado, o de Richard
Schechner (2006). Este autor acredita que as performances culturais consistem em
comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis, definindo que
as performances culturais “marcam identidades, modificam e redimensionam o tempo,
enfeitam e remodelam o corpo, contam histórias, permitem que se jogue com condutas
repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas, apresentadas e representadas tais
condutas” (SCHECHNER, 2006, p. 13).
Os estudos das Performances Culturais buscam, portanto, o estudo da
performance da cultura, comparando as múltiplas civilizações e suas representações,
as práticas sociais, buscando o “entendimento das culturas através de seus produtos
‘culturais’ em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as
experimenta, as percebe e se percebe” (CAMARGO, 2013, p. 1). Nesse sentido, as
sonoridades urbanas são produtos culturais fabricados pelos habitantes da cidade que
representam essa cultura em forma de som.
A arte sonora também está circunscrita em um campo interdisciplinar. Localizada
entre a música e algumas formas de expressões artísticas, a discussão sobre o lugar
que o som ocupa nas artes é motivo de pesquisas e indagações, sendo debatida por
diversos estudiosos a partir de seus diferentes pontos de vista. Dan Lander (1990)
reforça, por exemplo, a dificuldade que alguns artistas sonoros encontram na definição
de suas obras, pois desde o seu surgimento, a arte sonora foi considerada como um
movimento à margem da linguagem musical. Lilian Campesato (2007) esclarece que
Luigi Russolo, com a criação do manifesto de 1913 em que classifica os tipos de
ruídos sonoros, foi um dos primeiros artistas a incluírem o som na arte, ao utilizar som/
ruído em contraste com a tradição clássica da música.
Arte Comentada Capítulo 5 59
Em sua pesquisa a respeito de um conjunto de obras determinadas como “obras
de arte sonora”, Lilian Campesato (2007, p. 63) define o termo como “uma reunião de
manifestações artísticas que estão na fronteira entre a música e outras artes, em que
o som é um material de referência dentro de um conceito expandido de composição,
gerando um processo de hibridação entre som, imagem, espaço e tempo”. Para
Campesato e Iazetta (2006), o surgimento do termo específico para esse campo tem
alicerce em trabalhos de artistas como as performances do grupo Fluxus e John Cage,
trabalhos audiovisuais de Nam June Paik, Norman Mclaren, Oskar Fischinger entre
outros. Esses artistas auxiliaram na consolidação do termo e sua divulgação enquanto
forma de arte. A respeito da arte sonora a autora afirma que
na arte sonora o espaço real em que a obra se apresenta é parte da própria obra.
E não são apenas os elementos “acústicos” do espaço que entram em jogo, mas
sim a totalidade de sentidos que o espaço gera: dimensão, cor, textura, imagem,
superfície, forma, projeção, etc. Cada um desses elementos pode adquirir um
significado especial dentro da obra. (CAMPESATO, 2007, p. 134, grifo do autor).
De forma interdisciplinar “a arte define-se como um lugar de importação de
métodos e conceitos, uma zona de hibridações” (BOURRIAUD, 2009, p. 143). Sons
também são produtos de ambientes sonoros culturais, percebidos e interpretados por
uma audiência que recebe informações audíveis e as interpreta, dando a elas um
caráter sígnico ou simbólico, segundo sua experiência cultural audível. A arte sonora
tem, portanto, um caráter híbrido.
As paisagens sonoras são constituídas por práticas sociais inscritas em espaços
urbanos que configuram modos de sentir e de fazer comunidade. Mas como seriam
recebidos e assimilados os ruídos que estão a nossa volta, na cidade de Goiânia? Na
tentativa de esclarecer esse questionamento estamos consideramos o ruído sonoro
como fonte de dados sociais em que “necessitamos registrar e transcrever o evento
sonoro para fins de análise” (BAUER, 2002, p. 366).
Sons próprios e simbólicos pertencentes à paisagem da cidade caracterizam o
que chamamos de performance sonora cultural. Combinando estudos das sonoridades
e do campo de estudos das performances culturais esperamos obter características
que auxiliem em uma escuta citadina por parte dos habitantes goianienses no que diz
respeito a sua performance sonora cultural.Assim, tomamos como performance sonora
cultural a manifestação de uma ação sonora expressiva do indivíduo no ambiente em
que está inserido, espontânea ou não.
3 | 	A CIDADE DE GOIÂNIA E SUA PERFORMANCE SONORA CULTURAL: A
DEFINIÇÃO DOS LOCAIS PARA GRAVAÇÃO DE SONS
A cidade como campo de pesquisa possibilita diferentes abordagens a respeito
das representações que formam a identidade local. José Guilherme Cantor Magnani
(2016), um dos grandes pesquisadores em antropologia urbana do país, afirma que
Arte Comentada Capítulo 5 60
para a realização da pesquisa etnográfica urbana, é importante que o pesquisador
busque por um olhar “de perto e de dentro”. O autor usa essa proposta de
análise, em contraste com o que ele categoriza como “de fora e de longe”, para
reforçar que a etnografia pode cooperar no conhecimento da dinâmica urbana em
sua diversidade. Magnani (2016) considera que um olhar “de longe e de fora” prioriza
uma análise sobre a cidade de maneira mais genérica, com um ponto de vista “macro”
(vai buscar para análise dados das grandes variáveis da cidade: demografia, ordem
econômica, entre outros), recorrente em alguns estudos da geografia. Um olhar “de
perto e de dentro” seria mais detalhista que, com base no olhar etnográfico, busca
entender a cidade a partir do modo de vida de seus atores sociais. A perspectiva
“de perto e de dentro” é uma proposta que inicia, segundo o autor, uma “apreensão
dos padrões de comportamento ̶ não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos,
variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre,
por meio dos seus criativos arranjos, na paisagem da cidade e em diálogo com seus
equipamentos” (MAGNANI, 2016, p. 185).
Os ruídos emitidos por pessoas que habitam a cidade e produzem sons cotidianos
ao falar, andar, dirigir seus carros, pegar ônibus, fazer compras, comer e tudo o que
se trata de atividades que realizam no contexto social, constituem uma performance
cultural goiana a medida em que gestos, falas, modos e maneiras de agir e reagir,
objetos e uso de máquinas fazem parte de um modo cultural de cada povo, de cada
cultura.
Goiânia completou 84 anos de existência no ano de 2017, abrindo uma nova
fronteira de imigração para o estado de Goiás e se tornou símbolo de modernidade
urbanística na década de 30 para o Brasil. A cidade foi projetada na década de 1930,
para pouco mais de 50 mil habitantes, e hoje possui cerca de 1.466.105 habitantes
(segundo dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - coletados em
2017. Já a região metropolitana possui 2.458.504 habitantes). Erguida sob o discurso
da modernidade, Goiânia teve o estilo arquitetônico art déco predominante em sua
construção. O termo art déco refere-se a um estilo decorativo, luxuoso, destinado
à burguesia enriquecida do pós-guerra, que se afirma na arquitetura europeia no
período que vai de 1925 até 1939. Segundo dados do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN, on-line), a cidade de Goiânia possui atualmente o maior
acervo arquitetônico de art déco do Brasil.
Uma cidade como Goiânia está carregada por diversas representações sociais
(MOSCOVICI, 2003) que marcam sua história e definem sua paisagem. Como toda
grande cidade é carregada acusticamente por ruídos sonoros: os carros que passam
na rua, as pessoas falando, o celular que apita com uma nova mensagem de Whatsapp,
o caminhão de coleta seletiva, o vendedor de pamonha, entre outros. Na tentativa de
recolher e capturar alguns sons característicos da cidade, elegemos quatro pontos
públicos da cidade de Goiânia – alguns de maior frequência de seus habitantes e
outros pontos históricos. Os quatro locais selecionados para captação de sons foram:
Arte Comentada Capítulo 5 61
a Feira Hippie, a região da pecuária de Goiânia, o estádio de futebol Serra Dourada e
o bairro central da cidade.
Uma das práticas sociais mais frequentes na cidade de Goiânia tem relação
com as feiras de roupas e artesanato que acontecem diariamente em vários bairros
diferentes. Goiânia é conhecida como grande polo confecção e recebe turistas de
todo o país que vem para a cidade na intenção de comprar produtos mais baratos
para revenda em outras localidades brasileiras. Elegemos para a pesquisa a feira
mais conhecida da cidade que tem o nome de Feira Hippie. A feira Hippie de Goiânia
é a maior feira aberta ao ar livre do Brasil e da América Latina (com mais de seis mil
expositores, conforme reportagem de O Popular em 2013). Acontece todo final de
semana na cidade e está localizada na Praça do Trabalhador – Setor Norte Ferroviário,
com um horário de funcionamento que começa no sábado à tarde e termina domingo
às 15 horas.
A festa agropecuária de Goiânia foi fundada no ano de 1941 e permanece como
uma das festas mais tradicionais da cidade. Ocorre em uma região central da cidade e
ocasiona tumulto no tráfego de carros durante o período em que acontece. A festa se
realiza anualmente nos meses de maio, tendo em média a duração de trinta dias. São
expostos animais do campo, máquinas agropecuárias, shows com artistas famosos,
torneios de laço e rodeio são executados. Escolhemos a festa agropecuária de Goiânia
para a captura de sons, pois a atividade agropecuária tem grande destaque no estado
de Goiás. Além disso, essa festa popular reúne até quarenta mil pessoas por ano, e
aos sábados, a região comporta uma feira livre conhecida como Feira da Marreta,
onde é possível a troca de produtos diversos (novos e usados) entre os consumidores.
Outro local escolhido foi o estádio de futebol Serra Dourada, inaugurado na cidade
de Goiânia no dia 09 de março de 1975. Na data de sua inauguração o estádio contava
com uma capacidade máxima de lotação para oitenta mil pessoas. Com o fechamento
da parte denominada de “acesso geral”, o estádio tem atualmente capacidade para
cinquenta mil pessoas.Apesar dos times de futebol da cidade de Goiânia não possuírem
tanta fama nacional na mídia televisiva, os jogos dos times goianos tem um público
ativo e volumoso, além de torcidas organizadas bem estruturadas e articuladas na
cidade. O espaço do estádio Serra Dourada também comporta diversos shows entre
eles um dos maiores festivais de música sertaneja do Brasil: o Villa Mix Festival.
A Região Central de Goiânia foi erguida na época da fundação da capital,
juntamente com a inauguração de sua pedra fundamental no dia 24 de outubro de
1933. Arquitetada em pleno Cerrado goiano, o projeto inicial de toda a cidade que
previa as três avenidas (Avenidas Goiás, Tocantins e Araguaia), convergindo
para o palácio do governo (Praça Cívica), atualmente delineia e compõe o bairro
central da cidade, escolhido para a pesquisa, portanto, por ser o primeiro bairro
fundado na cidade.
Segundo Bauer (2002, p. 386), “os materiais sonoros são um campo ainda virgem,
esperando seu emprego metodológico nas ciências sociais”. Para o autor, o som
Arte Comentada Capítulo 5 62
precisa ser considerado como um meio de representação simbólica, fonte útil de dados
sociais. Ele compreende que a pesquisa qualitativa com som deve ser feita de maneira
que possam ser registrados sons para que seja possível obter algum traço material.
Tais sons devem ser transcritos para que possa ser possível identificar repetições
ou características especificas correspondentes aos eventos vinculados a esses sons.
Por fim, “esses eventos sonoros tem lugar no contexto de um sistema social, cujas
operações nós queremos compreender, através do exame de sua produção e recepção
sonoras” (BAUER, 2002, p.367). O autor propõe um “passeio de escuta” que consiste
em realizar um passeio no ambiente em que os sons serão analisados. Ao mesmo
tempo, escutar conscientemente os ruídos que seriam esquecidos em outra atividade.
Após a realização do “passeio de escuta”, o autor recomenda que seja realizado um
“diário de sons” que consiste em “uma técnica [...] na qual tomamos uma amostra de
tempo por dia, ou um período mais longo, para registrar e/ou descrever, em intervalos
predeterminados, por exemplo, a cada 30 minutos, os ruídos que são audíveis naquele
momento (BAUER, 2002, p. 375).
De tal maneira, com um diário de campo em mãos e um gravador de sons ligado
comecei a realizar a observação e escuta dos ruídos nos quatro ambientes selecionados
para essa pesquisa. Anotei todas as impressões, meu trajeto nos espaços, os minutos
de observação, dias e intervalos de tempo escutados. Os aparelhos utilizados para
gravação de sons nessa pesquisa são de fundamental importância, pois a partir deles
que são feitos os registros materiais das sonoridades escutadas. Foram utilizados dois
gravadores de som: o primeiro, um gravador de áudio TASCAM HD P2 (gravador digital
de áudio de alta resolução), que é maior e chama a atenção de quem o vê. Pensando
nisso, em algumas situações utilizei o segundo gravador, o M AUDIO Microtrack II,
mini gravador digital de áudio que, por ser pequeno e do tamanho de um celular, torna
a gravação mais acessível em lugares muito cheios sem chamar muito a atenção.
De acordo com a ocasião, por conta do ambiente no momento da gravação, foram
utilizados também os seguintes microfones: Shotgun Sennheiser ME 66 (microfone
ultradirecional, que tem a potencialidade de direcionar o foco da gravação de sons,
sendo um microfone capaz de capturar sons a longas distâncias); o microfone
Behringer B2 (microfone que grava todos os sons a sua volta com o mesmo volume)
e o microfone lapela Sennheiser Lapela EW 100 G2 (que pode ficar escondido na
roupa e capta sons próximos ao local em que foi fixado). Estes equipamentos auxiliam
na captura em alta qualidade das sonoridades escutadas, assemelhando-se ao som
que o ouvido humano é capaz de escutar, possibilitando uma análise mais próxima da
sonoridade cotidiana existente a nossa volta na cidade de Goiânia.
Durante o período de um ano de meio foram coletados ruídos sonoros nas
quatro regiões acima mencionadas, totalizando mais de trinta horas de som
gravadas em alta qualidade. A partir dessas gravações, selecionamos e editamos
os sons, uma vez que muitos deles eram iguais, mesclados a outros diferentes.
São esses sons que comporão a instalação artística.
Arte Comentada Capítulo 5 63
4 | 	O PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA: AS JANELAS SONORAS
A arte sonora tem grande campo de exploração. Esperamos que a partir da
sonoridade e de uma performance artística, seja possível refletir e problematizar sobre
o modo pelo qual ocorrem os processos de recepção dos sons cotidianos. Mas como
reproduzir em uma instalação sonora essa provocação de significados? Como localizar
o ouvinte na cidade de Goiânia a partir da instalação sonora?
A escuta é artifício fundamental na realização da pesquisa de doutorado em
questão. O primeiro processo de escuta foi feito pelas pesquisadoras durante a escuta
das sonoridades nas quatro regiões escolhidas para a pesquisa. A instalação sonora
propõe um segundo processo de escuta, a ser vivenciado pelas pesquisadoras e pelos
transeuntes da via pública que presenciarem a reprodução dos sons no momento da
execução da instalação sonora.
Roland Barthes (1990) define uma diferença básica entre ouvir e escutar. Para
o autor, ouvir dependeria somente do ato físico do ouvido em receber sons, enquanto
a escuta depende da atenção, da memória, da seleção de sons. Escutar implica uma
atenção minuciosa para as vibrações sonoras. Escutar não é uma ação inconsciente,
mas uma ação em que forçamos a percepção seletiva dos sons que nos rodeiam. O
ato de escutar contribui para a descoberta de novas possibilidades que nos escapam
durante a rotina cotidiana.
O termo instalação artística surge com uma proposta de explorar o espaço
tridimensional: “o artista realiza seu trabalho no próprio espaço, juntamente com outros
possíveis elementos presentes neste” (BOCHIO; CASTELLANI, 2011, p. 3), e ainda:
esta modalidade artística se insere na arte de participação, já que sua fruição
depende de deslocamentos corporais e situações a serem vividas naquele tempo
e espaço por processos de inclusão e/ou de interação. As descobertas do espaço
proposto pela instalação desencadeiam-se através de um sistema relacional, que
opera através da conexão das várias partes que compõem a instalação. (BOCHIO;
CASTELLANI, 2011, p. 4).
	 Como mencionam os autores na citação acima, a instalação implica na presença
de público no espaço em que a obra vai acontecer. Uma vez localizadas as definições
que circundam o termo instalação artística, nos propomos à realização da nossa obra
artística, em forma de instalação sonora. A artista e pesquisadora Raquel Stolf coloca
que: “proposições sonoras apresentam-se como planos de partida e podem solicitar
uma participação do corpo, de ações físicas, como podem solicitar atos mentais,
esperas e outras situações como modulações de escuta” (STOLF, 2008, p. 54).
Considerando que o ato de criação resulta de uma recriação inspirada em
diversos autores e artistas, para a concepção dessa instalação sonora, baseamos
em dois artistas conhecidos mundialmente: Luigi Russolo (1885-1947) e John Cage
(1912-1992). Luigi Russolo (artista futurista italiano), pois o seu manifesto publicado
em 1913, “L´Arte dei Rumori” (Arte de Ruídos), já indicava que era preciso dedicar
atenção à escuta dos ruídos a nossa volta. John Cage (compositor e artista), porque
Arte Comentada Capítulo 5 64
foi um grande investigador das questões que envolvem o som e a escuta. Mas existe
também inspiração em trabalhos de dois artistas brasileiros: Raquel Stolf e Floriano
Romano. Raquel Stolf com as pesquisas: “assonâncias de silêncios [sala de escuta]”,
2008-2010, “sou toda ouvidos” (2007-2010), “céu da boca” (2009-2010). Floriano
Romano com instalações sonoras e pesquisas como: “a cidade sonora” (2012),
“falante” (2007), “sapatos sonoros” (2009), “lugares e instantes” (2008). Destacamos
que os dois pesquisadores estudam e investigam as situações de escuta.
Apresentar a cidade sonoramente aos seus habitantes foi o que nos instigou
à pesquisa. Pensar e produzir artisticamente uma investigação que possibilite a
provocação de significados a partir das sonoridades em determinado público poderá
se tornar um suporte para entendimento dos processos de escuta dos indivíduos
na sociedade goianiense. Esperamos que com isso, “a obra de arte torne-se um
experimento de percepção, em que o ouvinte/espectador rastreie experiências que
o próprio artista teve, através da obra” (SCHULZ 1999, p. 25), além de suas próprias
experiências sonoras.
	Atenta às colocações de Schulz (1999) e na busca pela escuta citadina, surgiu a
proposta de instalação artística: Janelas Sonoras. Para a realização dessa instalação
escolhemos um prédio antigo da capital, pela sua importância arquitetônica e cultural
para a cidade. O prédio, conhecido como Grande Hotel, foi o primeiro hotel da cidade,
construído na época da fundação de Goiânia, ao estilo art déco. O edifício fica
localizado em um cruzamento de ruas bem movimentadas da região central: Avenida
Goiás e Rua 03, conforme podemos ver na Figura 1.
Figura 1 – Fotografia Panorâmica da Fachada do Grande Hotel em Goiânia
Fonte: Thais Oliveira (2017).
Campesato e Iazetta (2006, p. 777) afirmam que uma instalação sonora ocorre
quanto “som é o elemento unificador da obra, seja pela ressonância dos espaços e
objetos, seja pelo aspecto conceitual em que o som se insere”. Para a proposta de
execução da instalação sonora discutida nesse artigo, pretendemos posicionar uma
caixa de som para cada janela do Grande Hotel. Com as caixas de som posicionadas em
Arte Comentada Capítulo 5 65
cada janela, reproduziremos alguns dos sons já coletados na pesquisa de doutorado,
formando assim, janelas sonoras no centro da cidade de Goiânia. Cada janela vai
reproduzir um som diferente. Serão, portanto, simultaneamente, 41 sons diferentes
reproduzidos ao mesmo tempo.
Raymond Murray Schafer (2011, p. 189) afirma que as sonoridades podem
ser classificadas “de acordo com suas características físicas (acústica) ou com o
modo como são percebidos (psicoacústica); de acordo com sua função e significado
(semiótica e semântica); ou de acordo com suas qualidades emocionais ou afetivas
(estética)”. Do mesmo modo, Martin W. Bauer (2002) sugere um tipo de catalogação
dos sons em que devem ser considerados: a quantidade de ciclos (quantas vezes são
reproduzidos), as sonoridades (quem ou o que as produz) e o tipo de som (alta ou
baixa fidelidade, grave, médio ou agudo). Por esse viés, seguiu nossa metodologia,
atentando-nos aos ensinamentos dos autores: coletar, registrar, transcrever e
associar a sonoridade, bem como registrar observações de maneira detalhada
em diário de campo – ao grupo social que a produz. Tais recomendações coexistem
com os ensinamentos da interação social do método etnográfico, no que se refere
à produção de conhecimento sobre a “realidade”.
Como dito anteriormente, essa instalação sonora nasce do próprio processo
de escuta da pesquisadora e sua apreensão sobre os sons da cidade de Goiânia
nas regiões escolhidas para a pesquisa. Os sons escolhidos para a reprodução na
instalação sonora foram sons que se repetiram nos quatro ambientes selecionados e
outros sons que são característicos da cidade de Goiânia, destacando-se como marcas
sonoras. Uma marca sonora faz referência a um som único que possui “determinadas
qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado pelo povo daquele
lugar” (SCHAFER, 2011, p. 27).
Dentre os sons repetidos destacam-se: o som do caminhão de coleta seletiva
de lixo da cidade, som de vários periquitos cantando em árvore no fim da tarde, som
de passos dos caminhantes da cidade, som de fogos de artifício lançados para o céu,
som de cascos de cavalo andando pela cidade, som de do galo cocoricando, som de
carrocinhas de reciclagem, som de buzinas som de ônibus de bairros, som de carros,
som de motocicleta.
Já entre os sons caracterizados como marcas sonoras podemos destacar: o
som de um caminhante na Avenida Anhanguera gritando “Vilaaaaaa” em referência
a um time de futebol da capital, som dos transportadores de carga na Feira Hippie,
som de fritura de pastel, o som do vendedor de pamonha que anuncia a venda de
seu produto em uma bicicleta, som de ambulantes vendendo chip para celulares. Há
também o som de ambulantes à procura de compradores de ouro, som do vendedor
de picolé, som do vendedor de bosta em formato de argila na Feira Hippie, som de
trechos de show da Pecuária, som de trechos de show do festival Villa Mix, som de
torcida organizada de futebol, som de vendedor de roupa e de vendedora de comida
na Feira Hippie. No centro da cidade escutamos o som de vendedor de sitpass (bilhete
Arte Comentada Capítulo 5 66
eletrônico adquirido por passageiros de ônibus para que possam utilizar os serviços
prestados pelas companhias de ônibus que circulam na cidade de Goiânia), em outra
região escolhida o som do estádio de futebol vazio, som de amendoim sendo comido
por torcedores no estádio, som de bola de futebol no estádio Serra Dourada, som de
vaca mugindo, som de crianças brincando no parque de exposição agropecuária de
Goiânia.
A intenção da proposta da instalação sonora é dar “voz” para esse prédio histórico
da cidade, que metaforicamente a partir das janelas estaria “falando” ruídos sonoros,
ou seja, dando de certa forma visibilidade aos ruídos sonoros que geralmente, no
cotidiano, passam despercebidos por nós. Pela instalação sonora buscamos propor
uma escuta memorialística, “de perto e de dentro” da cidade de Goiânia, fazendo
referência à proposta de estudo em ambientes urbanos realizado por José Guilherme
Cantor Magnani (2016), mencionado neste artigo. Com um volume amplificado de forma
semelhante à emissão dos ruídos do cotidiano, esperamos que os sons selecionados
e reproduzidos na instalação sonora se misturem aos sons do ambiente, no caso em
questão, na fachada do Grande Hotel.
A instalação sonora acontecerá durante um dia inteiro, das 9h às 19h na cidade
de Goiânia, Goiás. A cada hora cheia serão reproduzidos durante cinco minutos
e de forma simultânea, os ruídos sonoros coletados na primeira fase da pesquisa
de doutorado. Durante a reprodução dos sons, estaremos com uma equipe de
pesquisadores voluntários posicionados na fachada do Grande Hotel, para auxiliar na
divulgação da performance artística e recolher respostas de passantes da via pública
a respeito da sonoridade escutada. A participação dos transeuntes na pesquisa é
voluntária. Para tanto, utilizaremos como instrumento de sondagem um questionário
para coleta das percepções desses ouvintes, transeuntes, em relação a esses sons,
seus reconhecimentos e significações. As perguntas básicas versarão sobre: o que
é som para você? O que é ruído sonoro? Você se reconhece nesses sons? Por
quê? Qual é o som do seu cotidiano? O que lhe agrada e o que lhe incomoda nos
sons de seu cotidiano? Tal estudo objetiva verificar como esses sons são recebidos
e interpretados pelos transeuntes. As entrevistas serão gravadas e, posteriormente,
discutidas e analisadas para a sistematização do conteúdo e produção textual.
5 | 	CONSIDERAÇÕES
Pensamos que as manifestações sonoras dos indivíduos no ambiente urbano
expõem e criam vínculos afetivos resultantes do conflito individual, mas permeados
por questões relativas a conflitos coletivos. Tais vínculos e conflitos são percebidos
através dos sons da cidade, conferindo-lhe uma textura sonora única frente à cultura
local, o que denominamos como performance sonora cultural. Ao propor uma
compreensão das representações sociais, do imaginário e dos conflitos, a partir
da sonoridade local, esperamos apreender alguns referentes culturais que
Arte Comentada Capítulo 5 67
delineiam a paisagem da cidade de Goiânia.
A pesquisa, nesse sentido, efetivará nossas percepções e possíveis
entendimentos do que pressupomos como performance sonora, paisagem sonora
citadina e performance cultural sonora. Desse modo, estaremos contribuindo com a
memória sonora e, consequentemente cultural da cidade de Goiânia, por meio de uma
investigação poiética, bem como de sua recepção.
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Arte Comentada Capítulo 6 69
CAPÍTULO 6
A ARTE DO CORPO PERFORMÁTICO MEDIADO
PELA TELA DO CINEMA DOCUMENTAL: AS FORMAS-
FENDAS DO OLHAR NA(DA) DANÇA
Cristiane Wosniak
Universidade Estadual do Paraná - campus
de Curitiba II/Faculdade de Artes do Paraná /
Universidade Federal do Paraná
Curitiba - Paraná
RESUMO: Este artigo estrutura-se a partir
da releitura de dois trabalhos acadêmicos,
anteriormente publicados pela autora em anais
de congressos nacionais, e que se dedicam
à reflexão e à análise do pensamento teórico
que alicerça a práxis cinematográfica do
documentarista brasileiro Evaldo Mocarzel.
O artigo ‘As Formas-Fendas do Olhar sobre
o Corpo em um Documentário de Dança’
foi apresentado no VI Seminário Nacional
Cinema em Perspectiva (2017), enquanto que
‘A Mise-En-Scène do Risco e do Inesperado
no Cinema Documental Dançante de Evaldo
Mocarzel’, foi apresentado no 41° Congresso
Nacional de Ciências da Comunicação (2018).
A motivação para a atualização reflexiva no
presente trabalho é a indagação: de que forma
e com que meios a iconicidade do gesto em
uma performance de dança pode se (trans)
formar em uma fenda subjetiva de experiência
e alteridade em um documentário de dança?
O ponto de partida para empreender uma
análise do discurso cinematográfico, calcada
em questões referentes aos sujeitos/corpos
performáticos documentados, é a leitura da
Carta de Montagem de Mocarzel, enviada
ao cineasta/montador Marcelo Moraes
(15/10/2008) e sobre o ato cinematográfico daí
resultante, o documentário Canteiro de Obras:
São Paulo Companhia de Dança (2010). O
recorte do objeto empírico da investigação recai
sobre dois excertos do documentário em que
os atores sociais – bailarinos/performers – se
utilizam de extensões tecnológicas – body-cam
e Go-Pro – e, a partir daí, criam uma espécie de
forma-fenda cinética na narrativa documental.
O pensamento e a práxis cinematográfica de
Mocarzel são também cotejados em relação
às teorias do ensaísta e cineasta francês Jean-
Louis Comolli em uma tentativa de traçar alguns
balizamentos conceituais no que concerne aos
objetos empíricos da investigação.
PALAVRAS-CHAVE: arte; corpo; cinema
documental; dança; performance.
ABSTRACT: This article is based on the re-
reading of two academic papers, previously
published by the author in annals of national
congresses, which are dedicated to the
reflection and analysis of theoretical thinking
that underlies the cinematographic praxis of
Brazilian documentarian Evaldo Mocarzel. The
article ‘As Formas-Fendas do Olhar sobre o
Corpo em um Documentário de Dança’ was
presented at the VI Seminário Nacional Cinema
Arte Comentada Capítulo 6 70
em Perspectiva (2017) while ‘A Mise-En-Scène do Risco e do Inesperado no Cinema
Documental Dançante de Evaldo Mocarzel’, was presented at the 41° Congresso
Nacional de Ciências da Comunicação (2018). The guiding question for the reflexive
updating of the present work is the question: in what form and by what means can the
iconicity of the gesture in a dance performance be (trans) form in a subjective rift of
experience and alterity in a dance documentary? The starting point to undertake an
analysis of the cinematographic discourse, based on questions related to the subjects/
documented performative bodies, is the reading of the Mocarzel Assembly Letter, sent
to the filmmaker/editor Marcelo Moraes (10/15/2008) and the resulting cinematographic
act, the documentary Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010).
The cut of the empirical object of the investigation rests on two excerpts from the
documentary in which social actors - dancers/performers - use technological extensions
- body-cam and Go-Pro - and, from there, create a kind of slit-form in the documentary
narrative. Mocarzel’s thought and cinematographic praxis are also compared to the
theories of French essayist and filmmaker Jean-Louis Comolli in an attempt to draw
some conceptual markings on the empirical objects of inquiry.
KEYWORDS: art; body; documentary film; dance; performance.
1 | 	INTRODUÇÃO
Ao alinhar os estudos investigativos sobre o universo documental do cineasta
brasileiro Evaldo Mocarzel, a partir de variadas fontes primárias, incluindo aqui a
análise de excertos de seu filme Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança
(2010), também me coloco em relação interpretativa direta com a produção teórico-
prática do referido documentarista e, neste momento, converto-me em uma espécie
de mediadora de fontes diversas na proposição de comentar analiticamente a sua
obra artística.
Esta premissa sobre a produção do conhecimento, conjunta, pode ser corroborada
a partir das premissas da abordagem de pesquisa calcada na Teoria dos Cineastas
que assevera ser esta dinâmica composta por uma “constante interação entre o
cineasta que se refere à sua própria obra enquanto criador e enquanto espectador e o
investigador que não sendo apenas espectador é, também, um criador já que na sua
relação com uma obra, também colabora com sua construção.” (BAGGIO; GRAÇA;
PENAFRIA, 2015, p. 22).
A perspectiva teórica dos cineastas, na reunião de seus textos escritos, reflexões,
entrevistas, depoimentos, rascunhos, cartas de montagem, entre outras fontes
primárias e em cotejamento direto com a análise de seus atos fílmicos, é o caminho
metodológico proposto pela referida abordagem.
Esta linha investigativa, aqui adotada, é proposta pelo GT Teoria dos Cineastas,
da AIM (Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento), que se constitui
em um grupo permanente de estudos, desde 2014, mesmo ano em que passou a
Arte Comentada Capítulo 6 71
integrar um dos Simpósios da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos do Cinema
e Audiovisual). O grupo, em Portugal, é composto pelos pesquisadores: Manuela
Penafria (Universidade da Beira Interior/Labcom.IFP), André Rui Graça (Universidade
de Coimbra) e Eduardo Tulio Baggio (Universidade Estadual do Paraná-campus de
Curitiba II/FAP).
Uma exposição sintética acerca dos principais argumentos sobre a Teoria dos
Cineastas pode ser encontrada no artigo Teoria dos cineastas: uma abordagem para a
teoria do cinema (BAGGIO; GRAÇA, PENAFRIA, 2015). No corpo do artigo, os autores
mencionam que outras abordagens destacam o papel de produção de conhecimento
teórico/verbal advindo dos cineastas e vêm sendo propostas há algum tempo, como
se pode observar em textos de Jacques Aumont: Pode um filme ser um ato de teoria?
(2008) e As Teorias dos Cineastas (2004), além das antologias organizadas por Ismail
Xavier, em A Experiência do Cinema (1983).
Destaco que Robert Stam, embora embasado pelo viés da Teoria do Autor,
também se detém sobre o importante papel reflexivo e teórico que os cineastas/
diretores desempenham na produção de conhecimento cinematográfico.
Em seu artigo O culto ao autor (2003), Stam destaca a relativa importância que
os Cahiers du Cinéma tiveram, a partir da década de 1950, para a propagação de
uma teoria do autorismo, que percebia na “figura do diretor um pensar/fazer, ou seja,
aquele responsável, em última instância, pela estética e pela mise-en-scène de um
filme” (STAM, 2003, p. 104).
A mise-en-scène é uma expressão idiomática francesa que se relaciona
com encenação oucomoposicionamentodeumacenae,muitasvezes,comadireção ou
a produção de um filme ou peça de teatro. Aplicada à linguagem cinematográfica,
considera-se, portanto, que da mise-en-scène fazem parte todos os elementos que
aparecem no enquadramento, como por exemplo: atores/atrizes, posicionamentos
coreográficos/trajetórias, iluminação, decoração/cenografia, adereços da cena,
figurino, etc.
Segundo David Bordwell e Kristin Thompson (2013), a mise-en-scène, surge
como um termo aplicado às artes cênicas, mas quando estendida para a arte
cinematográfica, passa a expressar a atitude, as escolhas e a identidade do ‘autor/
diretor’ sobre todas as questões do que aparece no quadro/tela.
Como seria esperado mise-en-scène inclui os aspectos do cinema que coincidem
com a arte do teatro: cenário, iluminação, figurino e comportamento das
personagens. No controle da mise-en-scène, o diretor encena o evento para a
câmera. A mise-en-scène geralmente envolve algum planejamento, mas o cineasta
pode também estar aberto a eventos não planejados [grifo meu] (BORDWELL,
2014, p. 2015).
Desta forma, pretendo refletir e analisar a experiência documental mocarzeliana
– sempre aberta a eventos não planejados –, subjetivada pelo olhar de atrizes e atores
sociais/bailarinos que se movem/depõem/dançam enquanto movem e fazem dançar a
própria câmera acoplada a seus corpos, e, neste arco narrativo inusitado – irrupção do
Arte Comentada Capítulo 6 72
risco, do acaso, do improviso, dos interstícios imagéticos – acabam por celebrar, em
alguns momentos do documentário, uma espécie de mise-en-scène subjetivada de si
mesmos.
Aexperiência cinematográfica subjetivada pelo olhar de bailarinos que se movem/
dançam enquanto movem/fazem dançar a própria câmera acoplada a seus corpos, é
o que motiva a perspectiva da análise de dois excertos do documentário Canteiro de
Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010), de Evaldo Mocarzel.
Criada em janeiro de 2008 pelo Governo do Estado de São Paulo, a São Paulo
Companhia de Dança (SPCD), gerida pela Associação Pró-Dança, é dirigida por Inês
Bogéa e se caracteriza como sendo uma companhia de repertório, que realiza
montagens de trabalhos dos séculos XIX, XX e XXI, de grandes peças clássicas e
modernas a obras contemporâneas especialmente criadas por coreógrafos nacionais
e internacionais.
O inusitado olhar do ‘entre-imagens’ provocado pela ideia de um casamento
linguístico entre o cinema e a dança, provoca, neste breve instante em que os
performers de si mesmos executam um giro sobre si mesmos, o extravasamento de
possíveis presenças ou copresenças ativas do olhar para si a partir do olhar do(a)
outro(a) e vice-versa.
O percurso da investigação trata de comentar a arte e recortar, no documentário,
a mise-en-scène das formas-fendas nestes breves instantes sem roteirização prévia
e que se abrem a incontáveis redes de significação e(m) experiência cinestésica: o
discurso e a voz subjetiva de corpos em movimento dançante exponenciados pelas
fissuras do olhar da câmera cinematográfica que registra a experiência.
É preciso frisar que nos documentários contemporâneos a voz do saber, em sua
nova modalidade, perde sua autoridade exclusiva; torna-se diluída entre as demais
vozes dialógicas.
Na concepção de Fernão Ramos (2008), estes documentários se caracterizam
“como a narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo ou de si” (RAMOS,
2008, p. 24). Parte-se do princípio, aqui, de que a ‘voz’ no documentário é uma
maneira de expressar um argumento. Esse argumento se manifesta a partir de uma
lógica informacional calcada na experiência e na subjetividade do criador/diretor. A
partir dessa decorrência, assume-se que a voz diz respeito ao ‘como’ o argumento ou
o ponto de vista é transmitido na organização do texto documental.
2 | 	EVALDO MOCARZEL E O DOCUMENTÁRIO DANÇANTE
Evaldo Vinagre Mocarzel nasceu em 1960 em Niterói-RJ. Formou-se em Cinema
na Universidade Federal Fluminense e trabalhou como jornalista/editor do Caderno 2,
do jornal O Estado de São Paulo, durante oito anos. Cursou Cinema na New York Film
Academy e fez parte do Círculo de Dramaturgia do diretor Antunes Filho, no Centro de
Arte Comentada Capítulo 6 73
Pesquisa Teatral (CPT-SESC-SP). Em 2018, tornou-se Doutor em Artes Cênicas pela
ECA-USP. Em seu repertório cinematográfico constam curtas e longas-metragens
com ênfase em cinema documental.
De seu repertório cinematográfico, fazem parte curtas e longas-metragens com
ênfase em cinema documental. Sendo um ‘apaixonado’ pela linguagem da Dança,
Mocarzel dirigiu/criou os seguintes documentários dançantes: São Paulo Companhia
de Dança (2010); Lia Rodrigues: Canteiro de Obras (2010); São Paulo Companhia de
Dança - Ensaio sobre o Movimento (2012) e Buracos no Céu (2013).
Em depoimento escrito à autora, via email, o cineasta declara:
meugrandeobjetivocomacriaçãodedocumentáriosde/sobredançaéocasamento
linguístico da dança com o cinema e vice-versa, sem que uma linguagem fique
subserviente à outra: respeitar as especificidades linguísticas das duas artes e
colocá-las ludicamente para namorar, trocar sem palavras, unidas pelo movimento
(MOCARZEL, 2016).
Essa é a ‘voz documental’proferida pelo diretor/cineasta e reiterada na publicação
de seu ensaio intitulado Cinema e dança: diálogos linguísticos em casamentos artísticos
marcados pelo movimento (2016).
Neste momento da investigação cabe salientar que, embora as mensagens que
circulam por intermédio do correio eletrônico tenham caráter informal, interpessoal
e efêmero, ainda assim, são reconhecidas como interessantes coletas acerca do
pensamento, raciocínio e acesso às teorias dos sujeitos investigados, como o presente
caso da abordagem metodológica da Teoria dos Cineastas e, portanto, se revestem
de informação de fonte primária. Para preservar o material, enquanto fonte científica/
técnica de pesquisa, todas as correspondências efetivadas por meio deste recurso
online, foram impressas e catalogadas (por data) pela autora da pesquisa.
Desta forma, a voz do cineasta também se faz presente neste estudo analítico,
por meio deste material coletado de forma alternativa.
Bill Nichols em Introdução ao documentário (2012), afirma que “a voz do
documentário fala por intermédio de todos os meios disponíveis para o criador”
(NICHOLS, 2012, p. 76). a partir desta premissa, é possível comentar que Mocarzel,
ao realizar seu texto documental, traduz audiovisualmente o seu ponto de vista sobre
o universo histórico-referencial com o qual irá trabalhar, e também deixa impresso em
sua obra a sua forma de envolvimento com o assunto tematizado: o corpo em ação
dançante.
Em sua Carta de Montagem, Mocarzel expõe ao cineasta/montador Marcelo
Moraes, de forma reiterada, o seu ponto de vista, a intenção de tentar uma espécie de
comunhão artística e linguística entre a dança e o cinema por meio do procedimento
da montagem cinematográfica.
É preciso mencionar que a referida Carta de Montagem foi escrita pelo diretor e
encaminhada ao cineasta Marcelo Moraes, em sua versão final, em 15 de outubro de
2008. O documento digitado, contendo nove páginas, não foi ainda publicado. Uma
Arte Comentada Capítulo 6 74
versão da Carta foi cedida à autora da investigação, em correspondência eletrônica,
para uso exclusivo neste trabalho.
E, neste documento, que se constitui em uma fonte primária de investigação,
uma das questões destacadas pelo diretor refere-se à alteridade, à filmagem do(a)
outro(a) pelo olhar do(a) outro(a), abrindo-se a possibilidades inusitadas.
Mocarzel relata:
Depois dos ensaios, fiz experimentos com alguns bailarinos e bailarinas que podem
e devem ser usados na montagem. Experimentos que foram improvisações e que
talvez possam ser usados nos momentos em que você vai explorar os estudos
cinematográficos que fiz sobre o movimento no chão, nas vidraças, no espelho
e no chão de linóleo coberto de riscos. Usei uma micro-câmera em várias partes
do corpo dos bailarinos e bailarinas: na palma da mão, no pulso, na perna, no
tórax, enfim, em muitos lugares inusitados do corpo, e isso gerou imagens muito
interessantes [...] São solos, às vezes duos, com menos frequência, mas são
improvisações, experimentos lúdicos com gestos a partir da utilização dessa
micro-câmera [...]Na mesma linha de experimentação lúdica, também depois dos
ensaios, criamos improvisações com uma espécie de ‘espartilho’, que, na verdade,
é um ‘body-cam’ grudado no corpo do bailarino e ele então contracena com a
câmera... (MOCARZEL, 2008, p. 6).
Estes experimentos improvisados constituem-se em uma mise-en-scène do risco
e do inesperado e consiste no olhar da câmera sobre o corpo dançante, inserindo,
desta maneira, uma diferente perspectiva sobre o gesto, o olhar do corpo movente em
relação ao espaço em uma espécie de coreografia cinematográfica propiciada pelo
acoplamento tecnológico: o dispositivo body-cam. Sobre esta possibilidade, comenta
o cineasta: “com a utilização do ‘body-cam’, o ponto de vista do bailarino é incorporado
à imagem. Se a bailarina gira, o mundo gira, e a câmera logicamente também vai girar,
pois está acoplada ao seu corpo” (MOCARZEL, 2008, p. 6).
O documentário mocarzeliano, longe de se assemelhar a um ‘teatro filmado’
com câmeras frontais e praticamente imóveis a capturar a trajetória do corpo em
movimento coreográfico deslocando-se de um lado a outro do enquadramento, em
plano sequência, reveste-se de uma acentuada (des)ordem sequencial, sobretudo nos
arranjos dos planos com suturas em falsos-raccords.
A figura ou técnica de montagem cinematográfica denominada raccord, pode ser
caracterizada como a passagem de um plano para o outro, garantindo a coerência
entre eles; trata-se das ligações verossímeis entre os planos, por meio de efeitos
visuais, sonoros ou de linguagem, dando continuidade à narrativa fílmica.
O falso-raccord, por sua vez, é uma mudança de plano (intencional) que foge
da lógica transparente da continuidade, que procura transcender esta mesma lógica
de sentido. Esse tipo de procedimento procura mostrar variados pontos de vista e
perspectivas da imagem. Admite-se que é falso pois explora uma outra possibilidade
não convencional de montage cinematográfica.
Nestes casos de falsos-raccords, espaço e tempo colidem frequentemente e
abrem-se a incontáveis possibilidades de ressignificação de mise-en-scène.
O cineasta e teórico Jean-Louis Comolli no ensaio ‘Sob o Risco do Real’ (2008),
Arte Comentada Capítulo 6 75
faz-se uma pergunta: “o que acontece com aqueles que filmamos, homens ou mulheres,
que se tornam, assim, personagens de filme?” (COMOLLI, 2008, p. 175). Indo mais
além, Comolli reflete sobre o tempo suspenso da filmagem atentando para o fato de
que ele interrompe o curso normal/real das ações dos personagens fixando-os, em
uma mise-en-scène nem sempre programada.
Mocarzel, por sua vez, responde temporariamente, a partir de sua práxis
cinematográfica, como resultaria a voz/corpo de personagens documentados como
atores sociais de uma companhia de dança, quando solicitados a se mover/filmar
enquanto se filmam ao dançar.
As pistas deste desejo cinematográfico podem ser evidenciadas também em
outro texto escrito e autoral: a Carta de Montagem encaminhada à cineasta Guta
Pacheco (27/09/2012), para a realização de outro documentário, onde Mocarzel afirma
enfaticamente:
Essa é uma ideia que me persegue como documentarista e que me fascina:
perspectivar o ponto de vista de quem dança com a câmera acoplada aos corpos
dos intérpretes, e ainda imprimir na imagem, dentro do quadro, a cadência, o
balanço, o ritmo do movimento de quem dança. Em determinados momentos, a
própria bailarina ou o próprio bailarino vira uma espécie de fotógrafo de si mesmo,
o que também me interessa muito como documentarista, pois trata-se de passar a
bola para a alteridade, para o ‘outro’ se autodocumentar. Como já comentei com
você, para mim, documentário é sempre fruto do atrito entre linguagem e alteridade
(MOCARZEL, 2012, p. 11).
	 Segundo Comolli, reter as ‘alteridades’ em um documentário, significa “estar às
voltas com a desordem das vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo,
com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro.
Necessidade do documentário” (COMOLLI, 2008, p. 176).
Portanto, se o atrito entre a linguagem e a alteridade são motes recorrentes na
obra documental de Mocarzel, este princípio ecoa também nas palavras de Comolli
para o qual filmar pessoas/personagens na(da) vida real significa estar atento e aberto
às imprevisibilidades dos acontecimentos em processo de filmagens.
3 | 	A CÂMERA NO CORPO DE QUEM DANÇA E SE FILMA NO PROCESSO
Além da documentação observacional do processo de criação da primeira
coreografia da São Paulo Companhia de Dança, Mocarzel afirma que utilizou
propositalmente “duas traquitanas capazes de levar a câmera para o corpo de quem
dança, para a pele suarenta de quem labuta diariamente essa fascinante linguagem
de gestos, ainda tentando imprimir movimentos na imagem.” (MOCARZEL, 2016a, p.
42).
Noinício[00:31a01:47]dodocumentárioCanteirodeObras:SãoPauloCompanhia
de Dança (2010), observa-se, uma clara intenção alusiva à tridimensionalidade
inerente da dança: um dançarino performa seguidos giros sobre si mesmo e, neste
Arte Comentada Capítulo 6 76
mover simbólico, usa microcâmeras acopladas em seu corpo: na palma da mão, no
pulso e no tórax (figura 1).
Figura 1 : Sequencia de imagens com o dançarino que se move acoplado a câmeras/
body-cam
Fonte: (frames de Canteiro de Obras-São Paulo Companhia de Dança - 2010)
O resultado deste experimento inusitado são imagens lacunares e borradas,
transbordamentos de limites espaciais demarcados, subjetividades em movimento e,
acima de tudo, a experiência do mover-se enquanto se move a câmera que registra o
fugaz instante.
Mocarzel inclui em seu documentário sobre a São Paulo Companhia de Dança, –
especificamente sobre o processo de criação da obra Polígono, do coreógrafo italiano
Aléssio Silvestrim –, as imagens do ator social/dançarino já na abertura de seu filme.
As formas imagéticas que deixam traços cinéticos provenientes do corpo-câmera do
dançarino – ação cinematográfica e dançante simultânea – trazem dados inéditos ao
olhar do documentarista. Mocarzel acaba por recriar, cinematograficamente, alguns
instantes fotográficos da obra coreográfica.
Segundo o autor/diretor, com o body-cam, em determinados ângulos, podia
perceber, com o monitor da câmera voltado para o rosto de quem dançava, “um
radical exercício de alteridade: a própria bailarina ou o próprio bailarino se filmavam,
Arte Comentada Capítulo 6 77
enquadravam a sala de ensaio, o palco, os próprios gestos, os desenhos e rastros das
frases coreográficas que estavam dançando.” (MOCARZEL, 2016a, p. 43). Exercitava-
se a mise-en-scène do inesperado: do risco calculado. Formas-fendas dançantes
somavam-se à narrativa documental mocarzeliana.
Em outro momento da narrativa documental, especificamente no excerto [43:34
a 44:25], um novo sistema de escrita documental colaborativa tem início.
Destarte, uma dançarina improvisa giros e gestos com seus braços e mãos,
enquanto tem, acoplada ao seu corpo, uma determinada ‘traquitana’ cinematográfica.
Foi por sua própria sugestão que uma microcâmera foi acoplada ao seu corpo e gerau
raras e poéticas atmosferas imagéticas.
Explica o diretor:
Com essa segunda traquitana, uma rápida explicação técnica: como a microcâmera
filma, mas não grava, pois não tem suporte de captação, nós criamos um segundo
dispositivo na traquitana que era um vídeo-concha, com uma fita mini-dv, envolto
em elástico, preso com velcro e também grudado ao corpo de quem dança/filma.
O sinal de captação da diminuta câmera era então enviado para a fita mini-dv do
vídeo-concha. No processo de montagem, a permanente busca pelo casamento
artístico da dança com o cinema, e vice-versa (MOCARZEL, 2016a, p. 43).
Neste momento se esbarram no espaço e no tempo de representação os
estilhaçamentos de movimentos capturados pelo olhar da câmera do diretor, associados
ao olhar do corpo-câmera da bailarina (figura 2).
Figura 2
Sequência de Ícones Cinéticos no documentário
Fonte: (frames de Canteiro de Obras-São Paulo Companhia de Dança - 2010)
Em depoimento à autora (2016b), o documentarista afirma que havia, sim,
Arte Comentada Capítulo 6 78
recriado por meio da montagem, a obra coreográfica pelo viés do estilhaçamento
do movimento, “da linguagem do cinema e com o dom da ubiquidade da câmera”
(MOCARZEL, 2016b, p. 1).
A partir desta assertiva é possível depreender que a narrativa documental do
processo de criação de uma obra coreográfica – Polígono – para a companhia não
se interrompe em seu desenrolar documental, mas o que acontece neste excerto
é um esgarçamento da narrativa pela inserção de material advindo de uma dupla
perspectiva: a ubiquidade da câmera e a alteridade do olhar conjugada pela mise-en-
scène de si mesma.
ParaComolli,“omovimentodomundonãoseinterrompeparaqueodocumentarista
possa lapidar seu sistema de escrita. As formas colocadas em ação são desarranjadas
pela própria forma que elas tentam abarcar” (COMOLLI, 2008, p. 177). E Comolli ainda
destaca a precariedade, a instabilidade e a fragilidade dos ‘dispositivos documentais’
ao afirmar que os dispositivos “são úteis apenas para permitir a exploração do que
ainda não é de todo conhecido” (COMOLLI, 2008, p. 177).
Neste sentido, a aposta mocarzeliana em um dispositivo documental calcado
na alteridade e na voz/olhar (com)partilhados promove um encontro, ou melhor, um
casamento linguístico e artístico entre a dança e o cinema (MOCARZEL, 2016a).
Na exploração de novas possibilidades do movimento existir, enquanto
dança documentada, Mocarzel descreve, em um depoimento à autora, mediante
correspondência eletrônica (2017), que nos filmes que realizou sobre o universo da
dança a bússola sempre foi a comunhão linguística entre estas duas formas de arte.
Outro ponto de contato/atrito entre as linguagens era a “possibilidade de prescindir de
palavras” (MOCARZEL, 2017, p. 3).
	 Nichols admite que o documentário, em si, é o que poderíamos chamar de
“conceito vago” (NICHOLS, 2012, p. 48). E continua o autor: “os documentários não
adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de apenas um conjunto de questões,
não apresentam apenas um conjunto de formas e estilos” (NICHOLS, 2012, p. 78).
Aparentemente existem tensões entre as expectativas instituídas no que
se concerne ao ‘gênero’ filme documentário e as abordagens individualizadas e
constantes, alargando, desta forma, os limites entre filme documental e filme ficcional.
Segundo Nichols, “a montagem em continuidade, por exemplo, que opera para
tornar invisíveis os cortes entre as tomadas [...] tem menos prioridade [...]. Portanto, o
documentário apoia-se muito menos na continuidade para dar credibilidade ao mundo
a que se refere do que o filme de ficção” (NICHOLS, 2012, p. 55-56).
Ao se afirmar que os documentários não apenas se abrem para o mundo,
para a captura do que imaginamos como mundo, mas “são atravessados, furados,
transportados pelo mundo” (COMOLLI, 2008, p. 170), é possível deduzir, portanto,
que ocorre um esgarçamento de possibilidades de registros quando a realidade – real/
referente – é capturada pelo olho da câmera.
Neste breve instante é o ícone cinético que vem à cena enquanto traços de
Arte Comentada Capítulo 6 79
movimentos aleatórios, improvisados e capturados com o auxílio de traquitanas
acopladas ao próprio corpo/medium da bailarina.
Em seu processo de criação da mise-en-scène de si mesmos, enquanto
performam movimentos aleatórios, os atores sociais atuam na primeiridade – quali-
signo – e os movimentos daí decorrentes e observados no documentário mocarzeliano
na categoria de ícone cinético, surgem como uma qualidade de sentimento, buscando
configurar uma ideia simples e, ao mesmo tempo, complexa de movimentos, mas sem
ainda a intenção de formatar algo concreto.
Nesta temporalidade momentânea, enquanto traços, sombras, riscos, formas do
rosto distorcidas, mãos e geometrias espaciais do ambiente ao redor o próprio corpo
dos dançarinos, girando, entretecem o espaço de construção e concretização do
sentido motor em dança: o corpo-câmera entra em diálogo e conexões permanentes
com o meio em que desenvolve a sua mise-en-scène. O corpo-câmera em movimento
dançante encontra, portanto, o seu sentido documental quando se percebe um ícone
cinético.
Décio Pignatari em seus estudos sobre a aplicabilidade da Teoria Geral do Signos
de Charles Sanders Peirce (1839-1914), nos campos da Comunicação e das Artes,
reconhece que “algumas características do ícone peirceano revelam os aspectos
profundos da natureza da linguagem em geral e da linguagem artística em particular”
(PIGNATARI, 1979, p. 32-33).
Para Pignatari, as signagens artísticas constituem-se em um sistema aberto
de signos que não são subordinados uns aos outros e, desta forma, atuam em um
agrupamento em rede/rizomático e sem hierarquias.
Cabe mencionar que o termo/neologismo ‘signagem’, foi cunhado por Pignatari
(1984), ao se referir aos fenômenos não-verbais, como os sistemas de signos nas(das)
diferentes formas de Arte.
	 Nas palavras do autor:
Eu sei que o uso já consagrou expressões como ‘linguagem musical’, ‘linguagem
arquitetônica’, ‘linguagem televisual’, etc. Mas, na era da semiótica, ou teoria geral
dos signos, essa invasão do verbal pra cima do não-verbal, dos códigos verbais em
relação ao códigos icônicos ou dos códigos audiovisuais pode induzir distorções.
Por essa razão, utilizo signagem em lugar de linguagem (PIGNATARI, 1984, p. 8).
Para Pignatari, as signagens artísticas constituem-se em um sistema aberto
de signos que não são subordinados uns aos outros e, desta forma, atuam em um
agrupamento em rede/rizomático e sem hierarquias.
Cabe destacar que um signo sempre ‘representa’ algo, ou seja, o seu objeto.
Para a (de)codificação dos possíveis e abertos significados dos movimentos
visualizados no documentário mocarzeliano, a partir da body-cam acoplada ao corpo
da bailarina movente, torna-se necessária a mediação do signo a partir do processo
infinito da semiose em busca de possíveis significados.
Desta forma, o conteúdo ou busca ‘infinita’ por aparentes e flexíveis significados
Arte Comentada Capítulo 6 80
a partir dos traços cinéticos que se apresentam no documentário de Mocarzel podem
ser apreendidas unicamente pelo processo de semiose.
Enquanto significado, um signo ou um ícone cinético – como o material audiovisual
apresentado nos excertos em questão – contém múltiplas concepções e, dependendo
do contexto, do repertório dos sujeitos envolvidos na leitura, recepção e produção de
sentido por meio da relação entre os sistemas de signos, a somatória das experiências
e análise do meio, constituirá a concepção geral da mensagem e do próprio significado
da experiência cinética subjetiva.
Fenomenologicamente, o sentido se desenvolve na experiência e é gerado pela
integração entre experiências subjetivas do presente e do passado.
A experiência/fenômeno traçada pelo corpo-câmera em movimentos icônicos
cinéticos torna-se, portanto, o próprio contexto da signagem híbrida: cinema
documentário-dança.
O conceito de hibridação adotado nesta investigação é proveniente da proposição
de Raymond Bellour, como a mistura de meios e de formas de representações ou
signagens, tais como gravura, cinema, fotografia, vídeo, música, dança, entre outras.
O autor, em sua obra Entre-Imagens: foto, cinema, vídeo (1997), articula esta
ideia à denominação entre-imagens, por entender a hibridação – a mescla de meios –
como um espaço-tempo de passagem, de intervalo em potencial ampliando as redes
de criação, pelas fissuras ou esgarçamento de fronteiras limítrofes entre os diferentes
tipos de signagens.
O corpo-câmera da performer ao dançar e filmar simultaneamente seus gestos,
amplifica o espaço de construção e concretização do sentido na(em) dança. É pelo
processo de (des)construção na/pela montagem cinematográfica mocarzeliana que
estas imagens icônicas, elaboradas na primeiridade, esgarçam territórios entre as
linguagens e entre o próprio espaço-tempo de representação cinematográfica. E isto
se reveste de um pensamento autoral.
Mocarzel coloca em práxis cinematográfica um conceito/pensamento que
permeia suas crenças artísticas. Esta premissa pode ser verificada a partir do seguinte
depoimento do diretor:
Pensamento autoral? Sim, acho que esta busca pela imagem do corpo, as miríades
de movimentos, a obsessão dos raccords na montagem, minimalismo do digital
desnudando o corpo como um mosaico, um universo de pontos de vista, tudo isso
é movido pelo mesmo conceito, pelo mesmo pensamento autoral: respeitar a dança
como linguagem misteriosa e promover um casamento artístico do cinema com a
dança sem que uma linguagem seja subserviente à outra. Procuro colocar no papel
em forma de argumento cinematográfico os conceitos que quero experimentar,
filmo e aí escrevo cartas de montagem para contaminar os montadores para
tudo o que experimentei e que ainda quero experimentar, além de contextualizar
a natureza específica daquele projeto e ainda tentando esboçar uma primeira
estrutura dramatúrgica para a narrativa do filme a ser construído. Mas está tudo
ligado: a pesquisa, os textos prévios sempre com alguma teoria, as filmagens e
as cartas de montagem, a hora da ‘verdade’ da teoria-prática experimentados nos
dispositivos cinematográficos-coreográficos que tentei experimentar. Uma coisa
vai retroalimentando a outra... (MOCARZEL, 2017, p. 3).
Arte Comentada Capítulo 6 81
4 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do pensamento teórico que alicerça o ato criativo dos cineastas –
abordagem metodológica da Teoria dos Cineastas –, foi possível determinar algumas
possibilidades e procedimentos estilísticos, por meio dos quais a iconicidade dos gestos
dos dançarinos/performers, tendo acopladas aos seus corpos diferentes traquitanas/
microcâmeras, transformaram a narrativa documental mocarzeliana em uma mise-
en-scène do risco e do inesperado repleta de experiências cinéticas e cinestésicas
subjetivadas pelos alicerces da alteridade e da ubiquidade da câmera documental.
O percurso reflexivo desta investigação apresentou uma possível leitura, um
possível comentário analítico para a arte documental audiovisual Canteiro de Obras:
São Paulo Companhia de Dança (2010), de Evaldo Mocarzel.
A comunicação das possíveis mensagens dos corpos performáticos, atuando
a partir das formas-fendas cinematográficas, encontrou, em suas semioses infinitas,
porosidades significativas.
REFERÊNCIAS
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jan-jun, 2008. (p. 21-34). Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/educaçãoe realidade/article/
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BAGGIO, Eduardo Tulio; GRAÇA, André Rui; PENAFRIA, Manuela. Teoria dos cineastas: uma
abordagem para a teoria do cinema. In: BAGGIO, Eduardo; TASSI, Rafael; MARTINS, Zeloi (Orgs.).
Revista Científica/FAP - Dossiê Cinema: criação e reflexão. No
. 12, jan-jun, 2015. Disponível
em:<http://periódicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/issue/view/ 109>. Acesso em: 14 jun.
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BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas, SP: Papirus, 1997.
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Editora da
USP, 2013.
CANTEIRO DE OBRAS - São Paulo Companhia de Dança. Diretor Evaldo Mocarzel. DVD. Casa Azul,
2010.
COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: _______. Ver e poder – a inocência perdida: cinema,
televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (p. 169-178).
MOCARZEL, Evaldo. Carta de montagem endereçada a Marcelo Moraes. Curitiba, 15 de outubro,
2008 [não publicada].
_______. Carta de montagem endereçada a Guta Pacheco. Curitiba, 27 de setembro, 2012.
_______. Cinema e dança: diálogos linguísticos em casamentos artísticos marcados pelo movimento.
In: LESNOVSKI, Ana; WOSNIAK, Cristiane. (Orgs.). Olhares: audiovisualidades contemporâneas
brasileiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2016a (p. 33-54).
Arte Comentada Capítulo 6 82
_______. Notícias - Correspondência via email [mensagem pessoal] - Mensagem recebida por
<cristiane_wosniak@yahoo.com.br> em 07 de nov. 2016b (0:57).
_______. Questões - Correspondência via email [mensagem pessoal] - Mensagem recebida por
<cristiane_wosniak@yahoo.com.br> em 22 de mai. 2017 (18:34).
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas-SP: Papirus, 2012.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura: icônico e verbal, Oriente e Ocidente. São Paulo: Cortez &
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STAM, Robert. O culto ao autor. In: ______. Introdução à teoria dos cineastas. Campinas-SP: Papirus,
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XAVIER, Ismail. (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
Arte Comentada Capítulo 7 83
CAPÍTULO 7
MEMÓRIA EM DIÁRIOS DE VIDEOGRAMAS – UM
DIÁLOGO ENTRE A RETOMADA DE IMAGENS DE
ARQUIVO PROPOSTA POR JONAS MEKAS E HARUN
FAROCKI
Guilherme Bento de Faria Lima
UFF – Universidade Federal Fluminense –
Professor Assistente, Comunicação Social-
Publicidade / PUC-Rio – Doutorando – PPGCOM
(Comunicação Social)
Rio de Janeiro – RJ
Monica Rodrigues Klemz
UNESA – Universidade Estácio de Sá – Graduada
em Cinema e Audiovisual
Rio de Janeiro – RJ
RESUMO: Este trabalho representa uma
das reflexões da pesquisa desenvolvida no
Projeto de Pesquisa - “Mostra de filmes de
arquivo – ensaio, compilação, família e found
footage”, desenvolvido na UNESA, no campus
João Uchôa, a partir de um Cineclube, cuja
premissa específica é a exibição de filmes
que utilizam imagens de arquivo, objetiva
estimular o desenvolvimento de uma reflexão
crítica, através da análise das imagens e dos
múltiplos processos de montagem. A proposta
é articular, problematizar e comparar as
perspectivas estéticas de dois diretores, Jonas
Mekas e Harun Farocki, a partir da avaliação
entre os quatro filmes exibidos, dois de cada
um dos autores; Reminiscences of a Journey to
Lithuania e Scenes from the life of Andy Warhol,
de Mekas e Videogramas de uma Revolução e
Trabalhadores saindo da fábrica, de Farocki.
PALAVRAS-CHAVE: Cineclube; Montagem;
Imagem-arquivo; Filme-ensaio; Estética.
ABSTRACT: This work represents one of
the reflections of the research developed in
the Research Project - “Mostra de filmes de
arquivo – ensaio, compilação, família e found
footage”, developed at UNESA, at the João
Uchôa campus, starting from a Cineclube,
whose specific premise is the exhibition of films
that use archival images, aims to stimulate the
development of a critical reflection, through the
analysis of the images and the multiple montage
processes. The proposal is to articulate, to
problematize and to compare the aesthetic
perspectives of two directors, Jonas Mekas and
Harun Farocki, from the evaluation between the
four films shown, two of each one of the authors;
Reminiscences of a Journey to Lithuania and
Andy Warhol’s Scenes from the Life of Mekas
and Videograms of a Revolution and Workers
leaving the factory, from Farocki.
KEYWORDS: Cineclube; Montage; Archive-
image; Film essay; Aesthetics
1 | 	INTRODUÇÃO
No início de 2015, iniciou-se no campus
João Uchoa da Universidade Estácio de Sá
o Projeto de Pesquisa intitulado; “Mostra de
filmes de arquivo – ensaio, compilação, família e
Arte Comentada Capítulo 7 84
found footage”. Ao longo do primeiro semestre foram exibidos vinte filmes. As sessões
eram abertas para toda a comunidade e aconteciam todas as 2ª feiras às 11h, sempre
seguidas de debate e trocas de experiências e impressões, tanto orais, como escritas,
de forma qualitativa e quantitativa.
A premissa da pesquisa possibilitou o contato com diferentes obras
cinematográficas, elaboradas a partir das imagens de arquivo, estimulando a reflexão
crítica e a percepção aguçada através do exercício da visualização das imagens de
arquivo e seus possíveis diálogos, proporcionado por um local, como o cineclube.
Além disso, gerou também um questionamento central acerca dos inúmeros
procedimentos de montagem possíveis, ou seja, os múltiplos arranjos que poderiam
ser executados e, por conseguinte, as consequências destas escolhas estéticas.
Com o cinema, a obra de arte adquiriu um atributo decisivo, que os gregos ou
não aceitariam ou considerariam o menos essencial de todos: a perfectibilidade. O
filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras
imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais o montador exerce
seu direito de escolha – imagens, aliás, que poderiam, desde o início da filmagem,
ter sido corrigidas, sem qualquer restrição. (BENJAMIN, 1996, p.175).
A perfectibilidade, apontada por Walter Benjamin, deve ser investigada nas obras
elaboradas com imagens de arquivo, uma vez que estas imagens foram capturadas
para cumprir uma primeira finalidade. Todavia, em sua retomada, passaram por um
processo de pesquisa, uma etapa de seleção, um burilamento. O montador exerce
suas atribuições de maneira determinante, num trabalho contínuo de apropriação e
construção de sentido, mediante a articulação de fragmentos marcados pelo tempo
e pela memória. Ou seja, um árduo processo de correção, no sentido benjaminiano.
Uma busca incessante pela perfectibilidade, mediante a lapidação das imagens de
arquivo, na procura dos seus rastros.
Neste sentido, selecionou-se filmes, com as maiores variações possíveis, com
diferentes temáticas, períodos históricos, qualidade imagética, utilização do som, enfim,
uma ampla gama de elementos audiovisuais distintos, que viabilizassem discussões e
debates sobre o fazer cinematográfico.
2 | 	METODOLOGIA
Como recorte para o presente artigo, que visa ilustrar a multiplicidade mencionada
acima, optou-se por uma análise comparativa entre a proposta estética de dois diretores
em duas de suas obras. Harun Farocki, considerado o diretor alemão desconhecido
mais famoso e Jonas Mekas, um diretor de nacionalidade lituana, que reside nos
Estados Unidos desde o final de 1949.
Juntamente com esta perspectiva de análise de imagens, há uma combinação
entre uma metodologia quantitativa e outra qualitativa organizadas através de
questionários coletados no final das sessões, bem como a filmagem das impressões e
reflexões acerca das obras cinematográficas visualizadas. Sendo assim, é importante
Arte Comentada Capítulo 7 85
mencionar algumas informações sobre as condições de exibição de cada um dos
quatro filmes que serão aqui analisados.
Oprimeirodelesfoi“VideogramasdeumRevolução”,apresentadoem16/03/2015.
Haviam vinte pessoas presentes na sessão, a maioria estudantes de Cinema (três do
curso de Fisioterapia). Entretanto, nenhum dos presentes, com exceção do professor,
tinhaassistidoofilmeatéentão.UmdosalunosdeCinemaregistrou:“Acheiinteressante
a temática revolucionária por meio de registros independentes que unidos ilustram
como foi o acontecimento, e também como ele faz refletir sobre as manifestações no
nosso país” (resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das
sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre
o filme exibido nesta sessão?”)
Cabe ressaltar, que na véspera da exibição do filme de Harun Farocki, no dia
15/03/2015, houve manifestações populares contrárias ao governo Dilma espalhadas
pelo país. Outro aluno, este de Fisioterapia, afirmou: “O filme sobre a revolução
romena, faz-nos pensar na situação caótica do governo brasileiro, com inúmeros
casos de corrupção, desvio de dinheiro para com a população” (resposta observada no
questionário aplicado no final de cada uma das sessões. Referente a única pergunta
aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre o filme exibido nesta sessão?”).
Desta forma, é possível apontar que a observação de imagens de arquivo possibilita
a reflexão política, traz à tona debates que tangenciam nossa realidade e estimulam
a troca de opiniões e o exercício da cidadania. A visualização das imagens de arquivo
selecionadas pelo diretor alemão parecem suscitar questionamentos em torno da
conjuntura política-econômica na qual o Brasil se encontrava em 2015. Ou pelo menos
a forma como as imagens são registradas evidenciam um estética comum ao retratar
uma mobilização popular.
Na sequência, o segundo filme exibido foi “Scenes from the life of Andy Warhol”,
em 06/04/2015. Nesta sessão havia metade das presenças da sessão anterior.
Todos os presentes eram do curso de Cinema, mas além dos alunos e do professor
coordenador do projeto havia outro professor do curso que potencializou o debate e
a análise do filme de Jonas Mekas. No questionário proposto o professor declarou:
“Ótima possibilidade de compreender o found footage e sua incompletude: A relação
entre dois artistas”(resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma
das sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião
sobre o filme exibido nesta sessão?”), ou seja, a utilização da imagem de arquivo
como uma possibilidade de avaliação e comparação estética. O diálogo entre o fazer
artístico de duas personalidades que somadas transbordam e deixam brechas para
interpretações a partir da subjetividade, de cada espectador. As características das
imagens, em 8mm, que se impõem e que, inevitavelmente, são alvo de inúmeras
reflexões e análises, tanto através do ritmo construído na montagem, quanto da própria
textura da imagem.
O terceiro filme apresentado foi “Reminiscences of a Journey to Lithuania”. Nesta
Arte Comentada Capítulo 7 86
sessão estiveram presentes doze pessoas, sendo que duas delas eram estudantes de
Publicidade da Universidade Federal Fluminense (UFF), duas do curso de Fisioterapia
e oito do curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Houve uma dificuldade
coletiva, devido ao fato do filme ter sido exibido sem legenda, apenas com áudio original
em inglês. Vários foram os comentários salientando a dificuldade de compreensão. Ao
mesmotempo,houvetambémmuitoselogiosàmontagemorganizadaporJonasMekas.
“Achei interessante a edição e montagem. Muitos recortes com uma preocupação em
contar história” (resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das
sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre
o filme exibido nesta sessão?”). Esta foi a sétima sessão do Cineclube e foi curioso
observar, analisando as respostas dos questionários, que os alunos que retornavam
estavam mais atentos às estratégias de montagem.
Por fim, o quarto filme selecionado para ser analisado no presente artigo
“Trabalhadores saindo da fábrica”, foi exibido em 15/06/2015. Nesta sessão,
infelizmente, apenas os dois autores deste texto estavam presentes. O período de
avaliações na instituição pode explicar, em certa parte, a ausência de alunos durante
a exibição do filme. Um filme incrível que retoma a primeira imagem da história do
cinema, produzida pelos irmãos Lumière e busca refletir acerca de um código imagético.
Através do recurso da repetição, da paragem da imagem e da pesquisa de imagens
com conteúdo semelhante, Farocki costura sua reflexão em torno do operariado e da
luta de classes.
HarumFarockieJonasMekas,nosseusfilmesensaísticos,abriramapossibilidade
de discussão das ideias apresentadas, de forma transgressora, reestruturando a ordem
do pensamento. As similitudes entre os dois autores está no uso da transtextualidade
como forma de amplificação dos seus ensaios e o que os diferenciará será a forma de
composição desses ensaios.
3 | 	VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO
Nesta obra, datada de 1992, Harun Farocki apresenta, através da combinação
das imagens da transmissão da televisão com imagens de cinegrafistas amadores, a
queda da ditadura comunista de Nicolau Ceausescu que vigorava por mais de quatro
décadas na Romênia. O diretor alemão consegue reconstruir, a partir do vasto material
coletado, a tensão existente naquele instante de transição de poder. A narrativa evoca
reflexões sobre a relação entre mídia e poder. Mais que isso, os questionamentos em
narração off, diante das imagens, elaborados pelo diretor alemão, conduzem o olhar
do espectador sobre o que pode ser filmado e as orientações pré-existentes sobre a
forma como um evento político deveria ser filmado naquela conjuntura.
Um exemplo, sobre o procedimento adotado por Farocki, pode ser observado
no momento em que a transmissão televisiva sai do ar. Neste instante, é possível
Arte Comentada Capítulo 7 87
ouvir a voz de Nicolau Ceausescu gritando, na tentativa de ser ouvido pela massa.
Em cena, visualizamos uma imagem inusitada que apresentava algumas informações
importantes: a direção para a qual o cinegrafista é orientado a apontar sua câmera
(lado oposto ao palanque no qual encontra-se o ditador) e um quadrado menor ao
lado esquerdo da tela, completamente vermelho, que apresenta o que estava sendo
televisionado naquele momento.
Todavia, a investigação, proposta pelo diretor, não se detêm nesta primeira
confrontação da liberdade de expressão da mídia. Um pouco mais adiante no filme,
através da retomada, ou seja, da observação daquele mesmo instante a partir de
uma outra câmera, somos informados do que realmente havia acontecido e que não
estava sendo noticiado; a população havia rompido a barreira de segurança e tentava
forçar a entrada do comitê central. É interessante salientar que estas imagens são
apresentadas em silêncio apenas com algumas poucas legendas, uma espécie de
tentativa de deixar a imagem de arquivo falar por si, uma estratégia de convocar
o espectador a prestar mais atenção e pensar, a partir de imagens de arquivo, de
maneira crítica. Outro fator que também merece observação é a qualidade da imagem,
fica nítida a diferença de granulação da imagem, evidente que se trata de uma outra
câmera, de um outro dispositivo tecnológico, operada por outro cinegrafista, que de
alguma forma resiste ao modelo estético imposto. A resistência fica evidente nas
imagens em silêncio que funcionam como prova histórica, como um grito contido na
garganta de um povo oprimido por longos anos.
Farocki compreende, desta forma, potencialidades existentes e pouco
desenvolvidas na maneira de conduzir o próprio olhar e de investigar as imagens.
Propõe uma nova utilização das imagens já existentes, posiciona-se diante das imagens
como um arqueólogo em busca de pistas que possibilitem novas interpretações.
Thomas Elsaesser (2004) avalia seu trabalho como sendo de um artista-artesão que
trabalha com realidades já constituídas; mostrando várias vezes uma mesma imagem
em busca de pequenas diferenças de modo que alguma coisa a mais se torne visível
na repetição, nas lacunas, através da duplicação.
Outro momento do filme que merece destaque é o momento em que o primeiro-
ministro declara a renúncia do governo. Farocki faz questão de apresentar este
incidente através de três câmeras diferentes, repete consecutivamente o procedimento.
Entretanto, o gesto político precisa ser repetido, pois a renúncia não havia sido
televisionada. Uma situação cômica que evidencia, por um lado a obrigatoriedade
de legitimar o movimento popular, por outro a incompetência para se apropriar do
dispositivo midiático e de seus procedimentos técnicos. A euforia daqueles líderes
populares fica inscrita nas imagens e transborda para que o espectador possa
completar o sentido.
Harun Farocki defende o ineditismo da reapropriação de imagens. “Convidam o
espectador a imaginar seu fora de campo, evocam a história complexa dos olhares que
se colocaram sobre elas, esclarecem a evolução do contexto de leitura e interpretação.”
Arte Comentada Capítulo 7 88
(LINDEPERG, 2010, p. 330). Sugere e desenvolve uma estratégia política de trabalho
que se baseia numa lógica antagônica à prática telejornalística formal e cinematográfica
clássica. Desempenha um trabalho de investigação em busca de rastros deixados nas
imagens e que, num primeiro olhar, não foram apreendidos ou explorados. É capaz de
extrair, do previamente conhecido, algo novo e extraordinário.
Thomas Elsaesser define o cineasta e escritor alemão como um “arquivista-
alegorista”. Para ele, Farocki é um observador das mudanças tecnológicas, aponta-o
como um cronista de como as mídias eletrônicas transformaram a sociedade. O autor
declara, também, que o cinema tem muitas histórias e que algumas pertencem aos
próprios filmes. Portanto, é necessário um artista arqueólogo, mais que um historiador,
para detectar, documentar e reconstruí-las. “A prática cinematográfica, assim, obrigou
Farocki a ser um teórico, fazendo dele um tipo especial de testemunha, um cuidadoso
leitor das imagens, e um exegeta exorcista das fantasmagorias das ‘ilusões óticas.’”
(ELSAESSER, 2004, p. 13). Neste sentido, Farocki torna-se um leitor mais atento das
imagens encontradas.
Justamente, por isso, observar e analisar as obras cinematográficas deste diretor
alemão é um contínuo exercício de aprendizagem, uma tarefa essencial ao aluno de
Cinema que pretende estimular a percepção e o olhar do outro. As estratégias e os
artifícios aplicados por Farocki, neste filme, apontam a necessidade de se debruçar
diante das imagens de arquivo em busca de novas possíveis informações que possam
surgir no diálogo construído na montagem.
Parece fundamental, como aponta Thomas Elsaesser, uma postura mais
antenada diante de filmes que utilizam imagens de arquivo como principal fonte de
transmissão de conhecimento e informação. Acompanhar o raciocínio proposto pelo
diretor que opera a partir de ressignificações demanda uma predisposição maior do
espectador para exercer o pensamento. Exige mais do que apenas uma postura de
fruição e enlevo diante das imagens. Requer como sugerido pelo próprio Farocki, estar
sintonizado na frequência correta para que não haja ruídos.
4 | 	SCENES FROM THE LIFE OF ANDY WARHOL
A proposta apresentada por Jonas Mekas é completamente diferente da
metodologia observada no trabalho de Harun Farocki. Em seus diários fílmicos o
cineasta lituano trabalha com imagens pessoais e particulares de tal forma que
consegue construir a partir delas sentidos abertos com os quais o espectador pode se
identificar.
Desenvolve uma metodologia particular de trabalho na qual faz da câmera uma
extensão de seu próprio corpo. Mergulha profundamente no passado e ao revisitar
suas experiências pessoais, apresenta obras singulares, potentes em possibilidades
de reutilização das imagens de arquivo. No caso da obra Scenes from the life of Andy
Arte Comentada Capítulo 7 89
Warhol, Mekas reúne uma quantidade significativa de imagens do cotidiano do ícone
da Pop Art. Imagens inusitadas que revelam traços inesperados da intimidade e das
relações interpessoais do artista.
Mekas partilhava com Andy Warhol e principalmente com o Fluxus a aspiração
de uma arte indistinta da vida e para a qual é necessário a completa abolição e
anarquização dos meios e suportes específicos de criação.
O manifesto Fluxus é claro naquilo que defende: uma “arte-diversão”, “simples,
divertida, voltada para insignificâncias, e sem necessidade de qualquer habilidade
ou ensaio”. (MOURÃO, 2013, p. 24).
Esta diversão parece estar inscrita nas expressões faciais daqueles que aparecem
em cena, mas, sobretudo, na montagem do filme. A estética das câmeras de 8mm
é uma das marcas do trabalho de Mekas, a granulação das imagens que parecem
aceleradas e, principalmente, a utilização de jump cuts. A estrutura fragmentada que
se organiza através de uma lógica que busca evidenciar os pequenos gestos e as
interações, os olhares compartilhados com o dispositivo. Registros que não parecem
ter significância e, justamente, por isso evidenciam a proposta estética do diretor
lituano.
Cabe enfatizar também a importância dada ao próprio aparato cinematográfico.
Em diferentes cenas da obra é possível visualizar algum dos personagens segurando
sua câmera e brincando, interagindo de maneira orgânica com as situações que o
cercam. Mekas apresenta Warhol em seu trabalho no estúdio produzindo polaroides,
a curiosidade do sobrinho no primeiro contato como uma câmera de vídeo e a família
reunida, todos com suas respectivas câmeras super 8. Ou seja, a produção de
imagens como premissa criativa, tanto em momentos de descontração familiar, quanto
em ensaios fotográficos profissionais realizados em estúdio.
Outro elemento que merece atenção é o som; uma trilha musical intermitente que
começa sendo reproduzida de maneira distorcida e que em diálogo com as imagens
de 8mm e os jump cuts provocam inquietação no espectador. Esta estratégia parece
corroborar com a ausência de necessidade de um design sonoro elaborado e, neste
sentido, reforça o posicionamento anárquico. Mais adiante, com o desenrolar das
cenas da vida de Andy Warhol é possível constatar uma polifonia de sons e ruídos
dissonantes que provocam desconforto, mas ao mesmo tempo, evocam a atenção do
espectador, de forma intermitente.
Jonas Mekas afirma que não filmava de acordo com um planejamento, capturava
imagens, sem o prévio conhecimento do que iria acontecer diante de sua câmera. Não
havia, assim, um roteiro ou premissa narrativa que norteasse o trabalho do diretor,
sua única preocupação era registrar as situações que estava vivenciando. Somente
após a solicitação do Centre Pompidou, durante uma retrospectiva de Andy Warhol,
foi que Mekas revisitou o material de arquivo que possuía e organizou sua montagem
vertiginosa e provocativa. Ou seja, sua obra só foi concluída após uma demanda
específica pela visualização de um material até então inédito. Imagens que revelam
Arte Comentada Capítulo 7 90
aspectos da personalidade de Warhol, que potencializam momentos singulares de sua
vida e ficam disponíveis para que o espectador possa visualizar instantes e situações
com as quais pode se identificar e ao mesmo tempo se surpreender.
5 | 	REMINISCENSES OF A JOURNEY TO LITHUANIA
Jonas Mekas, nascido na Lituânia em 1922, possui sua trajetória marcada pelos
trágicos acontecimentos da Segunda Grande Guerra. Portador de uma bolsa de
estudos, parte, na sua adolescência, para a Áustria, tendo seu trem interceptado pelos
nazistas. É encaminhado para o campo de concentração, com o seu irmão. Refugia-
se nos Estados Unidos, no pós-guerra, sendo apresentado ao cinema underground
através do cineclube Cinema 16, curadoria de Amos Vogel.
Adquire uma técnica fílmica pessoal de desenvolver seus ensaios, utilizando
para esse filme, material autobiográfico coletado entre 1950 e 1971, parte mostrando
os imigrantes no Brooklin, entre 1950 e 1953, parte na Lituânia (1971) e parte no
campo de concentração e Áustria.
Utiliza, para os seus diários ensaísticos, uma câmera Bolex, que funciona
também como elemento agregador, de um homem que se sente estrangeiro de sua
própria história. Procura extrair do passado, o sentimento de pertencimento que se faz
no instante mesmo do processo de rememoração.
Sua escrita fílmica permite ao observador atento imaginar a singularidade da
existência, através de uma crônica de costumes, instituídos a partir do espelhamento do
seu eu lírico. Dissertará sobre a sua experiência ao montar os fragmentos constitutivos
do seu olhar sobre a vida:
Ao ver aquele material antigo, notei que havia várias conexões nele. As sequências
que considerava totalmente desconectadas de súbito começaram a parecer
um caderno de notas com muitos fios unificadores, mesmo naquela forma
desorganizada. Percebi que havia coisas nesse material que voltavam de novo e
de novo. Pensava que cada vez que filmava algo diferente, eu filmava outra coisa.
Mas não era assim. Não era sempre “outra coisa”. Eu voltava aos mesmos assuntos,
às mesmas imagens ou fontes de imagens. (MEKAS, 2013, p. 217).
Mas do que uma reação à realidade, Mekas, no seu filme-diário reflete suas
impressões memorialísticas, tomando de empréstimo as imagens que constituem
também, ausência e esquecimento, para delinear os contornos destruídos pela guerra.
Longe da cultura atual dos selfies, onde a imagem vale mais do que o acontecimento,
do que a vivência, Mekas utiliza-se desse material como parte reconstitutiva de um
sobrevivente a um sistema de poder que solapou um período de sua história. Mais
do que um filme autobiográfico, se apresenta como um filme de resistência, uma
possibilidade subversiva de recontar a história da humanidade, a partir da sua própria,
expondo sua subjetividade. Utiliza-se de uma câmera para desalojar a consciência
da submissão a um regime fascista, aos campos de concentração que alienam, que
fazem desaparecer individualidades.
Arte Comentada Capítulo 7 91
Aponta para reminiscências dos hábitos, dos costumes e das relações
interpessoais que permanecem nas entrelinhas das imagens e indicam caminhos
a serem percorridos pelo espectador. A memória como elemento estruturante do
discurso, uma memória seletiva que deixa escapar elementos e, simultaneamente, se
detém em detalhes simbólicos que, de certa forma, estruturam o próprio diretor lituano.
Diferente da montagem vertiginosa observada no filme com as cenas da vida
de Andy Warhol, nesta jornada ao local de pertencimento, há momentos nos quais é
possível verificar uma tentativa de mascarar ou atenuar o corte, movimentos que se
perpetuam de uma imagem para outra, raccords que ligam e organizam o pensamento.
Outro elemento que merece atenção dentro desta obra de Mekas é o intertítulo.
Utilizado como uma opção constituinte da linearidade da narrativa, os números são
apresentados de forma sequencial, como uma espécie de capítulos ou fases da vida
que merecem ser relembradas.
6 | 	TRABALHADORES SAINDO DA FÁBRICA
Farocki utiliza o filme-ensaio Trabalhadores saindo da fábrica, 1995, como um
corpo editorial, mostrando a sua perplexidade diante da alienação de trabalhadores,
frente a produção em massa. Faz uso de fragmentos de documentários, de filmes
sobre indústrias, noticiários e filmes ficcionais. Inicia com a primeira película exibida,
em 1895, pelos irmãos Lumiére, atravessa um século de história, para sugerir que,
através dos sistemas de controle e vigilância, instituído nas fábricas, os trabalhadores
funcionam como autômatos, robotizados, catalogados, de acordo com suas funções
operativas.
Estes arquivos, assim agrupados, ativam a memória e a imaginação que acabam
por reconfigurar o presente e possibilitar um olhar crítico sobre a sociedade de trabalho.
Através da reconstituição das cenas triviais de entrada e saída das fábricas, o filme
promove um diálogo, entre diversas áreas do conhecimento, quer sejam a sociologia,
economia ou filosofia, deslocando a percepção do lugar-comum.
Em 1995, na revista Meteor, Harun Farocki explicará a relevância desse filme, na
questão memorialística:
A primeira câmera da história do cinema focalizou uma fábrica, mas, depois de
cem anos, pode-se dizer que a fábrica como tal atraiu pouco o cinema; mais
exatamente, a sensação que causou foi de repulsa. O cinema sobre o trabalho ou
o trabalhador não se constituiu em um gênero central, e o espaço diante da fábrica
ficou relegado a um lugar secundário. A maioria dos filmes narra aquela parte da
vida que se dá depois do trabalho. Tudo o que constitui uma vantagem do modo
de produção industrial diante de outros: a divisão de trabalho em etapas mínimas,
a repetição constante, um grau de organização que quase não requer tomadas de
decisão individuais e concede ao indivíduo um campo de ação mínimo, tudo isso
dificulta a aparição de fatores inesperados para a construção de um relato. Quase
tudo o que ocorreu na fábrica nos últimos cem anos, palavras, olhares ou gestos,
escapou à representação cinematográfica. (FAROCKI, 2015, p. 213).
Arte Comentada Capítulo 7 92
Farocki, através da pesquisa e elaboração dos fragmentos de uma história
“indesejada”, concebe o seu cinema como uma forma arrojada de encontro com o
real, com o social, atravessado por sua ideologia e visão política de mundo. Através
desse movimento diário de massa de trabalhadores, não individualizados, o autor
explica a dinâmica do trabalho, no mundo moderno. Vai ainda sugerir, os muros e os
portões como uma terra de fronteiras, entre emprego/desemprego, liberdade/prisão,
coletividade/individualidade, luta/submissão, onde o capital norteia a dinâmica social e
sujeita o individual à câmeras de vigilância e sensores de movimento.
Ao reconhecer e chamar a atenção do observador, durante trinte e sete minutos,
sobre a ação e reação do coletivo, preso a uma estrutura de trabalho alienante, suscita
uma apreensão da sua ideia, do seu ponto de vista e permite, ao observador, um
encontro de consciências, através do questionamento sobre as práticas repetitivas, ao
longo da história.
Os fragmentos escolhidos pelo autor, nos autorizam a imprimir significado, e a
traçar um enfoque para interpretação dos símbolos estrategicamente ordenados na
montagem, num olhar próprio de entender o mundo, não a coisa em si, mas a sua
representação. Essa abordagem vai de encontro ao que se define como filme-ensaio
editorial, nas palavras de Timothy Corrigan, no seu livro O filme-ensaio:
(...), os filmes-ensaio editoriais revelam e analisam não apenas as realidades e os
fatos que são documentados, mas também as agências subjetivas (emaranhadas
nos filmes e em sua recepção) dessas realidades e desses fatos. Na condição
de relatos sobre acontecimentos diários, esses filmes-ensaio, como outros tipos
de editoriais, destacam a interação necessária de subjetividades consciente e
decisivamente móveis dentro desses relatos; relatos não apenas a respeito de
fatos, realidades, pessoas e lugares descobertos e revelados, mas também a
respeito da possibilidade da própria agência em um estado de coisas atual que
já não é transparente nem facilmente acessível. (CORRIGAN, 2015. p. 154-155).
Assume as fábricas como um panóptico foucaultiano alienante e com força
persuasiva, bem demonstrado pelos hinos entoados quando da entrada na indústria,
Farocki convida o espectador à subjetividade, dentro do ritmo em que se organiza
o movimento, na potência que carrega o olhar, na permanência memorialística que
subverte o espaço-tempo, no exercício de novas percepções e reações em relação ao
que é exposto, nos indícios pressupostos, numa desconstrução da mímesis aristotélica.
7 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho de pesquisa desenvolvido na Universidade Estácio de Sá, como um
dos desdobramento da dissertação de Mestrado (Publicada como livro em 2016 sob o
título; Imagens de arquivo: montagem e ressignificação no documentário ônibus 174)
defendida em 2012 na PUC-Rio, evidencia as potencialidades das imagens de arquivo
e as múltiplas possibilidade de montagem. Os vários filmes exibidos, no Cineclube,
formam um panorama que permite ao estudante, especialmente do curso de Cinema,
Arte Comentada Capítulo 7 93
desenvolver novas habilidades audiovisuais, bem como ampliar seu repertório de
referências cinematográficas e aprimorar seu olhar e pensamento intuitivo.
Através dos resultados observados a partir da tabulação dos questionários
aplicados é possível afirmar que o Cineclube é um espaço democrático que viabiliza o
encontro e a troca de experiências entre estudantes de diferentes cursos e instituições
de ensino. Todavia, ainda precisa ser apropriado e valorizado de maneira mais
intensa pelo corpo discente. O espaço do Cineclube tem potencial para fomentar
inúmeras atividades relacionadas ao campo cinematográfico, mas o engajamento e o
compromisso com o projeto precisa ser sempre coletivo.
A análise de imagens e dos procedimentos desenvolvidos pelos dois diretores
selecionados no presente artigo evidenciaram elementos específicos, tanto do filme-
ensaio, quanto do found footage. A potência do arquivo e sua característica lacunar
que demanda um trabalho de articulação, um distanciamento que acarreta novas
compreensões através de um exercício de sintonia sensível, um trabalho do olhar.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1996.
CORRIGAN. T. O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. São Paulo: Papirus, 2015.
ELSAESSER, T. Harun Farocki – Working on the Sightlines. Amsterdam: Amsterdam University
Press, 2004.
FAROCKI, H. Trabalhadores saindo da fábrica. In: LABAKI, A. (org.). A verdade de cada um São
Paulo: Cosac Naify, 2015.
LINDEPERG, S. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. IN FORUMDOC.BH.2010. http://
www.forumdoc.org.br/2010/?page_id=731
MOURÃO, P. Jonas Mekas. São Paulo: CCBB, 2013.
Arte Comentada Capítulo 8 94
CAPÍTULO 8
“SOMBRAS DO PASSADO”: O PERDÃO EM BUSCA
PELA VERDADE E RECONCILIAÇÃO
Alessandro Galletti
Mestre em Direito (UNIVEM - Marília/SP).
Especialista em Direito Civil e Processo Civil
(UNIVEM - Marília/SP). Professor do Instituto
Superior de Tecnologia do UNIVEM – Marília/SP.
Advogado. E-mail: galletti@univem.edu.br
Ricardo Vilariço Ferreira Pinto
Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo
Centro Universitário “Eurípides Soares da Rocha”,
de Marília/SP. Especialista em Direito do Estado
pelo PROJURIS. Bacharel em Direito pelas
Faculdades Integradas de Ourinhos/SP-FIO.
Professor titular de Direito Penal e Tributário na
Universidade Brasil – Faculdade de Ibaiti (PR).
Professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica
na Universidade Brasil – Faculdade de Ibaiti (PR).
Advogado. E-mail: ricardo.ferreira@adv.oabsp.
org.br.
RESUMO: O presente trabalho compreende
a analise do filme Sombras do Passado (Red
Dust), cuja essência concentra-se no período
de transição da ditadura para um regime
democrático, na África, tendo as Comissões de
Verdade de Reconciliação como marco nesse
novo período. A obra cinematográfica relata
os trabalhos da Comissão Reconciliação, ao
analisar a possibilidade de conceder anistia
com relação aos crimes cometidos durante o
período, mas sob a condição do agente expor a
verdade sobre o ocorrido para obter tal perdão.
A ideia da comissão era contar os fatos para
que a nação tivesse conhecimento da gravidade
e unisse para evitar outro banho de sangue e
de sofrimento. Diante das cicatrizes contraídas
nesse tempo, o instituto do perdão através da
anistia, propor uma possível cura ao expor à
verdade sobre os fatos, como uma reconciliação
no tempo entre o presente e o passado para
livra-se desta passagem e recomeçar. O perdão
mostra-se como mecanismo que concilia
a lembrança e o esquecimento de forma a
possibilitar que o passado seja desligado e que
a promessa de um novo futuro se torne a saída
dessas feridas.
PALAVRACHAVE: Anistia. Comissão de
Verdade e Reconciliação (CVR). Perdão.
ABSTRACT: The present work includes the
analysis of the film Red Dust, whose essence
focuses on the period of transition from
dictatorship to a democratic regime in Africa,
with the Truth Commissions of Reconciliation
as a milestone in this new period. The
cinematographic work reports on the work of the
Reconciliation Commission, when analyzing the
possibility of granting amnesty in relation to the
crimes committed during the period, but under
Arte Comentada Capítulo 8 95
the condition of the agent exposing the truth about what happened to obtain such
forgiveness. The commission’s idea was to tell the facts so that the nation would have
knowledge of gravity and unite to avoid another bloodbath and suffering. Before the
scars contracted at that time, the institute of forgiveness through amnesty, propose
a possible cure by exposing the truth about the facts, as a reconciliation in the time
between the present and the past to get rid of this passage and start over. Forgiveness
shows itself as a mechanism that reconciles remembrance and forgetfulness so that
the past is turned off and the promise of a new future becomes the way out of these
wounds.
KEYWORDS: Amnesty. Truth and Reconciliation Commission (TRC). Forgiveness.
INTRODUÇÃO
Em princípio, todo Estado tem a prerrogativa, normalmente definida em sua
constituição, de perdoar aquele que ofende suas leis. Na Constituição Federal brasileira
de 1988, a anistia consta como competência da União1
e do Congresso2
. Quando é
proclamado para todo um segmento social, o perdão se denomina anistia, palavra que
geralmente vem associada aos direitos humanos.
Perdão e anistia têm sido utilizados há muito tempo na história da humanidade,
às vezes, por benevolência (aplicada àqueles que já sofreram alguma punição por
seus crimes), por motivos políticos (para pôr fim às guerras civis ou insurreições), por
legalidade (absolvendo pessoas que apelam por sua inocência) e em eventos festivos
(para celebrar alguma data importante). As constituições de cada Estado procuram
determinar quais são as condições ou limites para a aplicação do perdão individual
ou coletivo. Novamente citamos o exemplo da Constituição Federal brasileira, em seu
art.5.º, XLIII, que dispõe sobre os limites da anistia, vedar que os crimes de tortura,
tráfico e terrorismo não poderão ser anistiados.
O uso mais frequente da anistia no Ocidente tem sido para pôr fim aos conflitos
civis ou revoluções, como uma medida militar de interrupção de hostilidades (caso da
Guerra Civil americana). Mas também tem sido usada para conter conflitos políticos e
restaurar a ‘tranquilidade’ da vida social e política de uma nação.
A aplicação da anistia para tornar inimputáveis membros de governos acusados
de corrupção ou de violação aos direitos humanos tem sido um lugar-comum. Há que
se notar que a anistia concedida a perseguidos políticos de regimes de exceção visa
exatamente o contrário, ou seja, encerrar uma injustiça cometida no passado, em
geral pelo Estado, e restituir a cidadania ao indivíduo atingido.
O perdão pode ser útil para as transições políticas, mas deixam muito a desejar
no que diz respeito à obrigação de processar e punir os responsáveis pelas violações
1 Art. 21. Compete à União: [...]; XVII - conceder anistia.
2 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, coma sanção do Presidente da República, [...] dispor sobre
todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...] VIII - concessão de anistia.
Arte Comentada Capítulo 8 96
aos direitos humanos. Uma comissão de verdade pode servir ao valioso propósito de
justiça desde que seja organizada de forma independente do governo e das instituições
políticas, coletando evidências para subsequentes julgamentos mostrando a verdade
dos fatos apurados.
A reconciliação política sob o ângulo da anistia é analisada para os riscos
deste instituto que visa recobrar a paz civil, na transição para um regime em geral
democrático, após graves acontecimentos de desestabilização social. A reconciliação
política com estas finalidades pragmáticas, todavia, tem seus próprios fundamentos e
pressupostos, mas anistiar crimes e criminosos leva certamente às indagações sobre
o imperdoável e a ocasião para o perdão propriamente dito.
Assinala o filme “Sobras do Passado”, a história de uma advogada (Hilary Swank),
que retorna à África do Sul, seu país de origem, para acompanhar um processo de
anistia envolvendo um amigo, ativista dos direitos humanos, Alex Mpondo (Chiwetel
Ejiofor) que durante o apartheid foi duramente torturado sob as ordens de um oficial
da policia, Dirk Hendricks (Jamie Bartlett).
A história concentra-se na audiência da Comissão de Reconciliação e Verdade
sobre o pedido de anistia do oficial Dirk Hendricks. Destaca-se que, no filme a lei de
anistia baseava-se exclusivamente na apuração sobre a verdade dos fatos, conforme os
depoimentos e eventuais provas apresentadas, ou seja, o perdão estava condicionado
em troca da verdade, como um tribunal penal inverso, cujo autor dos fatos não era
punido, desde que, apresenta-se cabalmente a verdade sobre os crimes praticados.
O aludido conjunto normativo procurou trazer a verdade a tona e amenizar as
vítimas dos conflitos. A intenção do governo africano era buscar a verdade dos crimes
praticados nesse período, sob a condição de anistiar os crimes praticados, como
mecanismo de reconciliação e restauração civil.
Como se depreende, a anistia dá ensejo a muitas críticas, no seu uso,
especialmente para fatos graves. Assim, pode-se falar numa verdadeira anistia
institucional, em determinadas situações, sob o peso de que o evento não tivesse
ocorrido.
O preço pelo esquecimento das ações lesivas cometidas, pelo não–saber, pelo
fingir não saber, é pesado. Todas as más ações estão contidas nesta pretensão
inacreditável de apagar os traços das discórdias públicas.
Para perdoar é preciso ter inteiro conhecimento dos fatos. O perdão tem vínculo
com a verdade, independentemente da circunstância ou eventual punição (judicial ou
extrajudicial), como apurado pelas Comissões de Verdade e Reconciliação, através
da narrativa em que a memória é trazida à linguagem, a possibilidade da história ser
contada de outra maneira, do ponto de vista dos participantes diretos e indiretos. A
verdade passa por um crivo de reconhecimento do que se passou.
Arte Comentada Capítulo 8 97
1 | 	O PERDÃO COMO FORMA DE BUSCAR A VERDADE
O engajamento cultural e político na luta contra apartheid na África do Sul, evocou
em grandes linhas, a experiência da Comissão Verdade e Re­conciliação (CVR), sob um
modelo de troca (anistia individual condicionada à confissão dos crimes e à revelação
detalhada da verdade) e de reescrever a história. Denominou o trabalho da Comissão,
em favor de toda uma população ferida, como as irrupções de bondade e de inocência
no tempo (2004).
Diante do excesso do mal, da proporção dos crimes contra a hu­manidade,
da introdução da criminalidade no domínio público, com os Estados criminosos, a
própria atuação do direito encontra limites para a retribuição penal e civil, pois é difícil
imaginar qual a medida para punir proporcionalmente estes crimes ou saldar esta
dívida irreparável.
Assim, questionam-se os crimes aos quais não se pode punir adequadamente
e nem perdoar, por transcenderem todas as categorias morais e explodirem todos os
padrões de jurisdição – e que impuseram aprender e rediscutir as lições aprendidas
na tradição, e que seriam ensinadas de novo, tanto dentro como fora dos tribunais. É
diante deste imperdoável, que se coloca então a prova central do perdão (RICOEUR,
2007).
Nesse contexto, a anistia opera como elemento de prescrição seletiva e pontual
que deixa fora de seu campo certas categorias de delinquentes, quer dizer, um
esquecimento institucional. Posto isso, a figura da amnésia pode se confundir com a
anistia, quando imposto sobre uma condição ou uma recusa da memória.
Na verdade, a anistia tem por finalidade a reconciliação entre cidadãos inimigos,
ou seja, propõe a paz civil. Trata-se de um esquecimento jurídico limitado, mas de vasto
porte, na medida em que os encerramentos dos processos judiciais se equivalem a
apagar a memória na sua expressão como testemunha e, finalmente, dizer que nada
se passou.
Se uma forma de esquecimento poderá então ser evocada isto não será um
dever de calar o mal, mas de dizê-lo de um modo apaziguado, sem cólera. Isto não
será nem um comando, nem uma ordem, mas um voto de vontade.
Entretanto, a única forma que possuímos para tornar a memória presente é
buscando o passado, rememorando a verdade dos acontecimentos. No momento do
esquecimento dos rastros, dos vestígios, do testemunho, não há passado, este não
existe, foi transposto, esquecido, é o indizível. Não se está aqui chegando ao momento
do perdão, mas do esquecimento puro e vazio. Na medida em que há a recordação,
a reiteração do passado, visando o perdão futuro e o possível esquecimento. Para
esquecer o trauma é também necessário lembrar os acontecimentos.
Será a partir da narrativa que ocorrerá a reconstrução da memória da ditadura e
tambémdamemóriadaLeidaAnistia,narrativaestaessencialmentecrítica,quedesvela
as verdades impostas e abre espaço para as verdades construídas, denunciando uma
Arte Comentada Capítulo 8 98
amnésia vestida de esquecimento. Esta amnésia consiste no simples exercício de
fechar os olhos para o passado e tampá-lo em um local onde este não possa ser mais
discutido e desmascarado, diferente do esquecimento, que se alcança com o perdão.
É exatamente por essa razão que anistia e perdão no Brasil sempre foram
conceitos tão distintos, para não dizer antitéticos. A anistia consistiu num apagamento
que foi bem além da execução das penas. Incluiu, outrossim, a proibição de ações em
juízo, ou seja, proibição de todo e qualquer processo movido a criminosos e também a
proibição de mencionar os próprios fatos com sua qualificação criminal.
Dessa forma, Ricoeur (2007), tratar a anistia como uma verdadeira amnésia
institucional que nos faz agir como se o fato não tivesse ocorrido. Para o autor, todos
os delitos do esquecimento estão contidos nessa incrível, para não dizer ‘mágica’,
pretensão, de apagar os vestígios das discórdias públicas e, é nesse sentido que a
anistia é o contrário do perdão, pois este exige memória.
Enquanto amnésia comandada, a anistia dissimula um passado declarado
proibido, entretanto, não tem o condão de provocar o seu total esquecimento. Se
assim o fosse, a memória individual e coletiva seria privada da fundamental crise de
identidade que possibilita uma volta ao passado e de sua carga traumática. Inclusive
o que ocorre é justamente o oposto: cada vez que o sujeito ou o Estado tentam
submeter as lembranças a um processo de amnésia forçada, estas voltam com mais
força, uma vez que elas passam a se constituírem como trauma para o indivíduo ou
para a sociedade (TELES, 2005).
O problema que emerge é que justamente uma lembrança mal resolvida pode
acarretar o risco da repetição também na esfera pública. A ditadura se insere aqui, no
sentido em que quanto mais se resiste ao exercício de transbordar nossa memória
compartilhada, mais a ferida aumenta.
Portanto, não lembrar não significa esquecer a dívida, a dor, o trauma e caminhar
diante de um futuro que se abre aos cidadãos. Mas permanecer religado a um passado
que atormenta e que pode vir a se repetir na história.
Quanto a questão do filme, pode-se trazer os ensinamentos de Ricoeur sobre
o perdão como uma questão polêmica e divergente, a exemplo de sua posição a
respeito do mal, que veio reelaborando constantemente. Para o filosofo, a problemática
específica do perdão é a culpabilidade e da reconciliação é o passado (MIGLIORI,
2009). Nessa guisa, faz a convergência entre a origem do mal. O mal não é apenas
um problema teórico, mas sim:
[...] exige convergência de pensamento, ação e uma transformação espiritual
de sentimentos através do que denomina imaginação ética, este poder de abrir
novas possibilidades, de olhar as coisas de outro modo. Nesta matéria, propõe
uma mudança de interpelação que leve a pensar mais e de forma diferente, pois,
segundo ele, não se trata de procurar a origem do mal, que é inescrutável, um dos
maiores desafios reconhecidos da filosofia e da teologia, mas, tornando esta aporia
produtiva, no plano das exigências da ação, e sob o ângulo do futuro, considerá-lo
como aquilo que deve ser combatido (MIGLIORI, 2009, p. 249).
Arte Comentada Capítulo 8 99
Acentuando-se a luta prática contra o mal, a vantagem é não se perder de vista
o sofrimento. Ao contrário, todo mal cometido por um ser humano, é um mal sofrido
por outro. Fazer mal é fazer alguém sofrer. A violência não para de refazer a unidade
entre mal moral e sofrimento. A partir disso, toda ação política ou ética que diminua a
quantidade de violência exercida pelos homens uns contra os outros diminui a taxa de
sofrimento no mundo.
A capacidade de um ser que age e sofre, na sua fragilidade e vulnerabilidade, é
necessariamente uma capacidade reencontrada ou reconquistada. A tensão entre a
espessura do mal e a potência de si atravessa todo o filme. É, depois de uma situação
efetiva de culpabilidade ou de sofrimento que o sujeito pode esperar reconquistar a
capacidade de agir. Trata-se da passagem de uma vontade culpada a uma vontade
regenerada.
No epílogo, enfrenta-se o que denomina o “enigma do perdão”. Indaga-se, se o
perdão existe e se tem um sentido. É neste contexto que se baseia o trabalho. Ensina
então que o perdão constitui o horizonte comum dos três temas desenvolvidos na
obra: a memória, a história e o esquecimento. Os seus efeitos se entrelaçam com
todas as operações constitutivas destes três campos.
Existe, pois, uma espécie de dívida para designar uma relação de crédito e
débito, que vincula vítimas e ofensores – a ser saldada nos campos jurídico, político,
ético, religioso, em especial na tradição judaico-cristã, no caso do perdão, mediante às
condições da confissão, arrependimento, expiação e novas promessas. Essa dívida
é, no entanto, ambígua. Por um lado, em geral, uma impossibilidade de se restituir as
coisas ao estado anterior às perdas e ofensas, como a dívida das vítimas, dos mortos,
ou seja, poderá ocorrer uma desproporção na reparação em face do perdão.
Ademais, no caso do perdão, este deve sempre ser individual (vítima e ofensor),
segundo Ricoeur (2009). Assim, no primeiro plano o perdão enfrenta não somente
os pecados privados, mas o mal na esfera global e pública, o que obrigou, após a
Segunda Guerra, a se repensar sobre questões políticas, jurídicas e principalmente
éticas ante os crimes massivos praticados.
Estes acontecimentos motivaram a criação da ONU (Organização das Nações
Unidas), da Declaração dos Direitos Humanos de1948, com tipificação de crimes
contra a humanidade e Tribunais competentes para julgar esses casos, como forma
de resposta, como paralelamente, as convenções e as recomendações para ampliar
os direitos do homem e sua proteção universal.
Ressalte-se que, para grande maioria poderia servir como alento as atrocidades
cometidas por estes sujeitos. No entanto, para Ricoeur (2009), somente a vítima pode
perdoar, em termos jurídicos, perdão personalíssimo. Ou seja, o instituto do perdão é
pessoal e excepcional.
Esses pedidos de desculpa podem ser considerados uma espécie de reparação
simbólica, através do reconhecimento do erro cometido ao longo da história, ao lado
das penas e das indenizações materiais. A reconciliação política sob o ângulo da
Arte Comentada Capítulo 8 100
anistia visa recobrar a paz civil, na transição do regime militar para o democrático,
após graves acontecimentos de desestabilização social.
A reconciliação política com estas finalidades pragmáticas, todavia, tem seus
próprios fundamentos e pressupostos, mas anistiar crimes e criminosos leva certamente
às indagações sobre o imperdoável e a ocasião para o perdão propriamente dito.
Apesar das aparências, a anistia não conduz, de modo nenhum, à justa
compreensão da ideia do perdão e em alguns aspectos constitui sua antítese, como a
interdição de toda perseguição, julgamento e punição dos criminosos. A anistia de fato,
dá ensejo a muitas críticas, no seu uso e abuso para fatos graves (MIGLIORI, 2011).
Segundo a definição utilizada por Ricoeur, dar é “abandonar” alguma coisa a
alguém sem nada a receber de volta. O perdão representaria mais uma parada, um
estancamento, um ponto final, para poder partir do zero (2007).
As questões que se apresentam na temática interdisciplinar e transversal do
perdão atravessam o campo vizinho do direito e interpelam. Aclama-se uma apuração
de como é aplicada a justiça, de quais são as suas propostas diante dos crimes e de
sua irradiação na sociedade.
Toda essa crise do direito nos leva a repensar as formas de justiça: menos
violentas. Para Ricoeur, a sanção deve ter um futuro. Este futuro é dado, segundo
o filósofo, sob as formas da reabilitação e perdão, e neste par o reconhecimento é
fundamental (2007). A reabilitação, na verdade, operando como uma medida que
acompanha a execução da pena, visando restaurar a capacidade da pessoa, ou seja,
a reinserção como cidadão de corpo inteiro, no fim de sua pena.
Com efeito, a ideia que a preside é o restabelecimento de direitos da ser humano,
da sua capacidade, do estado jurídico que tinha perdido. Apagar as incapacidades,
restabelecer os direitos. Este restabelecimento da capacidade do sujeito é uma das
ideias-chave da equação do perdão.
Na verdade, a concepção da reconciliação e restauração supera-se a questão
punitiva corporal ou patrimonial de reparação, o processo restaurativo não se cerca
somente dessas reparações material como único objetivo, mas em busca de respostas
e verdades sobre os fatos ocorridos. As partes (autor e vítima) devem estar prontos
para o dialogo para encerrar aquela macula do passado e definir os novos rumos de
suas vidas, sem que a impunidade e inverdade reine à sociedade o que contraria todo
o senso de justiça e verdade. Nesse sentido:
o diálogo entre as partes não se estabelece para atribuir culpa e mensurar
danos, mas, para expor as razões que levaram cada participante ao processo e
compreender o significado individual de cada ser humano que ali se encontra;
uma exposição da vida, das dificuldades, das problemáticas e da forma como se
enfrenta; uma oportunidade de falar sobre o criem e como ele afetou o cotidiano
da vítima, com sua sensação de dano e insegurança; o arrependimento e a
conscientização da ofensa. (SALIBA, 2009, p. 179).
A reconciliação não se torna um ato esquecimento do ocorrido, mas sim uma
verdadeira solução para tal problemática. As partes devem estar cientes e conscientes
Arte Comentada Capítulo 8 101
da participação ativa para consecução do problema, estando disposto a reconciliar-se
e perdoar.
No paradigma de justiça contido no que se denomina atualmente, justiça
restaurativa. O objetivo desta justiça é o de restabelecer os laços sociais do autor e da
vítima, por meio da responsabilização e da reparação do dano, mas tendo as partes
uma participação ativa, na busca pela reconciliação.
Nesta linha, o perdão pode ser colocado como horizonte (punição, reabilitação e
perdão) e, segundo o filósofo, constitui uma lembrança permanente de que a justiça é
apenas a justiça dos homens e não poderá erigir-se em juízo último.
Reconhece como nascidas do perdão para a justiça, todas as manifestações de
compaixão e benevolência, no interior da própria administração da justiça, como se
ela, tocada pela graça ou dádiva, visasse, na sua esfera própria, a este extremo, um
meio termo, seguindo os legados de Aristóteles (2001).
A punição restabelece, talvez, a ordem, ela não dá a vida (MIGLIORI, 2011).
A possibilidade de desligar o agente do seu ato é a proposta na qual desemboca o
ensaio do perdão. O culpado capaz de recomeçar será a figura do desligamento que
comanda todas as outras. Este desligamento ou separação seria possível, provável.
A resposta ao arrependimento, esta sim, chega no tempo, quer ela seja repentina,
ou progressiva, à prova de uma vida inteira. Com fundamento em Kant, entende então
o pensador que o mal, por mais radical que seja não é originário. Diante disso, sob
o signo do perdão, o culpado teria restituído a sua capacidade de agir, e com isso,
aquela de continuar, de começar. É desta capacidade restaurada que decorreria a
promessa que projeta a ação em direção ao futuro (MIGLIORI, 2011).
Em sequência, entra-se na questão do perdão interno, ou seja, o qual ninguém
pode perdoar a si próprio. O perdão necessita que o outro veja os defeitos e os perdoe,
visto que, o homem jamais conseguiria enxergar dentro do seu narcisismo, seus erros.
Dentro desse contexto, Arendt também distingue o perdão da compreensão. Afirma-se
que a compressão é interminável, não podendo produzir efeitos e por um fim ao ciclo,
já que existe uma constante evolução e a lidar com essa realidade, isto é, compreender
e aceitar a nossa vida.
Quanto ao perdão, eleva-se como uma das grandes capacidades humanas, uma
das mais ousadas ações do homem “[...] desfazer o que já foi feito – e tem êxito
em instaurar um novo começo onde tudo parece ter chegado ao fim” (2009,p.118),
finalizando-se, consumindo em uma ação unissubsistente.
Nesse contexto, pode se afirmar que: “o perdão significa que embora, ferio você
opta por se magoar e sofrer menos. O perdão significa que se torne ponte da solução.
O perdão é para você e mais ninguém” (FREDERIC, 2007, p. 95).
Destaca-se que, o filme é audacioso ao passar o perdão como uma forma de
atingir a paz interior, que emerge quando assume o sofrimento ocorrido, bem como da
responsabilidade sentir e encarar, sob outra perspectiva, não mais como vítima.
Desta forma, o perdão mostra-se não sendo fácil, necessitando de meditação e
Arte Comentada Capítulo 8 102
reflexão a todo o momento e principalmente, força e atitude para tal. Assim, o perdão
a outro ser humano é uma dádiva do próprio homem, como um ser supremo aos olhos
de Deus, podendo minimizar indesejáveis sofrimentos.
Assim, o filme deixa um legado ao questionar a busca pela verdade como
elemento ético, moral e principalmente como mecanismo de transformação do ser
humano.
2 | 	A LEI DE ANISTIA É O VERDADEIRO PERDÃO?
A Comissão de Verdade e Reconciliação (CRV) da África do Sul surgiu com a
intenção de investigar os atos cometidos de março de 1960 até maio de 1994. Seu
objetivo era investigar e divulgar os atos criminosos praticados contra a população no
regime apartheid.
Criada pela Lei de Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional de 1995
tinha como função estabelecer e registrar os casos mais graves de violação de direitos
humanos ocorridos entre 1960-1994. Instituída pelo Presidente Nelson Mandela,
prisioneiro político de 1963/64 a 1990, e presidido pelo arcebispo anglicano da Cidade
do Cabo, Desmond Tutu, o qual o ganhou o Prêmio da Paz em 1984.
Foram três anos de trabalhos (1995-1998), no qual foram examinados e narrados
os relatos das vítimas e dos criminosos, para tornar públicos os crimes praticados
durante o período apartheid. A Comissão Verdade e Reconciliação, além de ser um
acontecimento político representou uma reflexão não somente filosófica, mas também
política, antropológica, jurídica e ética:
[...] foi um acontecimento cujas dimensões excedem as duas justificativas políticas
(ruptura com o regime apartheid respeitando os termos do acordo que não objetivava
“caça às bruxas”, técnicas (encerrar o antigo regime e organizar a sucessão),
psicológicas (as vítimas pediam para serem publicamente reconhecidas) e que,
ainda hoje, assados anos do encerramento dos trabalhos e da entrega de seu
relatório (1998), tem sido objeto de reiteradas e renovadas análises, sob diferentes
ângulos, tal a riqueza dos sentidos e tensões de sua experiência sem precedentes
e de seus efeitos (MIGLIORI, 2009, p. 223).
Utilizaram-se quatro conceitos de verdade na Comissão: a verdade forense
(anistia); verdade pessoal (as audiências e os relatos das vítimas, dos criminosos);
verdade social (ligada ao processo de partilha entre ofensores e as vítimas) e a verdade
que cura (justiça restaurativa), na busca de uma verdade eficaz:
Assim, na perspectiva da verdade dos fatos (ou forense), apresentam-se as
questões da anistia e suas relações com a problemática do perdão; na da verdade
pessoal e narrativa e na da verdade social (temas tratados em parte no Capítulo 4,
Terceira Parte, no tocante ao trabalho de luto e lembrança); na verdade que cura
(bealing) apresentam-se os princípios da justiça restaurativa empregada pela nova
unidade africana (MIGLIORI, 2009, p. 226)
A Comissão era norteada não pela justiça criminal, mas sim pela justiça
restauradora. Foi a primeira e a única Comissão com a prerrogativa de anistiar os
Arte Comentada Capítulo 8 103
criminosos da época. Buscava-se uma justiça social com bases no ouvir, no reparar e
restabelecer a dignidade as vítimas.
Foram mais de 22 (vinte e dois mil) vítimas e 07 (sete mil) perpetradores do
apartheid ouvidos e que deram seus testemunhos perante a CVR. As audiências eram
públicas e com ampla transmissão nos meios sociais:
O primeiro e segundo parágrafos do Epílogo constituem uma retomada em
perspectiva do processo de democrático. O segundo parágrafo evoca, pela
primeira vez, a ideia de reconciliação e reconstrução da sociedade. As referências
a esses objetivos são apenas declaratórios. Nada se diz sobre no que consistem
a reconciliação e reconstrução. O terceiro parágrafo é o coração da matéria,
explicando o papel assinalado à Constituição nesse processo. [...] Esse parágrafo
refere-se, de maneira mais direta, a critérios jurídicos precisos/; a violação dos
direitos do homem e os princípios de direito humanitário. [...] O quarto parágrafo
contempla a filosofia do mecanismo que será utilizado. [...] O parágrafo quinto do
Epílogo, que trata da anistia, reconhece que a promoção da reconciliação e da
reconstrução passa por uma concessão da anistia para os atos, ações, abstenções
e infrações cometidas com a finalidade política durante os anos de conflito. [...] O
parágrafo sexto, por fim, aparece como uma conclusão do conjunto do processo
constitucional. Declarando que, com essa Constituição e seus compromissos, um
novo capítulo da história da África do Sul se abre, os constituintes o reconhecem
como um conjunto (2009, p. 229-231).
Pretendeu-se assim com o reconhecimento dos crimes praticados e a devida
reparação das vítimas e que os excessos o período sangrento não seja esquecido
pela concessão da anistia.
Evidencia-se que impôs ao legislador a obrigação da promoção da reconciliação
através. A constitucionalização visava o conhecimento e o reconhecimento e não o
esquecimento. Assim, a principal função da CVR baseava-se em: “reconciliar um país
inteiro, realizar, a todo custo, o sonho de uma nação unificada” (2009, p. 232).
O filme discute o processo de reconciliação a partir do diálogo, fazendo com que
houvesse uma transição pacífica do regime do apartheid para a democracia. Ressalte-
se que para que houvesse a anistia, haveria um preço: a confissão. Portanto, a anistia
era individual e condicionada. Assim, os agentes deveriam se submeter a todas as
exigências e critérios para então o Comitê pudesse avaliar o pedido de anistia. A
referida normativa pretendia-se com isto, a verdade como cura e a reparação. A anistia
era somente um meio para que se concretizasse.
Indiretamenteaconcessãodaanistiaestavaligadanareconciliaçãoereconstrução
da harmonia entre os homens, da capacidade do homem de compreender e aceitar o
outro, dos desafios do novo regime político e da união entre à população.
Assim, o perdão mascarado pela anistia, configura-se pela generosidade,
solidariedade, fraternidade, amor, união, e o bem comum. Isto demonstra que para
alcançar a paz era preciso a manifestação do amor e não de represálias, ódio e mais
vingança.
Composta por 29 membros a Comissão contava ainda com a ajuda de trezentos
pesquisadores, juristas, arquivistas, secretárias, entre outros. A Comissão dividia-se
em três comitês: o Comitê de Violação dos Direitos do Homem, o Comitê de Reparação
Arte Comentada Capítulo 8 104
e de Indenização, o Comitê de Anistia. Cada um com funções autônomas, mas com
um objetivo: alcançar a reconciliação e a reconstrução da unidade nacional.
Os perpetradores relatavam com a confiança que eles seriam anistiados. E as
vítimas davam seus testemunhos com a confiança de reparação. Entretanto, esta
reparação era difícil pela falta de recursos do Estado.
Todavia, para o filosofo Derrida, quem está pedindo perdão não são as pessoas
e sim as entidades, descaracterizando o perdão. Ao discorrer tendo em vista “quem
deve perdoar?”, Derrida menciona o caso da mulher da África do Sul que foi convidada
a escutar o relato de seus assassinos. Ao perguntar se ela está pronta para perdoar,
ela responde: “Nenhum governo pode perdoar (silêncio). Nenhuma comissão pode
perdoar (silêncio). E eu não estou pronta para perdoar” (2009, p. 266). Dessa forma,
isto demonstra que o Estado ou a instituição pública não pode perdoar. Isto significa
que o perdão nada tem a ver com a justiça judiciária, ou seja, o perdão não pode ser
institucionalizado.
Vimos que na África do Sul, pós-apartheid, foi instaurado a Comissão de Verdade
e Reconciliação, onde seu trabalho foi tornar públicos os crimes cometidos durante o
período do aparheid.
Traçando esta linha, pode-se mencionar a anistia no Brasil, cujo próprio governo
militar promulgou, em 1979, a Lei de Anistia. O país estava fragmentado pelas disputas
de poder, então, o Presidente da República, João Batista Figueiredo, numa busca de
restabelecer a união nacional, promulgou a Lei de Anistia. Sua função era impor o
esquecimento dos crimes de tortura dos agentes do Estado, numa época de transição
democrática que o Brasil estava vivenciando.
Em 2006, a discussão da revisão dessa lei ganhou nova expressão quando a
família Teles moveu ação cível contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante
Ustra. Tratava-se de uma ação de natureza declaratória, onde o pedido principal era o
reconhecimento das práticas de tortura às quais foram submetidos os membros dessa
família. O coronel Ustra era o diretor do Destacamento de Operações de Informações
– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI‑CODI) em São Paulo entre setembro
de 1970 e janeiro de 1974, período durante o qual houve 502 denúncias de tortura e
49 mortes nas dependências do DOI‑CODI.
O juiz do caso, Gustavo Santini Teodoro aceitou julgar o coronel, na justificativa
que a Lei de Anistia não impedia ações na área cível em que se tratava de violação
de direitos humanos. Houve críticas na época. Mas, esta iniciativa foi importante para
reabrir discussão acerca da Lei de Anistia, de 1979, que perdoou os crimes políticos
ou conexos no período de 1961-1979. “Ao contrário do que fizeram os argentinos, a
sociedade brasileira costuma deixar barato o resgate de grandes injustiças da história
para não manchar sua reputação de povo cordial e feliz. Mas pagamos um alto preço
por essa suposta felicidade” (2009, p. 294).
Por fim, o pensamento de Tronca no sentido de Foucault:
Arte Comentada Capítulo 8 105
[...] a história como lugar de apagamento da memória, capaz de evocar a memória/
reconhecimento em detrimento da memória involuntário. O caráter instituinte da
linguagem e do imaginário coletivo acaba por converter a memória do passado em
narrativas históricas, marcando o presente e projetando o futuro dos grandes males
da história da humanidade (2009, p. 296).
Assim para não alimentar o ressentimento, o autor trabalha a memória que deve
ser capaz de escrever como se fosse o pensamento de Foucault. Ricoeur ao escrever
sobre a anistia entende ser ela um “esquecimento institucional”, como se fosse um
esquecimento comandado, forçado:
Não é possível tratar os fatos históricos dolorosos como algo que nunca aconteceu.
Isso não funciona. As sociedades não esquecem. A degeneração (tal como os
terapeutas a chamam) em nome da conciliação nacional. Tal como ocorreu com a
Lei de Anistia no Brasil, pode ter um efeito terapêutico, mas é suspeita do ponto de
vista da verdade e da justiça (2009, p. 299).
Para Ricoeur, a anistia é contrária ao perdão. O perdão, em suas palavras,
manifesta-se por meio da lembrança, exigindo a memória viva dos fatos. Já, na
anistia, isto não ocorre, posto que se exige um esquecimento forçado, uma “amnésia
comandada” (2009, p. 298), em nome da paz social.
É exatamente por essa razão que anistia e perdão, no Brasil, há tempos são
conceitos tão distintos. A anistia consistiu num apagamento que foi bem além da
execução das penas. Incluiu, outrossim, a proibição de ações em juízo (ou seja,
proibição de todo e qualquer processo movido a criminosos e também a proibição
de mencionar os próprios fatos com sua qualificação criminal). Dessa forma, trata-se
a anistia de uma verdadeira amnésia institucional que nos convida a agir como se o
fato não tivesse ocorrido. Para o legislador, todos os delitos do esquecimento estão
contidos nessa incrível, para não dizer “mágica”, pretensão, de apagar os vestígios
das discórdias públicas e, é nesse sentido que a anistia é o contrário do perdão, pois
este exige memória (MIGLIORI, 2009, p. 259).
Enquanto amnésia comandada, a anistia dissimula um passado declarado
proibido, entretanto, não tem o condão de provocar o seu total esquecimento. Se
assim o fosse, a memória individual e coletiva seria privada da fundamental crise de
identidade que possibilita uma volta do passado e de sua carga traumática. O que
ocorre é justamente o oposto, contudo: cada vez que o sujeito ou o Estado tentam
submeter as lembranças a um processo de amnésia forçada, estas voltam com mais
força, uma vez que elas passam a se constituir como trauma para o indivíduo ou para
a sociedade (TELES, 2005, p. 322).
Portanto, “não lembrar” não significa esquecer a dívida, a dor, o trauma, mas, do
contrário, o retorno a um passado que atormenta e que pode vir a se repetir na história
brasileira.
Por tal motivo, entende-se que somente o perdão pode ser visto como elemento
de reconciliação nacional. Um perdão que não olhe para quem “mais sofreu” ou “mais
Arte Comentada Capítulo 8 106
impôs sofrimento”, mas que apenas atenta à sua estrita finalidade de fornecer ao
passado (e quem com ele sofre) uma boa dose de tranquilidade e paz. Caso a Lei da
Anistia brasileira venha a ser revista em um futuro próximo, modestamente se entende
que o caminho do punitivismo puro e simples não é o mais adequado, tendo em vista
que somente promoverá mais ódio, rancor e o risco de um futuro incerto para o povo
brasileiro. Que a anistia brasileira seja, pois, condicionada à “verdade”: somente
através dela é que conseguirão os infratores (independentemente do lado que estejam)
o perdão da sociedade brasileira, da história, e de suas próprias consciências. Essa é
a verdadeira essência de uma justiça que restaure os laços de paz do Brasil. Essa é a
correta forma de utilizar a justiça de transição como elemento da justiça restaurativa.
CONLUSÃO
O perdão encontra-se num jogo de temporalidades. Diferentemente da memória,
não se opera olhando unicamente para trás, ele consiste num caminhar em direção
ao amanhã, ou melhor, caminhar para o horizonte de liberdade. Mas, para isso, é
necessário também perpassar pela representação do passado, buscando nela um
outro horizonte possível: o da superação. É um lembrar para se esquecer, que se opera
com os olhos de uma memória crítica e feliz, porque reconhece a dívida passada, mas
ainda assim é capaz de domina-la. A lembrança é aqui meio para recriar os laços com
o passado a partir do acoplamento com uma sempre nova promessa.
Por outro lado, o que nos parece, é que as tentativas de apagamento dos rastros,
dos documentos e dos crimes da ditadura na África do Sul e no Brasil caminham num
sentido bem diferente daquele preconizado pela cura indicada pelo perdão. A memória
é, nesse sentido, impedida por um esquecimento de fuga, instituindo uma relação
patológica com o passado traumático.
Possibilitar o julgamento dos agentes públicos que cometeram delitos na época
de repressão não é simplesmente mexer em feridas ou fomentar o ódio, mas permitir
trilhe seu caminho em direção à busca pelo perdão. Isso implica reconhecer o papel
terapêutico da construção de uma memória que busque a verdade dos fatos e a
narração das vítimas, conforme a Comissão Verdade buscou na África do Sul e no
filme.
Operdão,nessalógica,éinterrompimento,masnãoéimpunidade;éesquecimento
da dívida, mas não dos fatos; é generosidade. Assim, deve reconhecer os atos
praticados durantes esse período sangrento, recontar essa história e reconhecer as
próprias potencialidades de um “homem capaz” de recontar a sua história e de se
responsabilizar pelas suas faltas como única forma de seguir em frente.
Dessa maneira, o perdão significa afirmar que o homem não se reduz a suas
faltas e a negatividade pelos delitos praticados. Mas é justamente, por isso, que ele
também está suscetível a ser imputado dentro de uma esfera jurídica, que lhe assegure
também o momento da sua narração. A partir do devido processo, o individuo encontra-
Arte Comentada Capítulo 8 107
se na posição de ser perdoado pela vítima e de ter restabelecida a sua dignidade.
Todavia, há algo no perdão que extrapola todo o cálculo do direito que é a sua
generosidade incondicional. Ele é sublime demais para ser unicamente jurídico, mas
nem por isso encontra-se totalmente desligado do papel a ser desempenhado pelo
processo judicial. O perdão encontra, sim, no direito a capacidade de estabelecer-
se no mundo dos homens que é sempre contingente, indicando caminhos para a
superação das doenças da memória e da relação obsessiva que instituímos com o
nosso passado.
 
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
FREDERIC, Luskin. O poder do perdão. Tradução de Carlos Szlak. SP: Francis, 2007.
MIGLIORI, Maria Luci Buff. Horizontes do perdão: reflexões a partir de Paul Ricoeur e Jacques
Derrida. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2009.
________. In: DE PAULA, A; SPERBER, S. (Orgs.). Teoria literária e hermenêutica ricoeuriana: um
diálogo possível. Dourados, MS: UFGD, 2011. p. 247-269.
TELES, Edson Luiz de Almeida. A anistia e os crimes contra humanidade. Artigo publicado na
Revista Brasileira de Ciências Criminais, número 55, jul-ago 2005, ano 13, p. 315-337.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François et. Al.
Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.
SOMBRAS do Passado (RED DUST). Direção: Tom Hooper. Produção BBC Films e Distant Horizon.
Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 2004, 110min. Son, Color, 1DVD.
Arte Comentada Capítulo 9 108
CAPÍTULO 9
DISPOSITIVO E COLETIVOS ARTÍSTICOS: UMA
METODOLOGIA DE NARRAR O ENCONTRO
Lara Lima Satler
Universidade Federal de Goiás, Programa de
Pós-Graduação em Performances Culturais,
Goiânia, Goiás
Lisandro Magalhães Nogueira
Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-
Graduação em Performances Culturais, Goiânia,
Goiás
RESUMO:NestetextoinvestigaremosaGarapa,
especificamente na realização do projeto
de sua autoria intitulado Correspondências.
Objetivamos analisar as metodologias adotadas
para realização audiovisual neste projeto.
Neste sentido, quais as estratégias narrativas
da produção audiovisual realizada por quem se
afirma coletivo artístico? A metodologia utilizada
para a construção desta reflexão foi a pesquisa
bibliográfica, a entrevista em profundidade
e análise de imagens em movimento. Como
resultados,pretendemoscontribuircomodebate
sobre o fenômeno contemporâneo de realizar
audiovisual em agrupamentos que, devido
aos seus modos de fazer, se autodenominam
coletivos.
PALAVRAS-CHAVE: coletivismo, dispositivo,
metodologia
ABSTRACT: In this text we will investigate the
Garapa,specificallyintherealizationoftheproject
of his authorship entitled Correspondence. We
aim to analyze the methodologies adopted for
audiovisual realization in this project. In this
sense, what are the narrative strategies of the
audiovisual production performed by those
who claim artistic collective? The methodology
used to construct this reflection was the
bibliographical research, the in-depth interview
and the analysis of moving images. As a result,
we intend to contribute to the debate about
the contemporary phenomenon of performing
audiovisual in groups that, due to their ways of
doing, call themselves collective.
KEYWORDS: collectivism, strategies,
methodology
1 | 	INTRODUÇÃO
Neste texto, investigaremos a Garapa,
especificamente na realização do projeto de sua
autoria intitulado Correspondências (GARAPA,
2013b, 2013c, 2013d, 2013f). Objetivamos
analisar as metodologias adotadas para
realização documental neste projeto. Neste
sentido, quais as estratégias narrativas da
produção de um grupo que se afirma coletivo
artístico?
	 Ametodologia utilizada para a construção
desta reflexão foi a pesquisa bibliográfica
(STUMPF, 2005), a entrevista em profundidade
Arte Comentada Capítulo 9 109
(DUARTE, 2005), análise de imagens em movimento (ROSE, 2002), bem como
normatização do texto (ISKANDAR, 2010). A fim de compreender sobre o fenômeno
contemporâneo de realização audiovisual em coletivo, buscamos compreender
sobre como se constituem, como se organizam e a partir de quais motivações. Como
resultados, pretendemos contribuir com o debate sobre o fenômeno contemporâneo
de realizar audiovisual em agrupamentos que, devido aos seus modos de fazer, se
autodenominam coletivos.
2 | 	COLETIVISMO ARTÍSTICO EM DESTAQUE
Crusco (2013, p. 94) ao fazer uma retrospectiva sobre o debate público brasileiro
em 2013 argumenta que os coletivos, “grupos de pessoas que se unem em prol de um
objetivo comum, seja ele político, artístico ou puramente profissional”, se destacam.
Apresenta ainda que conceitos como horizontalidade das relações, trabalho coletivo,
ambiente compartilhado, autogestão, descentralização das decisões, flexibilidade,
mobilidade, nomadismo são utilizados com alguma recorrência por grupos que se
autodenominam coletivos.
Em termos históricos, Stimson e Sholette (2007, p. 3) alertam para o fato de que
a coletivização na arte não é uma novidade, mas “é apenas o renascimento intenso, o
ressurgimento dos fantasmas do passado, uma retomada de oportunidades e velhas
batalhas”. Os organizadores do livro Collectivism after Modernism – The Art of Social
Imagination After 1945 (2007), contudo, propõem uma periodização histórica que
serviria para analisar os coletivos atuais de acordo com suas diferentes ambições em
relação ao coletivismo anterior à Segunda Guerra Mundial. Se nesta época as formas
de voz coletivas falavam em nome de uma nação ou classe ou ainda da humanidade,
os coletivos posteriores a ela renascem sob um diferente fetiche: a virada cultural.
Os autores argumentam que a virada cultural é originária de um período de
guerra não declarada oficialmente entre capitalismo e socialismo, ou seja, entre o fim
da Segunda Guerra Mundial, 1945, e a queda do Muro de Berlim, representando o
fim da Guerra Fria, 1989. Apresentam que desde este período a cultura gradualmente
adquire um peso político e reciprocamente a política assume um tom cultural.
Da luta dos direitos civis graficamente representados na revista Life aos slogans
de Maio de 1968 inspirados nos Surrealistas, da emergência da Nova Esquerda
ela mesma renascendo da contracultura a uma variedade de transformações e
contradições compõem-se a virada cultural, que reorganiza a vida diária e as lutas
das classes subalternas. (STIMSON; SHOLETTE, 2007, p. 9)
Alegam ainda que entre estas duas datas, modos coletivos de trabalho e
associações artísticas sofriam rotineiras denúncias e represálias diretas ou indiretas de
campanhas anticomunistas e pressões conservadoras, como ocorreu com The Artists
League e Artistis Equity. Fundada em 1947, a Artistis Equity Association (AEA) foi
criada para proteger a condição econômica de artistas norte-americanos que viveram
Arte Comentada Capítulo 9 110
nos EUA durante a guerra e, na medida do possível, apoiá-los no período pós-guerra.
Sokol (1999) afirma ser difícil perceber a pouca atenção que foi dada às condições
econômicas dos artistas norte-americanos num período em que mercado da arte se
aquecia, os museus de arte contemporânea expunham obras e a vida destes artistas
e os jornais das cidades cobriam estas exposições.
Contudo, o apoio governamental a estes artistas tinha desaparecido durante a
Grande Depressão e os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Além disso, os
colecionadoresdeartesevoltaramparaomercadoEuropeueparaobrasdeartistascom
reputação internacional e também no período imediato do pós-guerra, organizações
artísticas eram vistas com desconfiança por críticos e políticos conservadores, primeiro
devido a uma antipatia ao ativismo de grupos como o Artists’ Union, segundo por causa
da mentalidade conspiratória desenvolvida durante a Guerra Fria. É neste contexto
que surge a AEA.
Também nas ficções cinematográficas hollywoodianas do período supracitado
o pânico era expresso através de narrativas conspiratórias, infiltrações comunistas e
invasões alienígenas. Seed (1999) argumenta que a Guerra Fria foi uma metáfora. O
autor relata que o termo geralmente datado do discurso proferido por Bernard Baruch
em 1947 e depois popularizado pelo jornalista Walter Lippmann, já tinha sido usado
em 1945 por George Orwell em seu artigo You and The Atom Bomb no qual previu
uma situação de paralisia armada, de hostilidade nunca antes vista entre combatentes
governamentais.
Ao examinar discursos de políticos norte-americanos, o autor argumenta que
a percepção deles sobre a Guerra Fria era estruturada por meio de metáforas como
a que associou a União Soviética a predadores perigosos. Muitas destas metáforas
tornaram-se narrativas cinematográficas. Ele cita o filme Them! (Gordon Douglas,
1954), traduzido como O mundo em perigo, argumentando que sua dupla metáfora -
formigas como monstros e formigas como pessoas - foi utilizada para dramatizar o medo
de um imprevisível ataque Comunista por meio de armas químicas e radioatividade
Mas se especialmente nos Estados Unidos foi levantado uma bandeira de
perseguição contra o coletivismo artístico, também lá ele reemergiu da cultura
marcado pelo compartilhar das experiências, pelo desejo de falar em uma voz coletiva,
possibilitando rupturas ao dar lugar a questionamentos sobre cristalizadas narrativas
sociais.
Stimson e Sholette (2007) argumentam que sob a égide de uma virada cultural, o
coletivismo artístico após a Segunda Guerra Mundial raramente interessa-se por uma
unidade como a singularidade de vanguarda, pois sua aspiração é, ao invés de lutar
contra a inevitável heterogeneidade, abarcá-la. Argumentam ainda que o coletivismo
depois do modernismo está organizado em redes de grupos artísticos informais, que
com independência política e ativista se volta para o mercado do espetáculo, tentando
usar sua rede de significação e distribuição para intervir no mundo da cultura de massa.
Drew (2007) acrescenta a esta discussão o recorte do coletivismo na videoarte,
Arte Comentada Capítulo 9 111
buscando outros caminhos para observar sua origem como expressão artística e
exemplificando como alguns coletivos de vídeo ficaram à margem da história devido às
rígidas fronteiras estabelecidas pela crítica e historiadores. Não nos interessa resumir
aqui sua reflexão, mas aproveitá-la como referência para coletivos que se utilizam do
audiovisual nos dias atuais.
Muitos críticos de arte, curadores, e outras autoridades da arte mundial têm se
fixado na forma e frequentemente ignoram o trabalho fundamentado no conteúdo
ou no contexto. Do mesmo modo, eles tendem a repudiar trabalhos classificados
como arte política ou não arte, como a arte que está focada em questões sociais
ou a arte que está situada na esfera pública, que é também despersonalizada e
menos individualizada e, então, menos inerente a aprovação e comercialização
e ao estereótipo de arte sensível e criativa. [...] Movimentos artísticos como o
Surrealismo e o Dadaísmo, movimentos muitas vezes falsamente aprovados pelo
establishment da arte, eram interessados em tais questões como outros movimentos
culturais que exigiram a fusão da vida cotidiana com a expressão artística, como
os Situacionistas, os Beats, os Diggers e os Hippies. Muitos coletivos de vídeo
continuam a trabalhar inspirados pela tradição iniciada por estes movimentos.
(DREW, 2007, p. 97)
Como veremos a seguir, Paulo Fehlauer (2013a), membro fundador da Garapa,
idealizador e proponente do Correspondências, tem nos Situacionistas uma referência
fundamental tanto para o coletivo quanto para o projeto. É preciso compreender que os
Situacionistas foram um grupo de intelectuais e ativistas franceses liderados por Guy
Debord e Raul Vaneigem. Segundo Mann (2010, p. 27), o trabalho deles “culminou
em duas grandes proposições teóricas, ambas publicadas em 1967: A sociedade do
espetáculo de Debord e A revolução da vida cotidiana de Vaneigem”.
Quando explicava sobre a metodologia do Correspondências, Fehlauer (2013a)
afirma que para o trabalho do projeto nascer da experiência de percorrer a cidade foi
fundamental a “ideia dos Situacionistas de criar trajetos, de percorrer, de absorver a
cidade, de criar situações para que a criação surja a partir dessa experiência”. A partir
dessa referência, apresentaremos o coletivo Garapa, especialmente sua realização do
projeto Correspondências.
Afinada com a terminologia contemporânea do coletivismo artístico, Garapa
pode ser compreendida como um estúdio, bureau ou mini-produtora que articula
colaboradores em seus trabalhos comerciais e autorais. Desenvolvido em 2013, com o
apoio financeiro da nona edição do Programa de Rede Nacional Funarte Artes Visuais,
pela Garapa, o projeto Correspondências levou oficinas de produção multimídia a
cinco capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo. As
oficinas, como explicou Fehlauer (2013a), durante uma entrevista realizada na sede da
Garapa em São Paulo, não eram técnicas, antes tinham como objetivo jogar fagulhas
de produção coletiva em outros cenários e produzir a partir do encontro, possibilitado
pelas oficinas. No projeto Correspondências, ele argumentou, os documentários foram
produzidos coletivamente e em rede.
Desse modo, o projeto se desenvolveu pela Garapa, um grupo com quatro
membros fixos, mas em cada capital onde as oficinas foram realizadas (Curitiba,
Arte Comentada Capítulo 9 112
Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo) um coletivo distinto se estruturou.
Segundo Hollanda (2013, p. 2),
Os coletivos são formados apenas em função da produção de um ou mais projetos.
Estruturam-se para aquele fim específico e em seguida se recompõem com novos
participantes em função de outro projeto. Isso quer dizer que a composição de um
coletivo não é fixa. É móvel.
Portanto, a primeira distinção que nos interessa fazer é entre o coletivo Garapa e
o coletivo do Correspondências em cada capital. Em outras palavras, compreendemos
que cinco coletivos distintos foram formados, no projeto no momento das oficinas
presenciais. Embora o Correspondências tenha sido unicamente composto por
sessenta participantes, doze por cidade, mais os membros da Garapa e alguns
parceiros locais durante os diálogos e trocas por meio das redes virtuais, no presencial
os grupos se constituíram distintamente em cinco. A relação estabelecida resultou em
caminhos diversos sinalizando diferentes escolhas, dentro de um mesmo tema a ser
trabalhado nos documentários: a mobilidade urbana.
Fehlauer (2013a) quando apresenta as razões do processo de realização exigir
a alteração de um único documentário para o que ele denominou de vinte “narrativas
fragmentadas” afirma que “seria muito difícil fazer um trabalho linear, por exemplo, uma
narrativa linear a partir de uma experiência que passa por cinco cidades diferentes, com
cinco grupos completamente diferentes, em momentos diferentes”. Sua compreensão
consubstancia a forma de organização dos coletivos refletida por Hollanda (2013) para
quem eles são formados em função de um projeto ou um fim específico e recompõem-
se com novos membros em seguida.
No caso da Garapa há uma dupla questão envolvida, pois além de se intitular
um coletivo que realiza projetos autorais com a intenção de provocar a criação de
outros coletivos – jogar fagulhas de produção coletiva – é também uma organização
comercial, um bureau ou mini-produtora. Mesmo existindo essa ambiguidade na
sua composição, perceberemos a seguir na sua organização características que lhe
conferem traços marcantes de um coletivo.
Seguindo a própria argumentação de Hollanda (2013) os coletivos têm como
características a intervenção no espaço urbano; a denúncia social e a discussão da
produção no mercado de arte; a organização independente, rizomática, nômade,
descentralizada, flexível e situacional; a busca por patrocínio e a oferta de cursos e
trabalhos em design, ilustração e vídeo para a realização das suas ações; a autogestão
dos próprios produtos, eliminando a figura do curador, das galerias e outras autoridades
do circuito artístico; a composição móvel e vinculada apenas a projetos pontuais e
imediatos; o uso frequente de tecnologias virtuais para as trocas de informações de
modo relacional, por meio de redes; e finalmente, o agir imediato e concreto e por
necessidade.
De todas as características apontadas acima, apenas a composição móvel não se
aproxima do modo como a Garapa tem integrado seus membros, por isso, afirmamos
Arte Comentada Capítulo 9 113
que este item é questionável na argumentação da autora, bem como compreendemos
que a Garapa atua como um coletivo artístico, ou seja, se compõe e organiza suas
produções na perspectiva do coletivismo desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial
segundo Stimson e Sholette (2007).
A partir de agora trataremos de Correspondências Goiânia, que apesar de ser
montado pela Garapa configurou-se, depois desta seleção, um coletivo autônomo
e distinto, pois apresenta outros participantes, outras experiências e trocas e ainda
porque nele outros aprendizados foram construídos. Ainda sobre a composição,
Fehlauer (2013a) afirma que,
E como processo [coletivo] é uma coisa que nos interessa muito, levamos para
outros meios, outros ambientes. É por isso que quando a gente leva oficina para
outros lugares, nós tentamos sempre criar grupos. Primeiro, selecionar pessoas de
perfis bastante diferentes. Então no caso do Correspondências tinha – era super
aberto – tinha arquiteto, jornalista, fotógrafo, gente do vídeo, das artes – era bem
amplo o espectro de pessoas.
Segundo o texto do projeto publicado em um site específico para sua divulgação
nacional, “os grupos de trabalho serão montados considerando a complementaridade
dos perfis” desejados os quais estavam listados por artistas e “estudantes e profissionais
do campo das artes visuais, do audiovisual e da comunicação” (FEHLAUER, 2013b).
Quando observamos o objetivo da complementação dos perfis dentro do projeto
Correspondências, notamos que esta seleção é determinante para composição dos
cinco coletivos. Ela sinaliza um modo de trabalho dentro das oficinas, que foram os
encontros presenciais. Elas foram caracterizadas por pequenos núcleos de trabalho,
com líderes funcionando como monitores que auxiliaram os demais participantes e
consequentemente a coordenação do projeto. Em outras palavras, observamos que o
perfil desejado aponta para o planejamento de uma organização de trabalho nuclear.
Acho que neste caso, como o trabalho viajou por cinco cidades, cada uma tinha
uma realidade diferente, né? E cada grupo também acaba tendo uma realidade
diferente. A gente tenta, na hora de montar os grupos, a gente também tenta
compensar essas diferenças. Então não vai ter um grupo com todos os fotógrafos
e outro com nenhum, sabe? A gente tenta misturar isso para que a coisa fique mais
equilibrada. E aí o próprio grupo acaba se ajudando. Então aquele cara que já
trabalha com fotografia, o cara que trabalha com vídeo, ele vai, ele mesmo vira um
núcleo ali, ele orienta as outras pessoas sobre o funcionamento, né, que é uma das
coisas que a gente coloca sempre no primeiro encontro: é que não é uma oficina
técnica, não é o objetivo, tanto que acontece, é bastante comum que exista uma
evasão logo depois do primeiro encontro. (FEHLAUER, 2013a)
Além de sinalizar o trabalho dos supostos doze participantes (afinal eram doze
vagas) em núcleos, essa organização nuclear assinala-nos que as oficinas eram muito
mais um misto de espaço do encontro e trocas de experimentações coletivas para
uma realização audiovisual do que um ambiente tradicional de aprendizado sobre
documentários em rede. Por isso, Fehlauer (2013a) afirma,
a gente nem usa muito o termo ensinar como uma ideia, porque no fundo a gente
faz é meio que um trabalho, a gente faz é uma articulação assim, tá no meio de
Arte Comentada Capítulo 9 114
pessoas que já têm conhecimento, que tem algo a contribuir com o processo. E
então tanto que nesse caso a gente já fez um recorte de público, que é um público
já capacitado.
Neste sentido, observamos que as oficinas, neste projeto, funcionaram como o
situacional, nos termos de Hollanda (2013), ou seja, o espaço para o encontro que
resultará na produção coletiva. Desse modo elas funcionam como um coletivo que
se encontra para realizar. As dúvidas técnicas, de linguagem ou de estilo narrativo
foram abordadas caso os membros perguntassem, durante estes encontros, fossem
eles virtuais ou presenciais. Assim temos ainda que as oficinas foram o espaço dos
próprios coletivos existirem, foram alegoricamente pretextos para que os grupos se
articulassem e realizassem audiovisual juntos.
3 | 	DISPOSITIVO NARRATIVO COMO METODOLOGIA COLETIVISTA
Para a captação e montagem das imagens do documentário o projeto partiu de um
dispositivo narrativo, ou seja, de uma metodologia para construção narrativa intitulada,
neste projeto, jogo cartográfico. Migliorin (2005) afirma que o conceito de dispositivo
tem sido recorrente em dois campos específicos do audiovisual contemporâneo, no
documentário e em produções ligadas à vídeocriação.
Embora o autor, no referido texto, diferencie o uso que faz do conceito de
dispositivo do popularizado por Dubois (2004, p. 33), notamos que ambos os autores
têm noções que se assemelham, pois para o segundo na dimensão “maquínica” do
dispositivo cinematógrafo “a técnica e a estética” nele “se imbricam” assim como nas
artes rupestres o dispositivo
institui uma esfera ‘tecnológica’ necessária à constituição da imagem: uma arte do
fazer que necessita, ao mesmo tempo, de instrumentos (regras, procedimentos,
materiais, construções, peças) e de um funcionamento (processo, dinâmica, ação,
agenciamento, jogo).
Migliorin (2005) pensa no dispositivo como o deflagrador de um processo narrativo,
como um jogo ou estratégia que gera acontecimento no mundo e, por conseguinte, na
imagem.
O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré-
existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir
um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita
entre um extremo domínio - do dispositivo - e uma larga falta de controle - dos efeitos
e eventuais acontecimentos. O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em
um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma
quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará
movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato
técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares:
uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura,
dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais: a criação de
um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não
roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou
más obras por princípio. (MIGLIORIN, 2005, p. 3)
Arte Comentada Capítulo 9 115
Mesmo que não concorde com o uso de Dubois (2004), o dispositivo de criação
é também por Migliorin (2005) pensado em termos de instrumentos (as regras
para o jogo narrativo, o uso de ‘novas’ tecnologias de imagem e do audiovisual) e
de funcionamento (o deslocamento da direção do autor na narrativa, a abertura da
condução narrativa aos participantes dela, a definição do processo pelo tempo ou
espaço, a supremacia do processo em detrimento do resultado, a imprevisibilidade
do resultado dada a abertura do jogo narrativo aos agentes). Outros autores têm
pensado no dispositivo como estratégia de narrar, como Lins (2007), Mesquita (2007)
Almeida (2016), todos dialogando com a discussão de Foucault (1979) para pensar
o documentário independente contemporâneo, fazendo uso de seus termos como
estratégia, dispositivo, relações de força, jogos de poder, agenciamento. Além disso,
estratégias narrativas deflagradas por dispositivos se referenciam em Deleuze (1996),
a partir de quem,
Temos que o dispositivo, possuindo uma natureza essencialmente estratégica,
sempre lidará com relações de força, instaurando um jogo de poder, com
interesses diversos. Ou seja, poderá ser definido como um conjunto de ‘estratégias
de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles’,
atuando dessa maneira como máquinas, ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’
(ALMEIDA, 2016, p. 13, grifos do autor).
Nesta direção, a fim de repensar a relação entre aquele que filma e aquele
que é filmado, a construção das suas mise-en-scènes (pois ambos a constroem), e
a distância entre a câmera e aqueles que ela filma, Comolli (2008, p. 54) propõe o
dispositivo como uma “regra do jogo”, como uma brincadeira “muito simples” que tenta
“acolher a polimorfia dos acontecimentos e sua alma aleatória”.
Considerandoqueoautorétambémumrealizadoreumprofessor,suaprovocação
consiste em questionar alguns procedimentos, distâncias e lugares cristalizados na
produção audiovisual ficcional e televisiva. O autor assim o faz por meio de repensar
a relação entre quem filma e é filmado, ou seja, ele procura enfatizar a relação e a
simplicidade dela em detrimento de um procedimento padrão do fazer audiovisual.
Assim, ao se referenciar ao dispositivo comenta que se trata de
organizar o menos possível, e, nos momentos de graça, não organizar mais
nada. Deixar, então nossos personagens, sozinhos ou juntos, se encarregarem
da organização de suas intervenções e aparições em cena. Responder às suas
proposições em vez de fazê-los entrar nas nossas. Como se, em uma ficção, em
vez de mandar os atores trabalhar, seguíssemos a lógica dos personagens: não se
trata mais de ‘guiar’, mas de seguir. (COMOLLI, 2008, p. 54)
A partir disso, o jogo cartográfico proposto no Correspondências se constituiu
como um dispositivo que gerou a narrativa documentária, como o deflagrador de
um acontecimento, iniciado nas interações via redes virtuais e encerrado dentro das
oficinas presenciais. Desse modo, o tempo do dispositivo foi demarcado pela duração
do projeto entre estes dois espaços: as redes virtuais e as oficinas presenciais.
Os diversos percursos vivenciados pelos participantes são o acontecimento
deflagrado. Inicialmente, eles percorreram suas cidades para cumprir a segunda tarefa
Arte Comentada Capítulo 9 116
do projeto, proposta no Tumblr e discutida no Facebook: eles tinham que escolher um
ponto fixo aleatório para elaborar uma coleção de vistas ou uma paisagem visual e
ao publicá-la no grupo, tinham que inserir o endereço completo deste ponto. Quando
escolheram este ponto, eles não sabiam, mas souberam depois nas oficinas presenciais
que ele seria uma correspondência com o ponto A, que o Google Maps define para
cada capital. Visto que cada capital contava supostamente com doze participantes
(desconsiderando as evasões) nas oficinas presenciais, o mapa desta cidade teria até
doze correspondências com o ponto A. No site oficial do projeto, na página intitulada
Correspondências e Deriva, o método foi explicado,
Durante as semanas que antecederam as oficinas práticas, os participantes foram
estimulados a produzir e publicar vídeos de curta duração (aproximadamente um
minuto) que apresentassem uma breve paisagem visual de suas cidades, como
uma espécie de fotografia em movimento. Foram publicados 38 vídeos no Tumblr
do projeto, que também serviu de plataforma para a apresentação e discussão
de referências. Em seguida, cada cidade teve um mapa de sua mancha urbana
impresso, em alta definição e a partir de escalas idênticas, em papel vegetal, e cada
vídeo publicado pelos participantes foi então georreferenciado no mapa impresso
correspondente. Durante as oficinas práticas, o primeiro exercício proposto aos
participantes era sobrepor o mapa de sua respectiva cidade aos das demais – a
transparência do papel vegetal e o georreferenciamento ‘feito à mão’ fizeram com
que os pontos demarcados em um mapa (as paisagens visuais) pudessem ser
transpostos para outro, criando assim um ponto de partida para a elaboração das
correspondências. (FEHLAUER, 2013c)
Estas duas origens de correspondências, feitas no mapa em papel vegetal,
geraram diversos percursos, dentre os quais quatro foram eleitos pelos participantes
para serem percorridos. Na figura a seguir, temos o mapa de Rio Branco, contendo
a marcação dos percursos (vide os traços) e os pontos escolhidos (vide os números)
desta e das outras capitais.
Figura 1: Mapa de Rio Branco em papel vegetal com as marcações manuscritas. Autoria:
Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f)
Após o citado georreferenciamento feito à mão, um segundo nível de
Arte Comentada Capítulo 9 117
correspondências ocorreu. O mapa em papel vegetal da cidade onde a oficina
estava sendo realizada. Por exemplo, o mapa de Goiânia ficava sobre os demais
com os quais ele iria se corresponder. Assim os pontos georreferenciados nas outras
cidades eram também georrefenciados neste mapa, tendo cada capital uma cor
diferente. As distâncias de uma capital e outra que estes pontos refletem por meio
das correspondências foram discutidas nestes encontros. Quando um participante do
coletivo em Goiânia tenta explicar um instrumento do dispositivo que se perdeu no
processo, chamada Diário de Bordo, ele afirma
a ideia do vídeo [a segunda tarefa intitulada paisagem visual] era – vou explicar
o dispositivo que foi usado – eles imprimiram cinco folhas dos cinco mapas em
escala, na mesma escala, em papel vegetal, em alta qualidade assim de impressão.
Em todos os mapas o meio era o ponto A, que era o ponto do Google, que ele
marcava o centro da cidade, por exemplo, pro Google, né, não sei se é mesmo.
E aí cada cidade, por exemplo, Goiânia “ah, o meu vídeo eu gravei nesse ponto
aqui”, aí eu marcava o meu pontinho lá, sabe? Marcados todos os pontos de todos
os vídeos de todas as cidades, aí sobrepunham-se os mapas nos pontos, então
dava pra você ver. Como o papel era vegetal, então o ponto de São Paulo você
via em Goiânia. Por exemplo, o ponto de Fortaleza você via em Goiânia, porque a
nossa primeira folha era Goiânia, né? O ponto de Rio Branco você via em Goiânia.
Então a ideia era, por exemplo, qual ponto de... por exemplo, eu fiquei com o ponto
de Fortaleza e São Paulo, a gente tinha que pegar um ponto próximo ao ponto A,
que é o ponto central, e um ponto mais distante “ah de São Paulo o ponto próximo
é esse aqui” – não, o de São Paulo foi o ponto distante e o de Fortaleza foi o ponto
próximo – por exemplo, o de Fortaleza caiu na rodoviária, o ponto B, o de São Paulo
caiu num setor lá na frente da Avenida Anhanguera. E aí eu acho que o Diário de
Bordo era isso de você sair do ponto A e era uma descrição em imagem e som
desse trajeto até o ponto B, eu imagino que seja isso, né? Porque às vezes, sei lá,
às vezes ia de ônibus, às vezes ia – o pessoal – ia de bicicleta. (MARIANO, 2013)
Também as condições (e falta delas) de deslocamento entre estas distâncias
foram discutidas em correspondência. “Como é que eu faço pra ir de Goiânia para
Fortaleza?” foi a primeira pergunta feita aos transeuntes de Goiânia que estivessem
dentro do percurso citado acima por Mariano e disponível a participar do documentário.
De todas essas respostas, a narrativa apresenta algumas correspondências numéricas,
como vemos na figura abaixo, sugerindo-nos que elas emergiram do acontecimento,
do diálogo com os entrevistados engendrado na feitura do percurso.
Figura 2: Frame (quadro) retirado do micro-documentário Goiânia // Fortaleza. Autoria: Garapa
(2013b, 2013c, 2013d, 2013f)
Arte Comentada Capítulo 9 118
Intitulado Goiânia // Fortaleza (lê-se Goiânia em correspondência com Fortaleza),
o trecho percorrido para essa narrativa resulta de um ponto de São Paulo (próximo
ao ponto A do Google Maps, em Goiânia foi localizado na Avenida Anhanguera, vide
figura 3) e de um ponto de Fortaleza (chamado ponto B, em Goiânia localizado no
Terminal Rodoviário da capital, vide figura 4).
Figura 3: Cena que indica o início do percurso, o ponto A, situado na Avenida Anhanguera,
Goiânia. Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f)
Figura 4: Cena que indica o final do percurso por meio do ponto B, no canto inferior direito.
Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f)
Além dessa primeira correspondência entre Goiânia e Fortaleza, materializada
nas respostas dos entrevistados ao longo do micro-documentário e também no mapa
dos meios de transporte, distâncias e custos da figura cinco, temos uma segunda
correspondência que é sobre o percurso feito entre o ponto A e B, dentro de Goiânia.
A narrativa do micro-documentário nos sugere que este percurso foi feito a pé porque
o primeiro entrevistado que aparece em cena afirmou não ter outro meio de transporte
além do táxi para fazê-lo. Isto é, nos é sugerido que o dispositivo narrativo, que aqui é
o acontecimento deste percurso do ponto A ao B, não tinha regras pré-fixadas quanto
Arte Comentada Capítulo 9 119
aos meios de realizá-lo e que estes meios emergiram do próprio percurso. Assim,
o acontecimento seria caracterizado como uma deriva aos moldes das derivas dos
situacionistas.
O Correspondências apresenta as derivas situacionistas como referência
para o projeto ao indicar do site oficial do projeto, via link, o texto Breve histórico da
Internacional Situacionista escrito por Paola B. Jacques (2003, p. 3) para quem
Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista – IS,
é quase inclassificável. Muito influenciado pelo movimento Dadá e também pelo
Surrealismo (que depois será um dos maiores alvos de suas críticas), o jovem
Debord encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com
influências e interesses parecidos, os Letristas de Isidore Isou. Já em seu primeiro
filme em 1952, Hurlements en faveur de Sade, Debord entrou em conflito com Isou
e deixou os “velhos letristas” para fundar nesse mesmo ano, com alguns amigos,
a Internacional Letrista – IL. [...] Os letristas, reunidos em torno de Debord – entre
os mais influentes membros, editores de Potlatch, estavam Michèle Bernstein,
Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon –, já anunciavam
algumas idéias, práticas e procedimentos que depois formaram a base de todo
o pensamento urbano situacionista: a psicogeografia, a deriva e, principalmente,
a idéia-chave, inspiradora do próprio nome do futuro grupo, a ‘construção de
situações’. [...] a experiência psicogeográfica estava diretamente ligada à prática
da deriva, vários textos letristas comentavam e propunham diferentes derivas, entre
eles o Résumé 1954, assinado por Debord e Fillon (Potlatch, n. 14, novembro 1954):
‘As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva
é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas
as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos
considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das
transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar
que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que
essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira.
Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos’.
Apesar da referência às derivas situacionistas, lemos que,
a gente usou, por exemplo, do ponto A daqui de Goiânia era no cruzamento da
República do Líbano com a Anhanguera, aí a gente foi de lá até a rodoviária a
pé, por exemplo, porque era mais próximo. Aí nesse trajeto a gente, antes de sair
elaborava o que ia ser abordado, “oh, pode ser abordado tal coisa”, por exemplo,
no trajeto da rodoviária até o... do ponto A até a rodoviária, na Tocantins era o
antigo Aeroporto, era a antiga pista do Aeroporto, tinha a Praça do Avião que era o
antigo Aeroporto, a gente levantava temas ligada à mobilidade nesse trajeto antes
de sair pra gente ter um norte, sabe? (MARIANO, 2013)
Assim, fica-nos a dúvida se o dispositivo narrativo definiu os meios de
deslocamento para realizar o percurso de A a B ou se esses meios emergiram do
próprio percurso, como nos sugere a narrativa. Considerando com Migliorin (2005)
que o dispositivo narrativo apresenta duas linhas complementares, uma de controle
e outra de abertura, nesta perspectiva do acontecimento, parece-nos que a narrativa
nos sugere uma abertura ao percurso, mas que o dispositivo já o tinha definido como
controle.
Ainda sobre o acontecimento e a experiência oriunda dele, observamos na
narrativa desse percurso um interesse por imagens que correspondam aos conteúdos
das falas. Esta é a última correspondência que gostaríamos de abordar por enquanto:
Arte Comentada Capítulo 9 120
a correspondência das imagens com os textos das entrevistas. Se houve abertura do
dispositivo ao imprevisto e o seu controle definiu o tempo e a duração, temos então
que as imagens surgem dos textos, dos diálogos travados entre os participantes do
projeto e as pessoas que abordadas durante o percurso concordaram em se relacionar
com seu acontecimento.
Argumentamos que as imagens surgem dos diálogos dado o formato de entrevista
definido para a relação com o acontecimento, ou seja, o percurso é apresentado pelas
falas as quais também o conduz visualmente. Um exemplo disso está já nas cenas
iniciais: após a primeira fala, a do jornaleiro, que afirma ter apenas táxi para o destino
do coletivo, os seus membros aparecem andando a pé. Por isso, inferimos que o
coletivo foi do ponto A ao B a pé.
Ainda nesta perspectiva, temos que o tempo do percurso foi de um dia, pois o
ponto A filmado no início da manhã e o ponto B, ao entardecer. Essa duração de tempo
confirma o deslocamento a pé, pois mesmo que a distância não seja tão grande em
termos reais, na narrativa compreendemos que o percurso durou um dia. Isto é, a
imagem reiterou o argumento do jornaleiro, que, em outras palavras, criticou a falta de
meios de transporte para o percurso, sugerindo que se consumiu um dia para cumpri-
lo.
4 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dispositivos como estratégias de narrar são para coletivos artísticos um
pretexto para deflagrar encontros e para criar histórias a partir deles. Neste sentido,
o dispositivo configura-se em uma metodologia de narrar projetos documentais que
anseiam por promover experiências de alteridade entre autores e personagens.
Portanto, ressalta nas imagens resultantes a própria metodologia de construção
narrativa, ou seja, o modo como personagens foram convidados a participar do filme,
as negociações e os agenciamentos presentes nesta relação.
Especificamente no dispositivo do jogo cartográfico criado pela Garapa, mesmo
que as falas das personagens conduzam o trajeto entre os pontos A e B, diversas
imagens não diretamente ligadas a elas expressaram o olhar do coletivo autor sobre os
acontecimentos. Assim, durante o percurso vemos motos no trânsito, motos à venda,
carros no trânsito, carros à venda, a faixa de pedestre invadida por carros durante
a travessia, engarrafamentos. Estes assuntos visualmente abordados não aparecem
nas falas, apenas nas imagens.
Notamos que os processos ocorreram por meio das trocas e interações entre
todos os participantes, não apenas unilateralmente dos membros da Garapa para
os participantes do Correspondências. Estes processos formaram uma camada que
esteve presente em todo o projeto, do início ao fim do mesmo. Observamos que outra
camada também esteve presente durante todo o projeto: a noção de grupo de trabalho,
Arte Comentada Capítulo 9 121
o desejo de que todos ali estivessem em horizontalidade de relações e se reunissem
para realizar um documentário.
Observamos ainda outra camada constituída: dado que o objetivo principal foi
a realização documentária, o modo de fazer, as regras do jogo tomaram a frente do
processo, tornando-se mais visíveis, chamando para si a força do projeto. Por isso, a
sua alteração de foco no gênero fílmico documentário no início para uma ênfase no
jogo cartográfico – metodologia do dispositivo – do meio para o fim do processo.
As três camadas estiveram a todo tempo de duração do projeto presentes.
Observamos, contudo, que em planos distintos de visualização e ênfase durante o
processo.Acamada do aprendizado se deu por meio de trocas e interações poliformes,
assistemáticas e multivocais. Foi uma camada percebida indiretamente e submetida às
duas outras, por essa razão observamos na própria discussão aqui proposta poucos
elementos desta aprendizagem. Já as duas outras camadas estiveram em primeiro
plano, pois ao percebermos as oficinas como espaços do encontro para a realização
audiovisual, tanto essa realização quanto seu o método ressaltam, tornam-se o centro
das atenções.
Foi assim que o jogo cartográfico sobrepôs o gênero documentário durante o
processo, processo este que determinou os resultados. Uma vez que o dispositivo
era aberto às interferências dos participantes das oficinas de cada capital, tornou-se
inviável a edição de um documentário único. Por isso, argumentamos que o processo
de experimentação do dispositivo foi o determinante para a noção de narrativas
fragmentárias, isto é, foi a observação ao processo que possibilitou um documentário
se transformar em vinte micro-documentários sem uma relação narrativa linear entre
eles.
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Arte Comentada Capítulo 9 122
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qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 343-364.
Arte Comentada Capítulo 10 123
CAPÍTULO 10
PRODUÇÃO DE SENTIDOS E (RE) SIGNIFICAÇÃO NA
HISTÓRIA A PARTIR DO MOVIMENTO BLACKFACE1
1 Uma versão deste texto já foi apresentada no evento VI Eneimagem em 2016.
Daiany Bonácio
(UEL - Londrina/PR)
Professora Adjunta no Departamento de Letras
Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual
de Londrina.
daianybonacio@yahoo.com.br.
Giuliano Mattos
(G-UEL - Londrina/PR)
Aluno de graduação no curso de Letras – UEL -
giuu.mattos@gmail.com
Viviane Dias Ennes
(G-UEL - Londrina/PR)
Aluno de graduação no curso de Letras – UEL -
wakeupmiau@gmail.com
RESUMO: Como identificar em um texto a
presença explícita de outro(s) texto(s)? Qual
efeito de sentido é buscado com essa utilização?
A fim de evidenciar esse mecanismo linguístico,
selecionamos algumas cenas da série televisiva
intitulada 220 volts lançada em 2014 pelo ator
Paulo Gustavo, o qual apresenta, dentre outras
personagens, a cômica Ivonete, uma mulher
negra e pobre que luta pela sobrevivência.
Como o intuito da série era a produção de
humor, Ivonete foi ridicularizada, exagerada em
suas características negras, o que nos remete
à técnica do Blackface. Nisso, vislumbramos
a intertextualidade que se estabelece nessa
série com a referida técnica. Entretanto, não
temos uma simples retomada do Blackface:
estamos diante de um quadro invertido dos
fatos ocorridos no passado que traz como
resultado uma paródia. Desse modo, notamos
a presença de aspectos dialógicos e polifônicos
na série. Segundo o criador da personagem,
o efeito de sentido pretendido é enaltecer a
mulher negra e empoderada. Contudo, para
isso, foi preciso ridicularizar o negro, utilizando
a criticada técnica do Blackface. A partir do
exposto, abordaremos os efeitos de sentidos
produzidos com tal personagem, buscando
compreender até que ponto a comédia pode
se valer de práticas racistas para a produção
de humor. Para tanto, aplicamos os conceitos
de paródia e intertextualidade na concepção
de Fávero (2003), Sant’Anna (2002), dentre
outros.
Palavras-chave: Intertextualidade; Blackface;
Paródia
ABSTRACT: How to identify in a text the
explicit presence of other(s) text(s)? Which
effect of meaning is searched with this use? In
order to evidence this linguistic mechanism, we
select some scenes from the television series
Arte Comentada Capítulo 10 124
titled 220 volts launched in 2014 by the actor Paulo Gustavo, which presents, among
other characters, the comical Ivonete, a black and poor woman who fights for survival.
Since the purpose of the series was the production of humor, Ivonete was ridiculed,
exaggerated in her black characteristics, which brings us to the blackface technique.
In this, we see the intertextuality that is established in this series with the mentioned
technique. However, we are not faced with a simple resumption of the blackface: we
are faced with an inverted picture of the events occurred in the past that results in a
parody. In this way, we notice the presence of dialogical and polyphonic aspects in
the series. According to the creator of the character, the intended effect is to enhance
the black and empowered woman. However, for this, it was necessary to ridicule the
black, using the criticized blackface technique. From the above, we will approach the
effects of senses produced with such a character, trying to understand to what extent
the comedy can use racist practices for the production of humor. For that, we apply the
concepts of parody and intertextuality in the conception of Fávero (2003), Sant’Anna
(2002), among others.
KEYWORDS: Intertextuality; Blackface; Parody
INTRODUÇÃO
Em meados do século XX, vigorou na África do Sul um regime político em que os
negros não tinham permissão legal para frequentar teatros, nem como expectadores
tampouco como atores. Isso ocorreu em um dos mais emblemáticos regimes racistas
conhecido por Apartheid, que proibia os negros de coabitarem com os brancos, sendo
passíveis de severas punições. Quando uma peça teatral necessitava da figura de um
negro para representar as classes sociais mais baixas - como escravos, serviçais, entre
outros - os atores brancos pintavam grotescamente os seus rostos com tinta preta ou
utilizavam-se de máscaras. Essa técnica foi denominada Blackface. Recentemente,
essa questão voltou em cena, quando o ator Paulo Gustavo apresentou no teatro e
na TV, a personagem negra Ivonete, em que o referido humorista pinta-se de negro
para compô-la. A partir do exposto, abordaremos os efeitos de sentidos produzidos
com tal personagem cômica, a fim de compreender até que ponto a comédia pode
se valer de práticas racistas para a produção de humor. Além disso, buscaremos:
a) identificar as marcas do blackface na personagem de Paulo Gustavo, verificando
se há alguma característica racista nesta apresentação; b) compreender o que o
movimento Blackface representou ao longo da história, no intuito de saber o porquê
de o negro não poder representar-se a si mesmo nas peças teatrais; c) refletir sobre
quais mudanças ocorreram dessa representação do negro nos palcos desde 1848,
quando se inicia o Blackface, até o presente momento, quando vislumbramos o negro
com voz social mais ativa.
O que motivou inicialmente a pesquisa foi o fato de que, ao analisar a personagem
cômica Ivonete de Paulo Gustavo — a qual ganha vida em sua realidade na favela —
Arte Comentada Capítulo 10 125
notamos traços do movimento Blackface em sua constituição e, nisso, vislumbramos
um texto heterogêneo, isto é, a presença de outros textos constituídos historicamente
na construção do seu sentido. Em consequência, garimpamos os conhecimentos
prévios de outras fontes referenciais para a compreensão do significado dessa
manifestação, considerada hoje uma forma de discriminação racial. Sobre isso,
buscamos respaldo teórico em Fiorin e Savioli (2004) para quem os conhecimentos
prévios para a compreensão de um texto podem ser expressos de forma marcada,
facilmente identificada por meio de marcas linguísticas ou de maneira não-marcada,
quando se posiciona implicitamente na tessitura textual. Desse modo, revelam os
autores, os textos têm propriedades intrínsecas de se constituírem a partir de outros
textos, isto é, todo texto é atravessado, constituído pelo discurso/texto do outro. Essa
retomada do discurso-outro, pontuam Fiorin e Savioli (2004), pode ser realizada tanto
para concordar quanto para discordar do texto a que se faz memória. Pretendemos
retomar essa memória sobre o Blackface para o melhor entendimento do tema em
pauta.Nessesentido,ajustificativadesteestudosedápelaimportânciadeentendermos
este fenômeno artístico sendo recuperado na atualidade pela personagem Ivonete. Há
um incômodo causado por esse tema, tão singular e complexo, a que nos deparamos
em uma personagem como a Ivonete, que rememora o movimento Blackface.
1 | 	RAÇA, RACISMO E BLACKFACE: VISITANDO CONCEITOS
A fim de melhor compreender a questão que nos rodeia, julgamos ser imperante
estudar as noções de raça e racismo. Definir raça é enumerar os elementos visíveis
da pessoa: a cor de pele, a altura média, a cor dos olhos, a textura dos cabelos, etc.
Em outras palavras, para se definir uma raça, observa-se as características físicas de
um sujeito. Sobre o assunto, Santos (1980) pontua que toda característica externa é
formada também por um conjunto de outras características internas, chamadas de
“raças invisíveis”:
A raça preta, por exemplo, está formada de inúmeras “raças invisíveis”. Como a
espécie humana sempre se misturou, conclui-se que uma “raça invisível” de pele
preta pode ser igual a uma “raça invisível” de pele branca, ou amarela, ou vermelha,
etc.(SANTOS, 1980, p. 12)
Isso nos mostra que não existem “raças puras”, como foi defendido em um
determinado período histórico, como o nazi-fascismo, e que não há como aceitarmos
o argumento de que algumas raças são superiores a outras, como por muito tempo se
difundiu em nossa sociedade, tendo em vista essa miscigenação: “Se há algo difícil de
provar nesses assuntos raciais [...] é a unidade da espécie humana: qualquer grupo
racial pode cruzar com outro que nascerão criaturas normais e saudáveis” (SANTOS,
1980, p. 13-14).
Definir a superioridade de um grupo sobre outro a partir de um conceito de raça
é desconstruir o indivíduo como um ser humano e colocá-lo em uma ilusão imagética
Arte Comentada Capítulo 10 126
de “coisa” que não tem direitos, apenas deveres. A ideia de raça tem sido elaborada e
elevada através da História e essa definição de raça contida no racismo se torna ainda
mais difícil de definir ao passo em que a pesquisamos.
Essas conjecturas sobre raça sempre foram justificativas encontradas para o
confinamento dos “grupos inferiores”, a começar pela segregação. Esta pode ocorrer
de duas formas: legalmente e extralegalmente. A segregação pela raça na África do
Sul, por exemplo, teve início com o período colonial, com a supremacia branca imposta
pela escravidão, mas foi com o apartheid que os negros dessa região foram proibidos
de coabitar ou frequentar os lugares denominados como dos brancos. Figurando como
um regime absolutista, o apartheid passou a tratar o racismo com embasamento legal
e com total influência sobre a formação da sociedade em que se instalou e, tendo sido
instaurado por eleições gerais, dividia os habitantes em grupos raciais. Tal movimento
vigorou de 1948 a 1994, na África do Sul e levou para prisão e puniu severamente
milhares de negros (e também alguns brancos) que não aceitavam seguir o rigor de
suas regras.
Para que possamos ter uma pequena amostra do que foi a realidade do apartheid
e suas implicações sociais, pesquisamos algumas leis que fizeram parte da política
restritiva desse regime2
: proibição de casamento e relações sexuais entre pessoas
de raças diferentes; o cidadão deveria portar consigo um cartão para identificar a qual
raça pertencia; locais públicos passaram a ser reservados para determinadas raças,
dentre outras proibições.
Por meio da leitura do livro de Santos (1980) notamos que a propagação do
pensamento pejorativo a respeito do negro é algo que se dá a partir dos primeiros meses
da vida de uma criança. O reforço negativo de algumas expressões consideradas
parte de um vocábulo aceitável socialmente constrói a imagem de que o negro é,
2- Lei de Proibição de Casamentos Mistos (1949) – passou a ser ilegal o casamento entre pessoas de
raças diferentes.
- Lei da Imoralidade (1950) – tornou crime as relações sexuais entre pessoas de diferentes raças.
- Lei do Registro Populacional (1950) – todo cidadão, com idade superior a 18 anos, deveria ter e car-
regar consigo um cartão de identificação especificando a qual grupo racial fazia parte.
- Lei de Áreas e Agrupamento (1950) – lei que passou a determinar onde cada raça deveria habitar,
separadamente das demais. Em 1951 foi acrescido um adendo a essa lei que permitia que o governo
demolisse, sem aviso prévio, favelas habitadas por negros e obrigada a seus empregadores que cons-
truíssem suas moradias em locais devidamente autorizados.
- Lei de Supressão ao Comunismo (1950) – instaurada com o objetivo de reprimir qualquer resistência
ao regime apartheid, extinguiu o Partido Comunista Sul Africano e todos as outras organizações polí-
ticas que o governo decidisse considerar comunista. Qualquer cidadão que se manifestasse contra o
regime, ou organizasse encontros longe ao governo, era considerado comunista e tido como ameaça
ao regime sendo sujeito a severas punições.
- Lei de Educação Bantu (1953) – essa lei separou a educação dos negros, que eram preparados ape-
nas para os trabalhos braçais. Em 1956 a discriminação racial em locais de trabalho foi formalizada e
em 1959 foram criadas instituições de ensino específica para negros, mestiços e indianos.
- Lei de Reserva dos Benefícios Sociais (1953) – essa lei tornou a segregação parte do dia-a-dia das
pessoas. Locais públicos passaram a ser reservados para determinadas raças, criou-se separação
em ônibus, praias, calçadas, escolas, hospitais, entre outras coisas. Com isso, aos negros poderiam
ser oferecidos serviços de inferior qualidade sem que houvesse responsabilidade governamental, ain-
da em menor escala estavam os mestiços e os indianos. Disponível em https://historiaonline.com.
br/2013/12/12/as-leis-do-apartheid, acesso em 10/08/2016
Arte Comentada Capítulo 10 127
biologicamente falando, inferior ao branco. Não é raro vermos em programas de
TV, propagandas e outros meios de comunicação, os negros elencados apenas em
personagens com funções já tratadas pela sociedade como inferiores. Ademais, em
uma análise especulativa sobre o assunto, abordou-se primeiro a cor e depois disso
um adjetivo para caracterizar um negro. Sobre essa discussão, Santos (1980) nos
mostra que certas expressões e pensamentos nos rodeiam desde o início de nossa
formação, como, por exemplo, “’Você está preto de sujeira!’. Quem ouve isto desde os
primeiros meses de vida, dificilmente, mais tarde, fará uma ideia positiva de negros”
(SANTOS, 1980, p. 20).
O percurso que o racismo percorre mostra que houve um dado momento em
que ele era determinado, ou sugerido, já nas raízes culturais da sociedade. Havia o
racismo entre os grupos e as comunidades, na qual uma se sobrepunha sobre a outra
em busca do reconhecimento de sua superioridade e glória. Em outro dado momento,
o racismo passa a ser praticado como uma forma biológica de discriminação, na qual
negros são comparados a macacos, sub-humanos, etc. Por esse e por tantos outros
aspectos, o racismo, seja em que momento histórico se apresente, é uma forma de
discriminação considerada injusta e irracional, pois, biologicamente falando, a espécie
humana é uma só.
A partir da disseminação dos ideais racistas citados, todo homem que não fosse
branco passava a ser visto como uma sub-raça, merecedora de tratamento inferior e
passível de violência. Dentro deste pensamento, com o avanço do sistema capitalista,
por volta de 1860, teve impulsionada a venda do bem mais precioso naquela época:
a mão de obra. Os europeus, então, afirmam sua intelectualidade racial superior ao
passo que a ideia de que os lugares ocupados por “gente de cor” passam a ser vistos
e nomeados como lugares onde não há como existir ciência:
Os intelectuais europeus – dignos sucessores daquele Ginés de Sepúlveda, que
comparava astecas a símios porcos – começaram a ensinar que nos trópicos a
pobreza é inevitável: aqui o homem só tem energia para pensar em sexo e baixezas.
Sendo, além disso, habitado por gente de cor, seu futuro é triste. (SANTOS, 1980,
p. 26)
Acreditar, com tanta certeza, que o negro é incapaz de pensar em ciência, produz
nos europeus um sentimento de superioridade racial, na mesma medida em que se
aumenta, assim, o complexo de inferioridade dos outros povos. Geograficamente não
foi uma imposição político-econômica o espaço ocupado pelo negro; a separação étnica
se deu como produto da dispersão do homem em suas diferentes condições ecológicas.
No mercado de mão de obra fomentado pelo sistema econômico capitalista, a cor da
pele como um fator segregacionista apenas contribuiu, de forma muito peculiar, para
o seu desenvolvimento.
É dentro desse contexto, com o crescente pensamento absolutista de uma
sociedade regida pela classe dominante, que se evidencia o Blackface (“black” =
negro; “face” = rosto). Ele inseriu-se dentro da chamada Lei de Reserva dos Benefícios
Arte Comentada Capítulo 10 128
Sociais (1953), a qual reservava locais públicos aos brancos. O Blackface fez parte do
apartheid, um regime radicalista provocado pela união de recursos governamentais
racionalmente justificados por um grupo de pessoas que se viram no direito de usar
o conceito de raça em prol de causas próprias e, em seguida, na influência de uma
nação que, historicamente, já se via com crenças e ideais colonialistas.
O Blackface surgiu no teatro no início do século XX e foi uma tradição
marcadamente racista a qual teve adesão do teatro americano por cerca de 100
anos, com início por volta de 1830 e que rapidamente se tornou popular em outros
lugares, especialmente na Grã-Bretanha, onde a tradição durou mais do que nos EUA,
sendo exibida em horário nobre na TV. O Blackface consistia em maquiar pessoas
brancas a fim de que se parecessem com o negro. A maquiagem e a encenação
dos negros nesta época eram grotescas, trazendo um tom de animosidade utilizado
nestas encenações. Pintavam-se os rostos brancos com tinta preta, procurando-se
acentuar também o volume dos lábios; em alguns casos, chegava-se a pintá-los de
vermelho, para chegar a certa “representação” desejada para os negros. O tão comum
Blackface dos cinemas e teatros logo galgou espaço dentro daquela nova mídia que
crescia durante o iniciar do século XX. No cinema, temos inúmeras amostras deste
mecanismo, hoje bastante criticado por conter conteúdos puramente racistas.
Vamos refletir um pouco sobre o movimento Blackface, a partir da compreensão
da imagem ao lado, que representa a caracterização do negro em peças teatrais.
Nela, temos um homem descaracterizado (nota-se que ele está com o cabelo e a
roupa bem alinhados, limpos, típicos dos rapazes europeus de classe alta, brancos,
pertencente à elite europeia) e a sua representação enquanto negro dentro do seu
personagem. Nota-se que houve um exagero na caracterização do negro, por meio
dos lábios grossos e vermelhos, a cor negra de sua pele e o cabelo despenteado,
marcando o cabelo afro, representando o negro como alguém descuidado. A partir da
referida prática, o uso do Blackface ganha destaque, sendo praticamente imortalizado
no mesmo, cena que reflete o preconceito e que demonstra o uso pitoresco deste
artifício racista.
Figura1.Disponível em: http://fineartamerica.com/featured/billy-van-the-monologue-comedian-everett.html
Essa prática teve grande reprodução e virou tradição nos teatros americanos
durante mais de 100 anos, sendo determinante na criação e fortalecimento dos
Arte Comentada Capítulo 10 129
estereótipos a respeito dos afro-americanos. Como vimos, o negro que nunca havia
conquistado algum direito civil igual ao dos brancos, perde até mesmo o seu direito de
circulação e habitação.
2 | 	TEXTO, INTERTEXTO E PARÓDIA
Mikhail Bakhtin,aolongo deseusestudos,percebeuque,paraaobservação deum
fenômeno linguístico, é necessário que o situemos, pois o seu emissor e o seu receptor
precisam fazer parte do mesmo contexto linguístico e sociocultural para que haja uma
comunicação eficiente e, deste modo, também a construção de uma linguagem. Para
Bakhtin (1997), a substância da língua não é constituída em seu sistema abstrato
de formas e nem pela enunciação monológica isolada, é, ao contrário, constituída
pela interação verbal da língua, sendo um fenômeno social que se constitui por meio
de relações dialógicas manifestadas no momento da enunciação. A partir desses
pensamentos, o autor desenvolve o conceito de dialogismo: um processo de interação
entre textos/discursos, que não são vistos isoladamente, mas correlacionados com
outros textos/discursos. Assim, a linguagem é percebida a partir de uma concepção
dialógica. A esse respeito, Barros (1999) revela que Bakthin desdobra o conceito em
dois aspectos: o dialogismo e interação verbal, que compreende a interação entre o
enunciador e o enunciatário do texto; desse modo: “(...) concebe-se o dialogismo como
o espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto.” (BARROS,
1999, p. 03); e o dialogismo e intertextualidade, que segundo a autora, ocorre o “(...)
diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e
o define” (IDEM, p. 04). Sendo assim, as palavras do falante, bem como os textos
produzidos por ele, estão sempre atravessadas por palavras de outros textos/falantes,
ou seja, tanto o texto quanto o falante na interação verbal é atravessado pelo outro que
os permeia e os constitui.
A partir do dialogismo, notamos que, para a construção de um texto coerente,
é imperante pensarmos em sua formação histórica, em que, como analisam Fiorin e
Savioli(2004),hápartessolidáriasentreossentidosalçadosnotextonomomentodesua
constituição. Na harmonização desses sentidos, em que uma unidade de significação
menor está inserida em uma maior, conseguimos então conectar informações, dar
continuidade ao sentido e fazer com que o texto seja coerente.
Tendo em vista essa concepção de sentido baseada no momento histórico em
que é construído, vale também pensarmos nas vozes que estão sempre presentes
na concepção textual. Para Fiorin e Savioli (2004), todo texto contém, pelo menos,
duas vozes: aquela que defende e aquela que se opõem às condições em que ele
se solidifica. Transferindo essa condição histórica do texto para o nosso corpus de
análise, percebemos que, durante o apartheid muitos brancos também foram presos
e açoitados por defenderem os direitos do negro e por não concordarem com a política
e a prática da exclusão. Nesse sentido, defendem os referidos autores, não há uma
Arte Comentada Capítulo 10 130
perspectiva única sobre uma determinada questão, uma vez que a sociedade é divida
em grupos sociais com interesses divergentes. Em consequência, o discurso pode
ser visto como uma arena, um lugar em que os pontos de vistas divergentes lutam em
defesa de suas concepções, analisam Fiorin e Savioli (2004).
Tendo em mente essa questão do discurso como arena, nota-se que o Blackface
foi um recurso utilizado para a dissipação da representação de que o europeu era
superior perante as sociedades de outras naturalizações. A popularidade alcançada
por esse movimento edificou e legalizou o pensamento racista europeu, compartilhado
por uma população essencialmente eurocêntrica. A utilização da técnica do Blackface
atingiu toda a comunidade europeia, de forma a ridicularizar e desumanizar o
negro. Envoltos nessa questão, vislumbramos que as mensagens sugeridas com a
representação exagerada e caricata do negro tiveram grande influência no pensamento
europeu e o levou até o momento da instauração do apartheid, em 1950. Desse modo,
percebemos o quanto a construção dos sentidos de um texto envolve sistemas de
valores sócio-históricos.
Apartir do conceito de dialogismo, notamos que, quando alguém diz “ele é negro”,
não está apenas fazendo uma afirmação, uma vez que, se estiver dizendo isso do
ponto de vista característico como significação de uma cor de pele, estará opondo-
se a discursos que tratam a mesma expressão como forma de discriminação e como
manifestação de racismo. Dessa forma, temos o blackface como o período histórico
que nos leva a entender o motivo pelo qual criou-se a prática teatral de pintar os rostos
dos atores brancos com carvão de cortiça representando personagens negros de uma
forma caricata e exagerada. A caracterização do racismo, através das personagens
do teatro, dialogava com a sua materialização social apoiado pela população em que
estava inserida.
Dentro dessa concepção dialógica da linguagem, podemos encontrar o conceito
de intertextualidade. Esta noção se torna essencial para a análise proposta, pois
há uma relação intertextual entre a personagem Ivonete e o movimento Blackface. A
respeito deste conceito, Fiorin (2003, p. 30) expõe que: “a intertextualidade é o processo
de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado,
seja para transformá-lo”. Barros (1999) a esse respeito, diz que a intertextualidade é
a dimensão primeira de que o texto deriva. Além disso, revela a autora, o dialogismo
comporta um aspecto a ser considerado que é o diálogo entre textos, que mantém
um diálogo em que várias vozes, advinda de lugares diversos, cruzam-se, opõem-se,
completam-se, por vezes se polemizam.
Tendo em vista que a paródia é um efeito de intertextualidade e que ela se encontra
em nosso objeto de análise, pretendemos trabalhar com essa noção. A construção e
a recepção da paródia dependem do conhecimento prévio de suas referências e toda
retomada de sentido deixa uma marca, seja ela verbal ou não-verbal, de forma ou
de conteúdo. Na paródia, essa marca intertextual fica bastante visível e evidente. O
discurso se converte em uma corrente de diversas vozes. Nesse sentido, segundo
Arte Comentada Capítulo 10 131
Fávero (2003, p. 60) a polifonia é marca fundamental da paródia, pois ela: “a faz
absorver um texto para depois repeli-lo, recriando-o num modelo próprio (...)”. Para a
autora, a linguagem torna-se dupla na paródia, sendo impossível a junção das vozes
presentes. Falar de paródia é também falar de humor, sendo este um elemento-chave
do referido conceito. Sobre o assunto, Lauriti, (1990, p. 234 apud Fávero 2003, p. 60)
revela que: “Ela (a paródia) não se reduz a uma mera repetição do texto primitivo,
mas soa como um eco deformado e as palavras do Outro se revestem de algo novo,
tornam-se bivocais (grifo nosso)”. Bakhtin (1970 apud Fávero, 2003) concebe que, na
paródia, um único discurso pode revelar duas orientações interpretativas, duas vozes.
A esse respeito, o estudioso russo expõe que na paródia “o discurso se converte em
palco de luta entre duas vozes (BAKHTIN, 1970, p. 252 apud FAVERO, 2003, p. 53)”,
não sendo possível fundir essas vozes, já que elas se colocam de modos antagônicos.
Ao explicar a paródia, Fávero (2003) faz um contraponto com a paráfrase e mostra
que esta é um texto que procura tornar mais claro e objetivo aquilo que se disse em
outro texto. Portanto, é sempre a reescritura de um conteúdo já existente, uma espécie
de ‘tradução’ dentro da própria língua. O autor da paráfrase deve demonstrar que
entendeu claramente a ideia do texto e expressar o conteúdo com fidelidade. Nesse
sentido, a paráfrase:
É a reafirmação em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita.
Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia de uma obra como
esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original em
intenção. (SANT’ANNA, 2002, p 17).
Ao observarmos a paródia, vemos que ela não tem a obrigação de fidelidade em
seguir o sentido do texto que a paráfrase tem, pelo contrário, é esperada a subversão
do sentido em textos parodiados. Sobre esse assunto, Sant’anna (2002) revela que
a paráfrase e a paródia se entrelaçam na intertextualidade: “Falar de paródia é falar
de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade
das semelhanças” (SANT’ANNA, 2002, p. 28). Nesse sentido, o estudioso revela que
a paródia é uma utilização negativa do texto original, distanciando-se de seu sentido
primeiro, sendo um contra-estilo dele. Já a paráfrase, estaria mais próxima do texto
original, sendo considerada pró-estilo. Para o referido autor, a paródia coloca as coisas
fora de seu lugar, deixando visível o ambíguo, o duplo figurando na construção dos
sentidos; ela funciona como um quadro invertido ou uma lente que aumenta e exagera
os detalhes.
3 | 	(RE) SIGNIFICAÇÕES NA/DA HISTÓRIA: A RETOMADA DO BLACKFACE PARA
A PRODUÇÃO DE HUMOR
O corpus de análise proposto para pensarmos a questão do Blackface na
atualidadeconsisteemcenasdocotidianodeumamulhernegra,empregadadoméstica,
Arte Comentada Capítulo 10 132
pertencente à classe social baixa e moradora de favela. A seguir, apresentamos o
nosso objeto de estudo, a fim de realizarmos as discussões propostas para este artigo.
Nas imagens ao lado, vemos a primeira representação de Ivonete na série
220 volts lançada em 2014 e a outra imagem evidencia as modificações que tal
personagem sofreu ao longo do tempo, já em 2016. Por elas, fica claro que a primeira
usou a mesma técnica do Blackface: pintar uma pessoa branca de preto, evidenciar
os lábios vermelhos, a palma da mão é branca e o cabelo caricatura o estilo afro.
Como o intuito era a produção de humor, Ivonete foi ridicularizada, exagerada em suas
características, o que nos remete à técnica do Blackface. Já na segunda imagem,
vislumbramos as modificações atuais: a cor da pele não é tão negra, a cor dos lábios
não foi tão exagerada, o que evidencia que a caracterização da personagem busca
fugir da representação pitoresca e negativa do Blackface. O próprio ator reconheceu,
em um comentário postado em redes sociais, que preferiu modificar a personagem
para desvincular sua imagem do Blackface3
. Com essa retratação, percebemos que
o objetivo inicial não era ridicularizar o negro, tampouco fazer remissão ao movimento
racista. No entanto, como vimos a partir do ensinamos de Bakhtin, todo texto é
dialógico; nesse sentido, o discurso racista torna-se intrínseco ao falante, que não
percebe o preconceito criado com sua personagem.
Figura2. As caracterizações de Ivonete ao longo da série 220 volts
A caracterização de Ivonete é textual, produz sentidos historicamente marcados
e mostra claramente as ideias do Blackface sendo retomadas, mesmo que de forma
não-intencional. Nesse sentido, é inevitável que a construção da referida personagem
deixe marcas dialógicas, isto é, não funciona isoladamente, tendo a necessidade de
se relacionar com outros textos inscritos na história para significar. É por esse motivo
3 Quando o comediante Paulo Gustavo postou em sua conta no Facebook uma foto da personagem
Ivonete, ele foi duramente criticado por usar a técnica do blackface, ao se pintar para representar o ne-
gro. Na época, ele se defendeu dizendo que seu programa 220 Volts, transmitido pelo canal GNT, não
ri da personagem, mas de quem a discrimina. O ator, porém, decidiu rever suas declarações e concluiu
que não iria mais fazer o blackface: “Nesses últimos dias li, ouvi, pensei e entendi que há uma longa dis-
cussão sobre o uso de blackface muito anterior e muito maior do que eu”, disse. Ele ainda apresentou a
nova versão de Ivonete. Disponível em: http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/paulo-gustavo-se-
-desculpa-e-muda-visual-de-ivonete-de-220-volts-1.1327152
Arte Comentada Capítulo 10 133
que, ao vislumbramos a caracterização de Ivonete, fizemos remissão à prática teatral
cristalizada historicamente na memória social por meio da técnica do Blackface. Além
disso, temos também a materialização de discursos racistas, os quais permitiam que
tais práticas fossem realizadas. A figura da personagem em análise está inserida em
um contexto marcado por ideias racistas e separatistas, as quais sempre destinam ao
negro a posição de inferior e escravizado. Não há como analisá-la de forma isolada de
seu entorno, emoldurada, apenas levando em conta que ela foi criada para a produção
de humor. A história que é convocada com esta personagem reclama interpretações.
Para compreender a noção de história funcionando na construção imagética da
personagem Ivonete, buscamos respaldo em Nora (1993), o qual propõe o conceito
de lugares de memória. Os lugares de memória são (re)construções históricas
baseadas em documentos, fragmentos, imagens, discursos, enfim, lugares onde
possamos encontrar a memória de um momento histórico. Seguindo a concepção
desse historiador francês, não há memória, o que temos são tentativas de reviver
o passado, de ritualizá-lo; um espaço onde possamos edificar lugares que possam
instalar as lembranças dos fatos, sem que eles caiam no esquecimento: “Os lugares de
memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência
comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora” (NORA, 1993, p.12).
Desse modo, não há a possibilidade de reconstruir uma história total assim como
também não podemos reconstruir uma memória global. O que é possível, segundo
o autor, é a construção dos lugares de memória, isto é, a reconstrução dos fatos
históricos. Para isso, é preciso: “[...] criar arquivos, organizar celebrações, manter
aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não
são naturais” (IDEM, p. 13). Nesse sentido, para que as memórias existam, é preciso
que haja lugares para fixá-las e sejam lembradas por uma dada coletividade, ou seja,
lugares onde sejam ancoradas as memórias coletivas. A nosso ver, esse lugar de
memória que Ivonete evoca está ancorado no Blackface e no Apertheid, os quais
retornam juntos com a criação deste quadro do programa 220 volts.
Após analisarmos o texto não-verbal, passamos ao texto verbal, o qual traz
reflexões interessantes sobre o assunto. A fala a seguir trata de Ivonete, em sua laje,
conjeturando sobre a possibilidade de ir a Nova Iorque:
Gente, cêis não sabem da maior! Tô juntando uma grana agora, arrumei um extra,
umas roupas pra lavar, que eu tô com uma meta agora de juntar uma grana e ir lá
pro “states”. Me jogar lá pros Estados Unidos, lá pra Nova Iorque, imagina, gente!
Eu ficaria até mais branca naquele lugar! Eu ia adorar! Você imagina eu chegar lá
com esse meu gingado, aquela gringalhada inteira ficar que nem mosca varejeira
em volta de mim. Eu já ia chegar lá assim, ó!
Neste momento da cena, inicia-se uma trilha sonora ao fundo; a música é
de carnaval e Ivonete começa a dançar sensualmente, fazendo remissão ao ritmo
brasileiro. Em seguida, o cenário muda e ela aparece em uma laje em Nova Iorque.
A música brasileira cessa e a personagem profere os dizeres: “Gente, mas aqui em
Nova Iorque não é assim não, tá?! Aqui em Nova Iorque é assim ó!”. Logo após, ela
Arte Comentada Capítulo 10 134
canta uma música em um inglês, marcando a cultura americana por meio da escolha
da canção. Nesse ato, é visível que Ivonete não domina a língua inglesa, uma vez que
ela começa a embromar a letra da música. De repente, o cenário volta para a laje na
casa da Ivonete:
Se bem que eu tava pensando aqui, gente, que não vai dá pra mim ir pra Nova
Iorque não. Sabe por quê? Porque o que eu tô ganhano aqui eu vou conseguir
juntar essa passagi, quer ver, tamo aqui quase em novembro, novembro, dezembro
... Eu vou conseguir juntar essa passagi em abril de dois mil e trinta. Com o que
eu tô ganhano aqui, seria em abril de dois mil e trinta. Eu não vou mais pra Nova
Iorque não! Ah, é melhor ficar aqui mermo também. É melhor ficar aqui e não ficar
sonhando muito alto não porque aqui eu encontro a coisa mais maravilhosa desse
mundo que é o que? Sabe o que é a coisa mais maravilhosa desse mundo pra
mim? É o homem brasileiro! Da espécie brasileira! Da fauna brasileira! Aqui em
casa é mais conhecido como “meu nego”, meu chamego”, “meu dengo”, “meu
tesão”, “minha coisa mais louca” e eu me embolo toda neles, ó! Fico louca com
eles! Vou ficar aqui, não vou pra Nova Iorque não! (Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=-tRDxP0BPt4> Acesso em 15/10/2016)
Neste vídeo, a personagem Ivonete diz estar capitalizando um dinheiro extra,
conseguido através de roupas que lavou, com a meta de ir para os Estados Unidos.
Ela se coloca imaginariamente no “país dos gringos”, onde poderia mostrar todo o
charme e rebolado brasileiro. No entanto, ela reconhece que, por mais dinheiro que
acumulasse, não seria o suficiente para realizar tal viagem. Ela ironiza o fato de que
conseguiria juntar o dinheiro somente no ano de 2030, tendo em vista seus ganhos. Ao
final de sua fala, percebendo a impossibilidade de realizar seu sonho, a personagem
diz se contentar com o homem brasileiro.
Algumas de suas falas, como quando ela revela que está buscando dinheiro extra
com o trabalho de lavar roupas, mostram a dificuldade que o negro economicamente
desfavorecido tem de viajar e conhecer o exterior, não sendo algo de seu cotidiano. O
final da fala da personagem, em que ela se refere ao homem brasileiro, mostra uma
espécie de prêmio de consolação, já que ela não pode realizar o sonho de conhecer
o exterior, devendo contentar-se com o homem brasileiro. A nosso ver, o discurso de
Ivonete retoma representações negativas da mulher negra, relacionado-a ao trabalho
físico, ao sexo e à dança sensual; em outras palavras, a mulher negra é vista como
alguém em que se pode explorar o corpo. O negro é representado nesta cena com uma
caricatura pejorativa, sobretudo quando a personagem diz: “...até ficaria mais branca
naquele lugar!”, ao se referir aos EUA. Tal enunciado evidencia o efeito racista sobre a
personagem, transformando o branco em um ideal a qual todo negro se vê submetido
socialmente. Com a cena em análise, temos a real situação de uma empregada
doméstica negra sendo parodiada e ridicularizada com o objetivo de produzir humor.
Passamos para a segunda cena selecionada para este trabalho. Nela, a
personagem está em sua casa:
Agora não vai demorar uma semana eu vou pedir minhas contas na casa daquela
mulher. Eu não vou trabalhar mais não porque eu tô de saco cheio de ficar
trabalhando na casa dos outros e não ser valorizada. Porque essas patroas não
Arte Comentada Capítulo 10 135
dão valor pra gente não, não dão mermo. Só botam a gente pra trabalhar, só sabe
d´s esporro. Dá umas roupa que não cabe mais nela, elas não dão. Entendeu? Dá
uma roupa de marca, aí é que elas não dão mermo. Ah, eu hein! Tô cansada! Tô
afim de ficar aturando a família dos outro não! A gente atura a nossa família por
causa da coisa do carma. Aí a gente atura! Entendeu? Que aqui em casa ta tudo
acoplado aqui, ó! A gente fomo botano uns puxadinho atrás do outro aqui e tem
gente aqui desde os ancestrais da gente aqui. Se a gente for pegar e ir batendo
nas portas, tem gente desde o macaco aqui comigo. Entendeu? Agora, na casa
dos outros eu não sou obrigada! Não sou obrigada mermo! Eu, hein! A gente fica
no meio daquele fogo cruzado lá e eles ficam achando que, porque a gente é
empregada, a gente é retardado. A gente não é retardada não, minha filha! A gente
entende tudo que vocês falam! A gente fica sonsa! A gente fica sonsa, quieta, mas
a gente sabe! A gente sabe que o filho da senhora é ruim, a gente sabe que a filha
da senhora é sonsa, a gente sabe o que eles fazem, que eles envolvem a gente na
merda. A gente sabe! Mas a gente fica quieta por quê? Pra não dar problema! Por
quê? Porque a gente precisa do dinheiro. Entendeu? Porque se a gente largar o
emprego a gente fica encalacrada. Não vou poder largar o emprego não, porque eu
tô muito encalacrada. Vou ter que ficar na casa dessa mulher até conseguir pagar
o negócio do banco. Brabo! To muito encalacrada mermo. Mas aquela menina é
sonsa! Aquele povo lá é sonso! Todo mundo sonso! E eu fico sonsa junto! Sonsa
com sonsa! (Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=16mfsnj4MRU>
Acesso em 15/10/2016)
Neste vídeo, Ivonete deixa claro que está indignada com sua situação financeira
e também com as condições de trabalho a que está submetida. Ela realiza uma crítica à
baixa valorização do seu serviço, diz estar cansada e quer parar de trabalhar. Contudo,
ela logo reconhece que é um erro abandonar o emprego, uma vez que o salário,
mesmo que pouco, é destinado aos custos de sua sobrevivência. Tais conclusões
podem ser comprovadas com passagens do texto, falas como “pedir minhas contas”,
“não ser valorizada”, “só sabe dar esporro”, “dá uma roupa de marca, aí é que elas
não dão mesmo”, “a gente é retardo”, respectivamente representam: uma mulher que
é empregada, desvalorizada, explorada, sem recompensa e taxada como irracional.
Além disso, frases como “a gente fica sonsa, quieta, mas a gente sabe!” e “mas a
gente fica quieta porquê? Pra não dar problema!” evidenciam que a empregada sabe o
lugar social que ocupa e não interfere na vida do patrão, porque não é sua função. Por
fim, quando ela diz “a gente fica encalacrada” evidencia que ela precisa sobreviver,
pagar as contas e, por isso, aceita tais humilhações.
Como ensinam Fiorin e Savioli (2004), um texto permite que possamos destacar
múltiplas relações, relações essas necessárias para a produção de sentido, já que
o texto não pode ser isolado de seu contexto histórico-social. Ademais, pontuam
os autores, uma mesma frase pode ter sentidos distintos dependendo do contexto
dentro do qual está inserida. É o que ocorre com a fala de Ivonete nesta cena. A
partir do texto em análise, é possível relacionar o que ela profere verbalmente com as
condições humilhantes, desvalorizadas, taxados como irracionais em que os negros
estão submetidos há muito tempo.
A fala de Ivonete não é uma simples retomada da vida de uma empregada negra
(uma paráfrase) com suas dificuldades e lutas; há o humor sendo construído por meio
das frases e da caracterização da personagem, o que nos leva a pensar em paródia.
Arte Comentada Capítulo 10 136
Neste sentido, temos a retomada das condições sociais em que o negro está inserido
com o intuito de ridicularizá-lo, atingindo um efeito de paródia.
A representação do negro pobre e explorado se dá através das marcas verbais —
a fala de Ivonete — e não-verbais, representados pelo cenário e pela caracterização
da personagem. O ambiente em que ela aparece é precário, marcado pela pobreza
e pela falta de organização. Seu discurso é marcado pela exploração trabalhista de
quem se coloca como uma vítima da sociedade e por sua necessidade financeira,
incluindo a ausência de recursos para a educação dos seus filhos. A caracterização do
Paulo Gustavo para incorporar a personagem também é explorada, retratando o negro
como uma figura cômica e, muitas vezes, ridícula aos olhos de quem assiste. Tendo
em vista que o ator usa do humor para fazer suas personagens, é provável que as
características racistas estejam camufladas no cômico, pois se nos faz rir, então não é
um problema, como se pelo humor, tudo fosse permitido.
Como bem explicam Fiorin e Savioli (2004), todo texto tem um caráter histórico:
é produzido por alguém, em um lugar, em certo tempo e revela ideias e concepções
de um grupo social numa determinada época. A tal concepção de texto, convocamos
o conceito de intertexto, uma vez que todo texto retoma dizeres já produzidos por
um sujeito num dado tempo/espaço, sendo essa característica intrínseca a qualquer
produção textual. Sobre, isso os autores revelam que todo texto é constituído pelo
discurso/texto do outro. Nesse sentido, é impossível não relacionar as falas de Ivonete
à representação negativa do negro: pobre, explorado sexualmente e financeiramente,
sem voz ativa na sociedade, nem direito de sonhar. A intertextualidade se dá, no
âmbito verbal, de forma não-marcada, implícita em que tais representações aparecem
camufladas na alegria, na atitude e na mulher empoderada que Ivonete quer nos fazer
acreditar que ela é, em um primeiro momento. No entanto, ao voltarmos nosso olhar
para as falas dela, foi possível notarmos claramente um discurso preconceituoso se
fazendo presente. Tais discursos, por não estarem explicitamente marcados no texto,
colocam-se como naturais e normais. Estamos diante de diferentes vozes que se
colocam no interior do discurso, de forma não explícita, mas que deixam brechas para
observarmos o dialogismo que perpassa esta produção.
Em relação ao plano não-verbal, analisamos que a retomada do blackface
encontra-se bem marcada quando do lançamento da personagem em 2014: pintar uma
pessoa branca de negra, evidenciar os lábios vermelhos, a palma da mão ser branca
e o cabelo afro, retomam marcadamente o movimento. Ao observar tais marcas, nos
questionamos se representar a raça negra desta forma, caricaturada, explorada em
vários campos, não seria um retrocesso em relação às conquistas dos negros.
Retomando os ensinamentos de Fávero (2003) e Sant’anna (2002) apresentados
acima, percebemos que temos os dois fenômenos apontados pelos autores: a
paráfrase e a paródia. Segundo Sant’anna (2002), na paródia vemos o ambíguo, o
duplo figurando na construção dos sentidos. Ela funciona como um quadro invertido
ou uma lente que aumenta e exagera os detalhes. A nosso ver, foi o que aconteceu
Arte Comentada Capítulo 10 137
com a personagem em análise, uma vez que as marcas verbais e imagéticas
(frases, gestos, atitudes, etc.) apresentadas nos mostram um diálogo entre o sério,
representado pela mulher negra, que sofre preconceitos, é desvalorizada, e o cômico,
quando Ivonete brinca com a condição social em que se encontra. Essa recuperação
intertextual acaba por ridicularizar a mulher negra. Nesse momento, vemos o intertexto
funcionando na construção dos sentidos; no entanto, ele retorna de forma subvertida,
daí a comicidade, um processo contra-estilização. A paráfrase, por sua vez, pode
ser notada na caracterização inicial da personagem de Paulo Gustavo: ao mostrar
uma negra caricaturada e com fortes traços do Blackface, produziu sentidos muito
parecidos com a representação que se fazia nos teatros americanos e europeus a
partir de 1830. Nesse sentido, os deslocamentos do texto original (o homem branco
representando o negro nos teatros) não provocaram mudanças, ocorrendo, portanto,
um processo de pró-estilização, uma reescritura de um conteúdo já existente, isto é,
uma paráfrase, como bem ensinam Sant’anna (2002) e Fávero (2003).
Além do apresentado, estamos diante do conceito de derrisão. Realizando
pesquisas em autores que retratam o tema, vimos que o termo tem origem no século
XIII e provém do latim derisio, que remete ao sentido de zombaria, desprezo que
traz divertimento a partir da humilhação de alguém. De acordo com Baronas (2005),
esse conceito, na época clássica, era visto como um antigo recurso enunciativo, uma
técnica de oratória definida pelos retóricos clássicos como tropos zombeteiros, cuja
finalidade se pautava na ação de inferiorizar o adversário por meio do riso gerado no
público. Em outras palavras, a zombaria era usada para desqualificar um oponente.
Pela derrisão, ridiculariza-se o adversário por meio do humor e jogos de palavras
usadas, esquivando-se de ter que se responsabilizar pelo dito:
Todo o perigo e a força dessas fórmulas está no fato de poder divertir até mesmo
aqueles que as condenam: por meio do prazer assim provocado, o autor do jogo
de palavras ou da caricatura injuriosa consegue estabelecer uma cumplicidade
forçada com o seu auditório, em detrimento da pessoa visada (BONNAFOUS,
2003, p. 42).
É como se fosse uma violência verbal permitida e compactuada, já que pelo humor
é admissível ofender. Isso não seria possível se esses discursos fossem proferidos de
maneira direta ao sujeito atacado.
A derrisão foi tema da Revista francesa Hermès publicada em 2001 a qual tinha
como título Dérision – Contestation. Tal número esteve sob a coordenação de Arnaud
Mercier. Nele, o autor francês pontua que na sociedade em que vivemos, os sujeitos
são obrigados a respeitar muitos códigos de comportamentos e regras sociais. A
ofensa e a agressividade, por exemplo, não são socialmente aceitáveis ou são vistas
com maus olhos. A forma socialmente aceitável de se fazer críticas, ofender e agredir
alguém pode ser feita por meio do recurso da derrisão, já que não há punição para a
crítica feita por meio do humor.
Muitas vezes, o humor baseia-se no preconceito com negros, homossexuais,
Arte Comentada Capítulo 10 138
loiras, mulheres, obesos, baixinhos, dentre outros. Com a revolução dos movimentos
sociais, como o feminismo, na década de 1960, assim como outros movimentos sociais
— negros, homossexuais, minorias étnicas, dentre outros — houve um forte denuncia
às formas diversas de opressão e discriminação. Tais movimentos, de acordo com
Hall (1997), foram muito importantes para a humanidade, uma vez que eles lutavam
em busca de identidade social, o que trouxe, como consequência, o protesto contra
discursos discriminatórios de qualquer natureza.Aliado a isso, temos a chegada recente
da ideia do politicamente correto. A partir deste conceito, grupos minoritários buscam
derrubar mitos e tabus preconceituosos no intuito de obter mais respeito e dignidade.
O politicamente correto prega a abolição de qualquer forma de discriminação. Nesse
sentido, tal concepção defende que, se continuarmos construindo o humor baseados
em preconceitos, estaremos disseminando ideias que maculam a imagem dos grupos
minoritários.
CONCLUSÃO
A construção de uma personagem negra empoderada, cheia de atitude, alegre
e “independente” que Paulo Gustavo buscou criar, esbarrou no fato de que o humor
precisa retomar preconceitos, representações racistas e assuntos tão frágeis à
negritude. Foi por esse motivo que o humorista precisou reformular Ivonete. Assim
como a imagem do negro vem mudando ao passar dos últimos anos, também mudou
a personagem Ivonete, que, depois da manifestação de seu público, precisou se
adequar à construção de uma negra menos caricata e mais próxima da realidade.
Tendo em vista todos os aspectos já abordados nesse artigo, vemos que a mudança
de postura e da caracterização da personagem ora analisada mostram que as lutas
em torno dos direitos individuais e coletivos do negro começam a vigorar em nossa
sociedade.
Quanto à intertextualidade, pudemos notar a presença da paródia, quando o
humorista brincou com assuntos tabus para o negro (desvalorização, preconceitos
raciais, etc.) e a paráfrase, no fato de ele ter retomado, na caracterização de Ivonete,
os elementos do Blackface. Desse modo, as cenas mostradas constroem sentidos em
uma relação dialógica com a situação do negro ao longo da história, evidenciando que
um texto nunca deve ser visto como isolado, mas correlacionado com outros textos/
discursos.
REFERÊNCIAS
BARONAS, Roberto Leiser. Derrisão: um caso de heterogeneidade dissimulada. In: Polifonia,
Cuiabá: EDUFMT, nº10, p.99-111, 2005
BARROS, D.L.P. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade:
Em torno de Bakhtin. BARROS, D.L.P. &
Arte Comentada Capítulo 10 139
FIORIN, J.L. (Orgs.). São Paulo: Edusp, 1999.
BONNAFOUS, S. Sobre o bom uso da derrisão em Jean-Marie Le Pen. In: GREGOLIN, M. R. V. Mídia
e discurso: a cultura do espetáculo. São Carlos, SP: Claraluz Editora, 2003
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
FAVERO, L. L. Paródia e Dialogismo. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de
Bakhtin. BARROS, D. L. P. & FIORIN, J. L. (Orgs.). 2 ed. São Paulo: Edusp, (2003)
FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de
Bakhtin. BARROS, D.L.P. & FIORIN, J.L. (Orgs.). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2003
FIORIN, J.L e SAVIOLI, F.P. Lições de texto: leitura e redação. 7ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 2004
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997
NORA P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-
SP. N° 10,  p. 12. 1993.
SANT‘ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2002.
SANTOS, J. R. O que é racismo, 12 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.
Arte Comentada Capítulo 11 140
CAPÍTULO 11
DA LEMBRANÇA AO SONHO: ANÁLISE FÍLMICA
DE “A DANÇA DA REALIDADE”, DE ALEJANDRO
JODOROWSKY
Ana Carolina Ribeiro
Universidade Estadual de Londrina
Depto de Música e Teatro- CECA
Londrina – PR
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo
analisar as imagens de um trecho do filme “A
Dança da Realidade”, recentemente produzido
por Alejandro Jodorowsky. Nesta obra o
cineasta chileno revisita a infância e a partir de
suas lembranças constitui uma narrativa que
se distingue pela dicotomia entre o real e o
imaginário. A partir da metodologia de análise
fílmica proposta por Jacques Aumont e Michel
Marie e com base nos conceitos de “imagem-
sonho” e “imagem-lembrança” apresentados na
teoria de Gilles Deleuze, pretende-se observar
como o cineasta explora as memórias de
sua infância através de uma linguagem que
transborda a realidade, fazendo prevalecer
estética do sonho na contemporaneidade.
PALAVRAS-CHAVE: imagem-sonho, imagem-
lembrança, Alejandro Jodorowsky.
INTRODUÇÃO
Entre as transformações decorrentes do
século XIX e XX surgiu o cinema, um fenômeno
da imagem em movimento que tão logo se
estabeleceu como linguagem. Foi neste mesmo
momento que o “sonho” também passou a ser
um tema amplamente explorado a partir das
teorias de Sigmund Freud e através do Primeiro
Manifesto Surrealista na Arte, escrito por André
Breton. O primeiro argumento completo para
um filme surrealista foi escrito ainda na década
de 1920, pelo poeta e teórico surrealista
Antonin Artaud. Nele, incita à construção de
uma narrativa fragmentada e sem linearidade,
condição surpreendente ao espectador
acostumado com o encadeamento lógico dos
filmes clássicos (ARTAUD, 2011).
Desdeentãojásepensavanaequivalência
de um filme com a linguagem dos sonhos,
considerado que a estrutura fílmica, mesmo
quando propõe uma narrativa linear, compõe–
se de fragmentos recortados da realidade
que ao serem montados são resignificados.
Segundo a psicanalista e pesquisadora Tania
Rivera, a invenção do cinema sempre esteve
relacionada ao sonho, pois apresenta uma
“produção singular de imagens em movimento,
de caráter alucinatório e, portanto, em geral,
acompanhadas de uma forte impressão da
realidade” (2011, p.19). Assim, independente da
forma narrativa que o cineasta explora, o tempo
fílmico e o espaço fílmico são, por natureza,
descontínuos, tal qual é a natureza dos sonhos.
Arte Comentada Capítulo 11 141
Entretanto, o cinema moderno reafirma a linguagem onírica quando rompe com
a linearidade em que se delimita o cinema clássico. O teórico francês Gilles Deleuze,
pautado pela teoria bergsoniana, explora este aspecto através dos conceitos da
imagem-sonho e imagem-lembrança. De acordo com o teórico, a fusão do real com
o imaginário atinge a indiscernibilidade correspondente a zona das lembranças, dos
sonhos e do pensamento. (DELEUZE, 2007).
As obras fílmicas de Jodorowsky instauram a condição de indiscernibilidade
através da enorme profusão de imagens perturbadoras que rompem com a linearidade
narrativa e nos transporta a uma atmosfera onírica. Carregadas de simbolismos,
passa por universos poéticos, infernos e paraísos simultâneos que proporcionam
distintas percepções ao espectador. Em “A Montanha Sagrada” (1973), por exemplo,
a exploração do onírico é percebida tanto na composição das imagens impactantes
e reveladoras, que transbordam a realidade, quanto na composição estrutural, na
montagem, através da ausência de lógica da sequência de quadros.
Em “A dança da realidade” (2013) Alejandro Jodorowsky, após vinte e três anos
sem filmar reestreia com uma produção autorreferente, homônima ao livro publicado
em 2001. A obra investe na linguagem onírica através de uma narrativa que parte da
lembrança de experiências vividas na infância pelo diretor e que se confundem com o
virtual, imaginado pelo mesmo. Segundo Jodorowsky, trata-se de uma “autobiografia
imaginária” em que convida a realidade de suas memórias para “dançar” e transforma-
as em poesia (2004).
Para nortear esta pesquisa buscaremos amparo nas teorias de análise fílmica
propostas por Jacques Aumont e Michel Marie. Segundo os teóricos, um filme é uma
obra artística autônoma que permite engendrar um texto e constituir uma análise
textual fundamentada nos significados que compõe a estrutura narrativa e os dados
visuais e sonoros, produzindo um efeito particular no espectador. Ressaltam ainda
aspectos relativos à história das formas, dos estilos e de sua evolução. (2004, p. 10).
Assim, a partir do recorte de um fragmento da primeira parte do filme “A dança
da realidade”, este artigo busca analisar o caráter onírico, sob a perspectiva do cinema
moderno, através dos conceitos apresentados por Deleuze sobre a “imagem-sonho” e
a “imagem-lembrança”.
1 | 	A IMAGEM-SONHO E A IMAGEM-LEMBRANÇA
Para Deleuze o cinema é uma forma de pensamento e os grandes cineastas
são pensadores, mas não pensam conceitualmente como os filósofos, pensam por
imagens. Sendo assim, é possível fazer pensar através do cinema, pela profusão
de suas imagens e de seus signos. Na classificação das imagens cinematográficas,
Deleuze classifica o cinema em duas categorias: as imagens-movimento, caracterizado
pelo cinema clássico e as imagens-tempo, que dizem respeito ao cinema moderno.
O cinema clássico é um cinema de ação, porque revela um encadeamento
Arte Comentada Capítulo 11 142
sensório-motor, um tempo cronológico, sequencial. Já no cinema moderno, há uma
ruptura com o sistema sensório-motor, em que o tempo não está subordinado ao
movimento, mas é o movimento que está subordinado ao tempo. Há apenas uma
construção de situações óticas e sonoras puras. Aí residem os conceitos relacionados
ao sonho e abstração. (DELEUZE, 2007).
Ao elaborar sobre o assunto, Deleuze apresenta os termos “imagem-
lembrança” e “imagem-sonho” e estabelece as consecutivas distinções. A lembrança
necessariamente é virtual e se atualiza. Para ele “a imagem-lembrança não restitui o
passado, ela somente representa o antigo presente que o passado “foi”“. (2007, p.70)
No sonho as imagens da pessoa que dorme subsistem no estado difuso de nuvem de
sensações atuais, ou seja, escapam à consciência. Além disso, no sonho a imagem
virtual se atualiza em outra imagem que desempenha o papel de imagem virtual, esta,
por sua vez, atualiza-se em uma terceira, ao infinito. Explica: “o sonho não é uma
metáfora, mas uma série de anamorfoses que traçam um circuito muito grande.” (p.73).
Deleuze acrescenta que as imagens-sonho ainda podem ser constituídas em sua
produção técnica. Seja através de “fusões, superimpressões, desenquadramentos,
movimentos complexos de câmera, efeitos especiais, manipulações de laboratório,
chegando ao abstrato, tendendo à abstração”, ou através dos cortes bruscos,
chamados montagem-cut, que oferecem a sensação de imagens que são interrompidas
aleatoriamente, tal qual ocorre nos sonhos. (p.75).
O teórico salienta que da mesma forma que a imagem-lembrança, a imagem-
sonho,nacondiçãodeconstanteatualização,tambémnãoasseguraaindiscernibilidade
do real e do imaginário (p.75). Para Deleuze, a indiscernibilidade, diz respeito à
impossibilidade de separar o virtual do atual, sendo que a atualização não é o oposto
do virtual, mas a maneira pela qual a virtualidade se singulariza. Contudo, busca-se,
aqui, identificar em um fragmento de “A Dança da Realidade” alguns elementos que
dialogam com tais conceitos.
2 | 	“A DANÇA DA REALIDADE”: DA LEMBRANÇA AO SONHO.
Após duas décadas Jodorowsky volta a produzir para o cinema assinando a
direção e o roteiro de “A Dança da Realidade” que estreou em 2013, na França. Sob
um plano de fundo do Chile nos anos 1930, traz a história do pequeno Alejandrito, filho
de Jaime, um stalinista ferrenho e bastante rígido com a família, e Sara, a mãe, que no
filme só se comunica cantando, como se estivesse em uma ópera.
O filme se estrutura em duas partes. A primeira parte, muito semelhante às
primeiras páginas do livro homônimo, retrata as vivências do garoto Alejandrito diante
de conflitos existenciais e sob a severidade do pai. A segunda parte, totalmente
alegórica de acordo com o próprio cineasta, é protagonizada pela personagem Jaime.
Sua cegueira política o faz perder a lucidez, abandonar a família e partir para uma
jornada de purificação que o levará a se deparar com a verdade para enfim desconstruir
Arte Comentada Capítulo 11 143
suas convicções.
Como uma espécie de dejà-vu, muitos elementos retornam a cena e nos fazem
lembrar outras produções de Jodorowsky. Sangue, pessoas multiladas, personagens
místicos, circenses, o deserto, o sagrado, a peregrinação do pai e principalmente, as
críticas aos diversos setores da sociedade: a religião, a política, ao exército, a família.
Não há como não comparar a imagem da personagem do pai, na segunda parte do
filme, com a personagem do ladrão na primeira parte de “A Montanha Sagrada”. Como
se todos esses elementos que constituem a identidade da obra do cineasta também
fizesse parte de seu repertório de lembranças, poderíamos concluir que as obras de
Jodorowsky se atualizam em “A Dança da Realidade”.
A compilação de lembranças que constituem o filme resulta em uma narrativa que
escapa à linearidade e na dicotomia entre o real e o virtual,faz prevalecer à sensação
desonho. A ruptura com o espaço-tempo sequencial é um desses elementosque
justificam essa condição indiscernibilidade. Nos momentos em que Jodorowsky surge
à cena junto ao garoto ocorre esta ruptura com o tempo cronológico. Pela perspectiva
da estrutura narrativa ofuturo encontra-se com o presenteem um mesmo espaço-
tempo, mas sob uma perspectiva do espectador, é o presente que se encontra com o
passado. Jodorowsky surge para Alejandrito. como se pudéssemos com a bagagem
adquiridadas experiências da vida, acalentar o espírito ingênuo que constitui a infância.
(imagem 1).
Imagem 1: frame de “A dança da realidade”
3 | 	ANÁLISE DE UM FRAGMENTO
O fragmento escolhido para análise diz respeito à cena em que Jaime leva
Alejandrito a barbearia para cortar os cabelos, longas madeixas que a mãe mantinha
no filho por acreditar que ele era a reencarnação do avô.
A sequência se inicia no momento em que o garoto se oferece para coçar as
costas de um soldado multilado que aparece na porta da loja da família. Alejandrito
Arte Comentada Capítulo 11 144
é surpreendido pela violenta repreensão do pai, que afugenta o soldado e questiona
a hombridade do filho nas seguintes palavras: “Para que estava abraçando aquele
nojento? Você gosta de homens? Com esse cabelo de menina, o que mais se poderia
esperar de você? Com esse cabelo parece um veado!”. A mãe entoa: “Não lhe falte
o respeito, Alejandro é sagrado”. O pai responde: “sagrado é o meu caralho”1
e pede
para Sara contar o motivo pelo qual chama Alejandrito de pai e não filho. Sara relata a
história de seu pai e em seguida inicia-se uma cena que ilustra a trágica morte de seu
pai – um bailarino russo que morreu ao subir em um barril de álcool para acender uma
lâmpada com uma tocha de fogo. Não suportando o peso, a tampa quebrou-se e ele
caiu sobre o líquido inflamável.
Na sequência de imagens, Sara olha para a câmera, em uma tomada em plano
médio, como quem consegue visualizar algo que esta em sua memória. Em seguida,
a montagem sugere a lembrança, com imagens em que predominam o tom azul. Na
cena, o pai aparece nu, apenas com um coturno nos pés, dançando com uma tocha
de fogo na mão, enquanto sobe os barris para acender a lâmpada. Posteriormente, a
imagem da explosão mostra uma grande chama de fogo amarela sobre o fundo azul.
Na sequência de imagens, Sara olha para a câmera, em uma tomada em plano
médio, como quem consegue visualizar algo que esta em sua memória. Em seguida,
a montagem sugere a lembrança através de imagens em que predominam o tom azul.
Na cena, o pai aparece nu, apenas com um coturno nos pés, dançando com uma tocha
de fogo na mão, enquanto sobe os barris para acender a lâmpada. Posteriormente, a
imagem da explosão mostra uma grande chama de fogo amarela sobre o fundo azul.
1Trecho do diálogo entre personagens extraído do filme “A dança da realidade”.
Arte Comentada Capítulo 11 145
Imagem 2: frames de um trecho de “A dança da realidade”.
A narração de Sara, em off, não nos convence de que seu pai estava dançando
quando foi morto pelo trágico acidente, tal como a cena sugere. Sara diz, em tom
operístico, que o pai era “um belo bailarino russo que fugiu com sua mãe dos cossacos
antissemitas, imigrando na Argentina onde cultivaram com muito trabalho um pequeno
pedaço de terra”2
. Parece, portanto, que seu pai, quando ocorrido o acidente, já não era
mais um bailarino, não estaria dançando, nem mesmo estaria nu. No livro homônimo
ao filme, outra versão é apresentada sobre a morte do avô de Jodorowsky:
Sara era órfã de pai. Jashe tinha se apaixonado por um bailarino russo não-judeu,
um goi, de corpo bem formado e de cabeleira dourada. Quando estava grávida de
oito meses, este avô subiu num barril cheio de álcool para acender uma lâmpada.
A tampa quebrou e ele caiu no líquido inflamável que começou a arder. As histórias
da família contam que ele saiu correndo pelo meio da rua envolto em chamas,
dando saltos de dois metros de altura e que morreu dançando (2009, p.31).
2 Trecho extraído da fala da personagem Sara no filme “A dança da realidade”
Arte Comentada Capítulo 11 146
De acordo com a transcrição acima, Sara não havia nem mesmo nascido quando
tal acidente ocorrerá com seu pai, sendo, portanto, impossível lembrar-se do fato
ao qual nem mesmo vivenciou. Assim como também o desfecho se difere da cena
construída para o filme, em que o avô sai pelas ruas se debatendo entre as chamas
pelo corpo. Também a predominância monocromática como opção estética para as
imagens é um recurso técnico que opera para instituir a bifurcação entre o passado e
o presente. Trata-se, portanto, de uma atualização de um acontecimento do passado a
partir da imaginação de Sara. Jodorowsky recria a história de seu avô a partir de suas
escolhas estéticas. Eis a imagem-lembrança.
	 Após o relato de Sara, Jaime decide levar o filho à barbearia para cortar os
cabelos. Ao sair da loja com o filho pelos braços, um anão fantasiado de zorro chicoteia
um cifrão amarelo. Este personagem alegórico, conforme mencionado no livro, retrata
uma das estratégias que o pai utilizava para dar visibilidade ao seu empreendimento.Ao
fundo, figurantes transitam com máscaras neutras na face ocultando suas fisionomias.
Amáscara é um elemento legitimamente teatral. Os figurantes mascarados reaparecem
em diversas cenas no decorrer do filme e nos levam a compreender que assim como
em um sonho ou na lembrança de algo temporalmente distante, não conseguimos
reconstituir com precisão as fisionomias de algumas pessoas.
Imagem 3- frame do filme “A dança da Realidade”
Na barbearia, a cena se inicia com dois senhores cortando os fios de cabelo
em primeiro plano. Na sequência esta imagem passa para um plano de fundo sem
nitidez e, em primeiro plano, um senhor de descendência oriental sentado na cadeira
ao lado recita um mantra em japonês. Em plano de fundo, o barbeiro deixa de cortar
os cabelos e retira cuidadosamente a peruca com as mãos, mostrando-a ao garoto
que chora ao ver. Posteriormente, em primeiro plano a peruca se desfaz nas mãos do
barbeiro transformando-se em um pó dourado.
Arte Comentada Capítulo 11 147
A cena procede como em um circuito de anamorfoses vivenciado durante um
sonho. O cabelo torna-se peruca que por sua vez torna-se um pó dourado e desaparece
da mão do barbeiro. A peruca aqui é um objeto altamente simbólico, pois representa
o avô. A desmaterialização da peruca, portanto, desfaz esta representatividade. Por
outro lado, a apresentação da peruca como artifício cênico rompe com o aspecto de
verossimilhança da cena fílmica e nos aproxima do realismo. Para a personagem
Alejandrito, a perda dos cabelos vem representar a perda da mãe, que no filme, o
rejeita ao vê-lo de cabelo cortado. Jodorowsky explica: “eu chorava porque, ao perder
os cachos dourados, perdia também o amor de minha mãe.” (2009, p.31).
Na análise deste fragmento, observamos que um universo de metáforas destitui
o encadeamento cronológico no espaço-tempo proposto pelo cinema clássico, surge
então uma estética que se próxima do universo onírico.
Imagem 4 – frames do filme “A dança da realidade”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A dança da realidade” trata-se de uma obra autorreferente, em que Jodorowsky
revisita o passado a partir de sua memória afetiva. Na apresentação do trailler oficial
de divulgação do filme, o cineasta afirma: “só temos memória, nunca realidade, o que
se faz já não existe mais”. Nesta obra as memórias da infância do cineasta não surgem
Arte Comentada Capítulo 11 148
na frustrada tentativa de reconstituição do real, mas apresenta-se em um estado de
devir, através da atualização de lembranças que são apenas o ponto de partida para
uma narrativa repleta de reflexões, personagens fantásticos e situações imaginárias
que proporcionam um novo sentido a sua vida.
Jodorowsky, que teve sua formação artística através do teatro, constitui em
sua obra um hibridismo entre essas duas linguagens: teatro e cinema. A peruca, as
máscaras neutras, as personagens fantásticas que surgem na obra mais parecem
elementos pertencentes ao palco teatral do que ao cinema. Condição que vem
reafirmar a estética do sonho como elemento predominante na obra, uma vez que a
limitação espaço-temporal é um elemento inerente ao teatro quando consideramos
que a narrativa teatral se constrói sob as delimitações de um palco cênico e do que o
espectador é capaz de imaginar diante dele.
Este artigo restringiu-se à análise de um pequeno fragmento do filme, entretanto,
é válido ressaltar que a obra por completo poderia nos oferecer muitos outros subsídios
para a análise a partir dos conceitos da imagem-lembrança e imagem-sonho, discutidos
por Deleuze a partir do cinema moderno.
REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2011
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Trad: Marcelo Félix. Lisboa: Armand Colin,
2004. 3ª ed.
DANÇA da realidade, A. Direção e Roteiro: Alejandro Jodorowsky. Produção: Moisés Cosío, Xavier
Guerrero Yamamoto, Alejandro Jodorowsky, Michel Seydoux. Chile: 2013 (130min)
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad: Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007.
JODOROWSKY, Alejandro. A dança da realidade. Trad: Sueli Farah. São Paulo: Devir, 2009.
MONTANHA sagrada, A. Direção: Alejandro Jodorowsky. Produção: Alejandro Jodorowsky, Allen Klein,
Robert Taicher, Roberto Viskin. México, 1973. (113min) color.
RIVERA, Tania. Cinema, imagem e psicanálise. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar,
2011
Arte Comentada Capítulo 12 149
CAPÍTULO 12
BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ONÍRICO, OU
UMA PRIMEIRA IMERSÃO NAS IMAGENS SEM LUZ
Carlos de Azambuja Rodrigues
Profº Associado III da Escola de Belas
Artes da UFRJ
Doutor em Comunicação e Cultura
Grupo IMAGINATA - Linha de Imagem e Cultura
Vice-Coordenador do Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais
PPGAV - EBA/UFRJ (CAPES 6)
RESUMO: Este texto reintroduz uma discussão
indicada no final de um outro trabalho produzido
sobre a questão da imagem apresentado neste
mesmo evento quatro anos atrás. Naquela
ocasião para além das Três Dimensões da
Imagem do título (ver Anais do III ENEIMAGEM,
2011), identificamos também a existência de
um outro campo diferenciado de estudo das
imagens: o Onírico. O trabalho ora apresentado
é uma primeira aproximação desta questão
para além da relação dialógica sujeito/objeto;
psicologia/ontologia; representação/referência.
Nele procuramos examinar brevemente
algumas das abordagens filosóficas, científicas
e conceituais atualmente aceitas e oferecidas
como forma de entendimento sobre o fenômeno
dos sonhos. E caminhamos na direção daquilo
a que elas convergem, cientes de que se trata
de um levantamento ainda preliminar e que
a penumbra de onde vêm ou nascem estas
imagens permanecerá ainda misteriosa e oculta
ao final deste trajeto, damos aqui, portanto,
apenas pequenos passos no caminho que leva
aos sentido das imagens em geral e das oníricas
em particular.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem, Biofoton,
Onirismo.
ABSTRACT: This text reintroduces a discussion
indicated at the end of another work produced
on the image issue presented at this same event
four years ago. At that time, beyond the Three
Dimensions of the Image of the title (see Annals
of III ENEIMAGEM, 2011), we also identified the
existence of another differentiated field of study
of images: Onirism. The work presented here
is a first approximation of this question beyond
the subject/object dialogic relation; psychology/
ontology; representation/reference. In it, we seek
to briefly examine some of the philosophical,
scientific, and conceptual approaches currently
accepted and offered as a form of understanding
about the phenomenon of dreams. And we walk
towards what they converge, aware that this
is a preliminary survey and that the penumbra
from where these images come or are born will
remain mysterious and hidden at the end of this
path, we give here, therefore, only small steps
in the way that leads to the sense of the images
in general and the dreams in particular.
Arte Comentada Capítulo 12 150
KEYWORDS: Image, Biofoton, Onirism.
1 | 	PRÓLOGO SOBRE UM RETORNO AOS SONHOS
“Brilho errante noctívago, estranha luz, na cercania da terra...
sempre se deixando fascinar pelo brilho do Sol”
Heráclito
Embora seja um fato e algo de existência indiscutível, o mundo das imagens
oníricas foi durante um longo período negligenciado pelo pensamento ocidental
desde o Iluminismo, ou mesmo já durante a idade média. Como já escrevi uma vez,
“o Onirismo tem uma má fama” 1
, adquirida de certo como uma herança da reação
do pensamento escolástico cristão contra o paganismo em geral, para o qual, em
algumas culturas, os sonhos poderiam conter verdades ainda ocultas ou servir mesmo
a premonições sobre importantes eventos por vir.
Este estado de coisas perdurou na dita cultura “erudita” ocidental até o início
do século XX quando então Sigmund Freud com seu “método” restaurou o campo do
onírico como uma forma de conhecimento, e, pouco depois, Carl Jung reafirmou uma
dimensão – num certo sentido – “ontológica” das imagens simbólicas, como formas
atávicas não apenas a um indivíduo em particular mas comuns à toda a humanidade.
Aqui então a importância dos sonhos ressurge se re-definindo como “desejo” ou como
uma forma de “re-ligação” humana, num sentido talvez cósmico, com o mundo material
à nossa volta.
Assim, hoje, aquilo que atravessou todo o iluminismo quase como puro non-
sense, mero devaneio de uma exata mente sempre consciente e racional, apenas
durante o sono momentaneamente adormecida e colocada num estado livre de suas
enormes responsabilidades, retornou no início do século passado, renovado e cheio
de significados, para o palco de representações da vida humana e, novamente, como
um protagonista da mais relevante importância para nós.
2 | 	ARTEMIDORO, OS SONHOS SIMPLES E OS SONHOS ONÍRICOS
Afirma-se aqui que se trata de um “re-torno” porque, embora possa se considerar
que o reconhecimento da importância do estudo dos sonhos foi reintroduzido no século
passado a partir de Freud, não é, entretanto, correto supor que bem antes disso já não
se tivesse produzido qualquer tentativa de um estudo sistemático dos sonhos. De
fato, já no século II surgiu a “Oneirocrítica – juízos e interpretações dos sonhos”, um
conjunto de cinco livros escritos por Artemidoro de Daldis, intérprete de sonhos, que
ofereceram na época uma abordagem sistemática dos sonhos e alguns exemplos de
Arte Comentada Capítulo 12 151
suas interpretações segundo o autor que, de modo semelhante ao de um terapeuta
contemporâneo, justamente dedicava-se ao ofício de intérprete de sonhos. Logo no
início de seu livro primeiro, Artemidoro propõe uma interessante distinção entre os
“Sonhos Simples” e os “Sonhos Oníricos”. Sendo os “Sonhos Simples” causados por
estados circunstanciais e pontuais que vulgarmente atormentam nosso corpo como
fome, sede ou uma má digestão, e até mesmo o nosso espírito como eventuais alegrias,
preocupações ou tristezas; enquanto os outros, que ele denomina de “Oníricos”,
seriam repletos de significados mais profundos, com simbolismos transcendentes que
tanto poderiam remeter às mensagens que os homens buscam enviar aos deuses
sobre algo que lhes aflige, quanto recebê-las destes mesmos deuses na forma de
antevisões, premonições de eventos por vir.
Como se sabe, nas culturas antigas assim como na greco-romana, os deuses de
fato existiam e frequentemente davam pistas sobre suas vontades ou manifestavam
seus humores. Não havia, portanto, nada de estranho em pedir algo a algum deus
durante um sonho ou então receber uma mensagem dele por este mesmo canal de
comunicação. Curioso é observar-se aqui como aquilo que está afligindo um indivíduo
durante o seu estado de vigília, pode também surgir em um sonho como um “pedido aos
deuses” de uma forma bastante similar ao que afirma Freud acontecer nesta mesma
“plataforma onírica”, já que para a psicanálise durante o sonho se manifestam ideias
inconscientes que clamam intimamente por uma solução. Por outro lado, é também
igualmente interessante observar como que, as mensagens “enviadas pelos deuses”
através dos sonhos de Artemidoro guardam grande similitude com a ideia dos sonhos
arquetípicos da psicologia analítica Junguiana. Certamente, isso indica que, no que
diz respeito ao estudo dos sonhos, não se pode afirmar qualquer ponto de partida,
uma vez que o início das artes de sua interpretação se perde na poeira dos tempos
e a sua origem se dá no advento da própria humanidade. Nada também nos garante,
entretanto, que haja um porto seguro ao final do trajeto a ser percorrido, já que as
atuais pesquisas contemporâneas a respeito dos sonhos, como era de se esperar, se
mantém inconclusivas sobre a natureza do onírico. Atualmente, para a maioria dos
pesquisadores, o que se mantém ainda como dado é o fato – um tanto óbvio – de que
quando adentramos o mundo dos sonhos parecemos dialogar “com nós mesmos” –
nossa mente e nosso corpo – e que esta experiência potencialmente nos leva para um
“outro lugar”, talvez um além.
3 | 	O CÉREBRO SONHADOR
Assim como acontece com os distúrbios e as doenças mentais, a principal forma
de abordagem contemporânea do onírico é fisiológica/psiquiátrica: os pesquisadores da
neurofisiologia buscam associar as etapas relacionadas com os sonhos com as regiões
do cérebro que estão ativas naquele exato momento em que estamos sonhando e para
Arte Comentada Capítulo 12 152
alguns é só esta atividade cerebral que de fato é determinante. O estudo fisiológico
do sono não chega a ser algo inédito ou mesmo tão recente assim, pois as pesquisas
sobre o sono desenvolvidas por Nathaniel Kleitman que levaram à descoberta da
etapa R.E.M. (Rapid Eyes Movement) no sono – que corresponde ao momento em
que efetivamente estaríamos sonhando enquanto dormimos – data de 1953. Estudos
recentes, entretanto, realizados no Evolutionary Neurodehavior Laboratory da Boston
University, dirigido pelo Professor Patrick McNamara, indicam a ocorrência de sonhos
também em etapas do sono que não são as R.E.M., mas as N.R.E.M. (No Rapid
Eyes Movement). Nas etapas R.E.M. os sonhos tenderiam a ser mais agressivos e
desagradáveis, enquanto nas N.R.E.M. estariam associados a experiências mais
agradáveis. Assim, ainda segundo esta pesquisa, pessoas deprimidas ou depressivas
tenderiam a ter mais sonhos do tipo R.E.M do que indivíduos emocionalmente mais
equilibrados.
Este primado da abordagem fisiológica/psiquiátrica legou-nos todo um conjunto
e drogas para o tratamento de nossos distúrbios emocionais e psiquiátricos cuja mais
famosa talvez tenha sido mesmo o PROZAC, criado pela companhia farmacêutica
americana Eli Lilly e lançado no mercado em 1970, como um messias químico contra a
depressão. No entanto, apesar do acréscimo significativo que estas diversas pesquisas
trouxeram na compreensão do fenômeno sono e, consequentemente, dos mecanismos
neurológicos associados à ocorrência dos sonhos, talvez pouco tenham acrescentado
sobre a sua finalidade para os homens: a maioria das explicações fornecidas por
diversos pesquisadores transita entre algo que seria uma reles simulação, útil como
“forma de treinamento” e aprendizado para situações de risco; à uma forma de fixação
das memórias do dia e elaboração emocional de suas experiências, passando ainda
pela negação pura e simples de uma maior importância do ato de sonhar. Ou seja, se
hoje conhecemos melhor como nosso corpo se relaciona com o ato de sonhar, por outro
lado o sentido original de sonharmos continua sendo um mistério insolúvel, enquanto
sua função básica – aquilo que para que “servem” – continua oferecendo uma miríade
de possíveis explicações e aplicações, tantos quanto são os pensamentos que as
motivem. Há espaço inclusive para a afirmação de que os sonhos são “nada mais do
que interpretações fantasiosas, ad hoc de impulsos neurais aleatórios ondulando-se
a partir do tronco cerebral, o motor do R.E.M.” [TM]2
, como afirmou J. Allan Hobson,
psiquiatra de Harvard. Este mesmo Hobson, talvez ávido também por causar polêmica
com as diversas sociedades psicanalíticas, afirmou também que “sonhar é um evento
automático pré-programado no cérebro e não uma resposta a um estímulo exógeno
(experiências diárias) ou endógeno (visceral)”[TM]3
. Esta concepção mais do que
meramente fisiológica é fisicista (materialista) e recusa qualquer significado oculto:
“Eu discordo de Freud porque creio que os sonhos não são nem obscuros ou
contém algo expurgado, mas são transparentes e não-editados. Eles contém um
claro significado, indisfarçável, impulsos altamente conflituosos que são dignos
da atenção pelo sonhador (ou qualquer intérprete). Minha posição encontra eco
na noção de Jung de que os sonhos têm um significado transparente…” [TM]
Arte Comentada Capítulo 12 153
(Hobson, 1977)
Pode-se considerar que esta atitude, de um modo um tanto ingênuo, negligencia
o Homo Symbolicum, o ser que produz constantemente significado, bem estabelecido
por Ernest Cassirer e faz ainda uma leitura um tanto enviesada e superficial das ideias
de Carl Jung: o fato de para Jung os sonhos apresentarem, de vez em quando, símbolos
arquetípicos bem definidos (mas não “literais”) não os tornam necessariamente
“transparentes”, afinal há ainda um “inconsciente”, mesmo que “coletivo”, em Jung.
Talvez haja nesta afirmação de Hobsom sobre Jung, o desejo oculto de reduzir os
“arquétipos junguianos” um tipo de “meme” ou vê-los como sendo determinados
geneticamente nos moldes definidos por cientistas e pesquisadores neo-darwinistas
como Richard Dawkins e Daniel C. Dennett. De fato, a concepção de Hobson citada
acima sobre o que são os sonhos (“…interpretações fantasiosas, ad hoc de impulsos
neurais aleatórios ondulando-se a partir do tronco cerebral…”) encontra paralelo
na negação da existência da consciência humana formulada por Daniel C. Dennett
em seu Tipos de Mentes (Dennett, 1977), para quem não existe “consciência” mas
apenas um conjunto de impulsos, percebidos como ideias, presentes no cérebro num
dado momento.4
O que deve ser ressaltado, entretanto, é que o que ambos fazem
é recusar a complexidade ao fenômeno estudado, utilizando o artifício da redução
de sua importância ou pela simples negação de sua existência. Não deixa de ser
espantoso que esta atitude intelectual deseje ser aceita e entendida justamente como
sendo “científica”.
Assim,nasuaposturamaisextremada,adofisicismoneo-darwinista,aabordagem
meramente neuro-fisiológica como que despotencializa o sonho, reduzindo-o a mera
consequência de um evento cerebral. E aqui parece então retornar, renovada, aquela
mesma atitude do iluminismo, não mais como “pré-psicanalítica”, mas talvez agora,
pretensamente como “pós-psicanalítica”. Felizmente, entretanto, há outras pesquisas
em andamento que seguem outros caminhos.
4 | 	IMAGENS SEM LUZ?
Em Agosto de 2004 uma física brasileira – Gabriela Barreto Lemos, pesquisadora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizando um pós-doutorado na
Academia Austríaca de Ciências – publicou na revista científica Nature o resultado
de um interessantíssimo experimento “fotográfico”: Gabriela e sua equipe, baseando-
se num conceito da Física Quântica chamado “entrelaçamento ou emaranhamento
quântico”, separou dois feixes de fótons antes entrelaçados, fazendo um deles incidir
sobre um objeto e o outro diretamente sobre uma placa fotográfica.5
O resultado foi
surpreendente, pois o feixe de fótons que incidiu sobre a placa formou a imagem do
objeto sobre o qual o outro feixe incidiu, i.e., uma imagem se formou sobre a placa
fotossensível sem que as partículas (fótons) que a sensibilizaram tenham entrado em
contato com o objeto desenhado. A “comunicação” de estado entre os dois feixes
Arte Comentada Capítulo 12 154
antes entrelaçados, mas agora separados, permitiu um deles remotamente comportar-
se como o outro e formar a imagem do objeto que seu “antigo” par de entrelaçamento
estava a percorrer e desenhar.
Obviamente que aqui há “luz”: está presente na formação de uma imagem um
fluxo de fótons, mesmo que numa faixa de frequência não visível ao olho humano
(os feixes tinham comprimentos de onda acima e baixo do vermelho e do azul). O
impacto da “fotografia quântica” (como vem sendo chamado desde então o resultado
desta experiência) sobre uma “Teoria da Imagem” no que diz respeito à relação objeto-
imagem ou imagem-referente não pode ser considerado relevante, uma vez que o
objeto iluminado pelo feixe “referente” é o mesmo que é formado no sensor fotográfico
pelo outro feixe, que podemos chamar de feixe “impressor”. Portanto, ocorre referência
a um objeto concreto que é representado na formação da imagem.Agrande estranheza
neste fenômeno consiste na falta de contato direto entre o feixe que ilumina o objeto
e aquele outro que incide sobre a superfície fotossensível onde é desenhada a sua
imagem. Porém esta estranha circunstância talvez possa, pensada em conjunto com
um outro fenômeno já conhecido, o Biofóton, jogar alguma luz sobre as imagens do
sonho, as imagens “sem luz”.
O Biofóton é uma emissão celular de luz (radiação eletro-magnética) coerente
(como o laser) de baixíssima intensidade na faixa óptica (visível) do espectro e
também no infravermelho e ultravioleta, que todas a celulas vivas apresentam, e foi
descoberta pelo cientista soviético Alexander G. Gurvich em 1923, que os chamou
de “raios mitogenéticos”, já que ele estava estudando o processo de diferenciação
no desenvolvimento celular. Depois de décadas de experimentos inconclusivos e
consequente descrença da comunidade científica coube ao biofísico Fritz-Albert Popp
na Universidade de Marburg provar a sua existência nos anos 1970. Popp demonstrou
que a emissão de radiação eletromagnética se dava entre os 200nm e 800nm,
englobando a faixa visível aos nossos olhos que vai dos 400nm (vermelho) aos 700nm
(azul). Ele propôs então que os biofótons seriam emitidos periodicamente e seriam
uma emissão de luz coerente como o laser, o que permitiria supor ser possível uma
comunicação via uma radiação eletromagnética – portanto, na velocidade da luz –
entre tecidos e organismos vivos, para além dos processos químicos e elétricos já
estabelecidos.6
Mais recentemente, num artigo conjunto de 2010 os pesquisadores: Majid
Rahnama, Peyman Sardar, Vahid Salari, do Departamento de Física Shahid Bahonar
da Universidade de Kerman, no Irã; o canadense Jack A.Tuszynski, do Departamento
de Física da Universidade de Alberta no Canadá; István Bókkon, da Escola Doctoral
de Farmacêutica e Ciências Farmacológicas da Universidade Semmelweis da Hungria
e Michal Cifra, Departamento do Campo Eletro-magnético, Faculdade de Engenharia
Elétrica da Universidade Técnológica Tcheca, de Praga propuseram que os biofótons
desempenham importante papel interagindo nas atividade neurais em adição às
atividades elétricas e químicas.7
Arte Comentada Capítulo 12 155
Assim, seria possível especular sobre um possível papel dos biofótons nas
atividades cerebrais durante o sono R.E.M., quando os sonhos acontecem, ou ainda
se eles desempenham algum tipo de ação sobre a retina na formação das imagens
mentais que produzimos sem a presença da excitação direta de luz. Poderíamos
indagar ainda se haveria algum tipo de interação entre os biofótons e a luz com que
o mundo exterior banha nossas retinas durante a vigília: Será que os sonhos podem
estar relacionados – através dos raios de luz internos e externos, “emaranhados”
à grandes distâncias e no tempo ínfimo dos eventos quânticos – com antevisões e
descobertas, e assim levar e nos trazer aquelas mensagens dos deuses de que nos
falava Artemidoro?
Longe de querer dar respostas à estas especulações e a outras possivelmente
bem melhor fundamentadas, a única conclusão permitida no momento nos trás de volta
ao nosso ponto inicial: nos sonhos estamos frente a um evento íntimo de comunicação,
causado pelo atrito entre o mundo exterior e nosso mundo pessoal, um constructo, ao
que tudo indica, iluminado pela nossa própria luz interior.
NOTAS
1 - Ver o meu texto, As Três Dimensões das Imagens em: http://www.uel.
br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Carlos%20de%20Azambuja%20
Rodrigues.pdf
2 - Ver a cita sobre J. Allan Hobson no texto online de Patrick McNamara:
http://aeon.co/magazine/psychology/was-freud-right-about-dreams-all-along/
3 - idem.
4 - Seus críticos apelidaram este ser que se move segundo seus estados mentais
“aleatórios” de o “zumbi’ de Dennet.
5 - Ver matéria de Ciência Hoje On Line:
http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2014/09/diga-2018xis2019-gato-
de-schroedinger
6 - Um breve resumo deste histórico pode ser obtido em:
http://www.amebrasil.org.br/2011/node/250
7 - Texto completo na Cornel University Library on line:
http://arxiv.org/abs/1012.3371
Arte Comentada Capítulo 12 156
REFERÊNCIAS
ARTEMIDORO, Daldianus. Orneirocritica: Sobre a interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Zahar,
2011.
AZAMBUJA RODRIGUES, Carlos de. As Três Dimensões das Imagens. in IIIº ENEIMAGEM.
Londrina: UEL, 2011.
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma Filosofia da Cultura Humana. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
DENNETT, Daniel D. Tipos de Mentes, Rumo a auma compreensão da Consciência. Rio de Janeiro:
Ed. Rocco. 1997.
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Lisboa: Gradiva Publicações Ltda.,1999.
HOBSON, J. Allan. The Dreaming Brain. New York: Basic Books, 1988
	
Referências (Impressas e Webgrafia)
CIÊNCIAHOJE. “Acho que vi um gatinho..”. Ciência Hoje, Volume 318, pág.64, Outubro de 2014
McNAMARA, Patrick. How Sex rules our dreams. Aeon On line: Aeon Media Ltd., 2014
RAHNAMA, Majid et alli. Emission of Mitochondrial Biophotons and their Effect on Electrical Activity of
Membrane via Microtubule. Journal of Integrative Neuroscience, Vol. 10, No. 1, pages 65-88, 2011.
Arte Comentada Capítulo 13 157
CAPÍTULO 13
IMAGENS SENDO IMAGENS:
REFLEXÕES DE UM CAMPO DE LUTA, RESISTÊNCIA
E PODER
Patrícia Quitero Rosenzweig
Universidade Federal de Goiás, Faculdade de
Artes Visuais, PPGACV
Goiânia – Goiás
Rosa Maria Berardo
Universidade Federal de Goiás, Faculdade de
Artes Visuais, PPGACV
Goiânia – Goiás
RESUMO:Eporquenãosê-lasapenasimagens?
Esse é o ponto central que envolve esse estudo:
localizar a imagem na contemporaneidade.
Este artigo ambiciona convidar à reflexão
sobre a visualidade, objeto central dos estudos
visuais a partir de pontos de intersecção entre
imagem, estudos culturais, cultura da mídia e
poder social, a deriva do formalismo histórico
da arte, no sentido de compreender as variadas
posições do sujeito que emerge através dessas
relações visuais. Através de uma narrativa
videográfica publicada no canal brasileiro
oficial “Disney Princesa Brasil” no Facebook,
é proposta uma análise de complexidade pós-
linguísticafundamentada em Evans; Hall (1999),
Guash (2006) e Mitchell (2009) em ‘Instituição’,
‘Aparatos’, ‘Corpos’ (incluindo a representação
e recepção do espectador) e questões estéticas
de ‘Figuralidade’ da imagem.
PALAVRAS-CHAVE:Estudos Visuais; Estudos
Culturais; Cultura da Mídia; Disneyzação.
ABSTRACT: And why not just be images?This is
the central point that this study implies: to locate
the image in contemporaneity. This article aims
to invite reflection on visuality, the central object
of visual studies based on points of intersection
between image, cultural studies, media culture
and social power, the derivation of the historical
formalism of art, in the sense of understanding
the varied positions of the subject that emerges
through these visual relationships. Through a
videographic narrative published on the official
Brazilian channel “Disney Princesa Brasil”
on Facebook, an analysis of post-linguistic
complexity based on Evans is proposed;
(1999), Guash (2006) and Mitchell (2009) in the
‘Institution’, ‘Apparatus’, ‘Bodies’ (including the
representation and reception of the viewer) and
aesthetic questions of ‘Figurality’ of the image.
KEYWORDS: Visual Studies; Cultural Studies;
Media Culture; Disneyzation
1 | 	A IMAGEM NÃO NASCEU TEXTO
Ser imagem, se assumir e se fazer
significar como tal em um mundo, linguístico
por essência, talvez seja o maior desafio da
visualidade na contemporaneidade. “O mundo
Arte Comentada Capítulo 13 158
das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo. Por cima vemos a beleza,
que é muito importante, mas, na verdade, a beleza não é nada repousante”, bradou
o professor filósofo e historiador da arte, Didi-Huberman, em entrevista concedida ao
jornalista Daniel Augusto do Estadão Jornal Digital (2017). 
Antiga como o homo sapiens, a imagem nasceu arte. Seu uso como artefato
remonta a Era Paleolítica. Embora tenhamos tomado consciência da imagem como
representação apenas há alguns séculos, a imagem, com seu poder de visualidade
nos conta a história da vida e nos faz imaginar o quão rico era as relações humanas
num dado tempo histórico. É certo que nos primórdios, esta linguagem imagética tinha
a mesma natureza e significação mítica e colaborava para a assimilação do mundo, à
mesma medida em que se limitavam aos homens deste mundo. Se pensarmos o signo
visual como antecessor do signo linguístico, a gênese destas linguagens artísticas
deveria repousar sobre a experimentação com materiais, ou seja, da ação das mãos
se originavam as imagens.
Estudar a imagem e entender como são construídas as representações de forma
multidimensional, não linear e não expressa, necessariamente, por signos linguísticos
ou para além dos formalismos históricos da arte, tem sido o desafio de alguns
pesquisadores dos Estudos visuais, Cultura Visual ou Estudos da Cultura visual.
Um campo de estudo que se fez emergente em um momento crucial da visualidade
contemporânea, ainda nos idos do século XX.
Naquele momento acreditava-se que, a possibilidade de uma abordagem
generalizante dos Estudos Visuais pudesse promover um entendimento simplista
da análise cultural, implicando em uma perda radical de criticidade. Assim, desde
sua origem tem sido sabatinado por especialistas em arte contemporânea, críticos
e teóricos da visualidade, como ocorreu na publicação da edição nº 77 de 1976, da
Revista October - uma das mais conceituadas publicações científicas do MIT Press,
fundada em 1976. Na edição nº 77 Rosalind Krauss e Hal Foster publicaram o resultado
de um questionário denominado “visual culture questionnaire” que foi enviado a vários
críticos, pesquisadores e artistas com o objetivo de entender melhor o conceito de
cultura visual. Naquele momento, os estudos das visualidades já davam sinais de
preocupações aos pensadores quanto à possível perda da criticidade tradicionalmente
mantida pela Historia da Arte.
Até então formatado sob o juris antropológico, o estudo da Cultura Visual parecia
desejar relegar o “estado de arte” a outras práticas de discurso e significação que se
aproximavam do estágio do capital globalizado a partir de uma concepção do visual
como “imagem desencarnada” e, neste contexto desprivilegiando o estatuto da arte.
Monteiro(2008), a partir da publicação Cultura visual: definições, escopo, debates,
aborda essa preocupação sobre a localização dos estudos visuais em relação à arte
reticentes da abordagem interdisciplinar dos estudos destinados às visualidades, com
uma preocupação, de que, em certa medida, fosse tratada indiscriminadamente dentro
de uma meta-disciplina de cultura visual, nivelando a diferença entre arte e imagem
Arte Comentada Capítulo 13 159
Midiatizada. Ainda, no final dos idos de 1980, os Estudos Visuais roubam a atenção
do cenário acadêmico anglo-saxão pelo seu caráter de inclusão interdisciplinar que
envolvia: a história da arte, a antropologia, a linguística, os estudos do cinema e a
literatura comparada e encontram refugio na teoria pós-estruturalista e nos Estudos
Culturais. (Dikovtskaya apud Monteiro, 2008: p.131)
Ainda segundo Monteiro (2008) “alguns esforços pioneiros na área dos como o
artigo Ways of Seeing (1972), de John Berger; o artigo Vision and Painting: The Logic
of Gaze (1983), escrito por Norman Bryson; e o texto History of Bourgeois Perception
(1983), de Donald Lowe, além de Iconology (1996) de Mitchell” foram imprescindíveis
ao que Evans e Hall (1999) denominaram de dupla troca: da arte para a cultura visual
e da história para a cultura.
Porém o pleno reconhecimento do campo de estudo visual se fortaleceu na virada
do século, a partir do Jornal of Visual Culture - periódico criado 2002 e publicado pela
SAGE. Monteiro (2008) afirma que o assunto seguiu em ampla discussão a partir
de fóruns, protagonizados por Nicholas Mirzoeff seguido da reedição do The Visual
Culture Reader e da American Studies Association, além de uma nova serie livros
sobre o tema publicado pela University of Rochester que, segundo Martin (2003),
balizaram a localização do estudo da Cultura Visual.
Envolto às polêmicas e reminiscências, W. J. T Mitchell (2003) é enfático ao
responder as críticas sobre o chamado “campo emergente” questionando essa relação
de (in) dependência da Arte ou da Estética, uma vez que a nova virtude deste novo
campo é nominar uma problemática ou invés de se relegar a um objeto teórico. A
partir de uma visão peculiar localiza precisamente a abordagem dos Estudos Visuais
como um amplo campo de estudo e coloca a Cultura Visual como objeto questionando
como e por que as “praticas de ver” transformam o nosso olhar. O teórico centra ainda
suas analises no viés da critica da construção do visual em artes, mídia e imagens
do cotidiano, e os estabelece para além das belas artes e com enfoque na formação
social do campo visual.
Ao ser questionado sobre a necessária associação dos Estudos Visuais com
os Estudos Culturais, dada a importância social da Cultura como fértil campo de
contestação e conflito de práticas de representação erguidas a partir da formação de
grupos sociais, Mitchell (1995) deixa claro que a caracterização do estudo é social,
para além das questões politicas ou acadêmicas. “A cultura visual é a construção visual
do social (um lugar de experimentação dos mecanismos sociais da diferenciação), não
unicamente a construção social do visual (imagens e experiências)”. Mitchell (2003)
declara abertamente as referências, contribuições e influências dos Estudos Culturais
e da mesma forma são exaltadas as contribuições da Psicanálise, Semiótica, da
Linguística, da Estética, da literatura, da Antropologia, da História da Arte e do estudo
do Cinema.
Arte Comentada Capítulo 13 160
2 | 	ENTRE E, A PARTIR DAS VIRADAS.
A Pictorial Turn - originariamente escrita em inglês, proposta por Mitchell (1994)
formulada com ênfase nas práticas sociais e nas relações como prática de significados.
Surge da relação ou da ‘não mais relação’ entre visibilidade e discurso que, de certo
modo privilegiava o modelo linguístico de representação, sob o pressuposto de
que todos os signos ou significações imagéticas estão necessariamente ligados a
um domínio pré-linguístico previamente estruturado. Para Pegoraro (2011) a virada
situa, exatamente, à metade do caminho entre o que Thomas Kuhn chamou de um
‘paradigma’ e uma ‘anomalia’ uma vez que aparece frequentemente como um debate
fundamental nas ciências humanas. Visão contraposta por Dias e Fernandez (2014,
P. 103), que afirmam que a virada imagética englobam mudanças de caráter filosófico
e se aproveita de códigos do sistema não linguístico, não partindo da língua como
paradigma do significado.
Paradigmas são modelos, representações e interpretações de mundo,
universalmente reconhecidas, que fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade científica. As anomalias, por sua, vez são discordâncias entre
previsão e resultados, não atribuíveis a falhas do experimentador (KUHN, 1991,
p.13)
Para Guasch (2006) em Los Estudios Visuales um estado de la cuestión, a
‘virada de Mitchell’ complementa a fala de Jonathan Crary (1990) no que tange o
conceito de visão e as novas relações entre a imagem (objeto observado) e o sujeito
(espectador, para além da condição de observador). A autora, que embora porte uma
visão mais conservadora da virada imagética estreitamente ligada à História da Arte,
acrescenta que a virada imagética representa um descobrimento pós-linguístico e
pós-semiótico da imagem: uma completa interação entre a visualidade, as instituições
o discurso, o corpo e a figuralidade. E, sobretudo, está convencida de que as visadas,
as práticas de observação e o prazer visual do espectador podem ser alternativos às
formas tradicionais de leitura unidas proporcionando deciframentos, decodificações e
interpretações.
Mitchell (2009, p.12) para além, abre polêmica referenciando os meios como
‘mistos’ e de representação ‘heterogênea’ não existindo artes puramente visuais
ou verbais corroborando com Guash (2006) sobre as questões pós-linguísticas
relacionando as imagens a um complexo jogo entre: visualidades, os aparatos, as
instituições, os discursos, os corpos, expandindo a função de figuralidade mencionada
pela autora à atividade do espectador, suas práticas observação, vigilância e prazer.
Mais pragmático, o professor Nicholas Mirzoeff (2002) adota múltiplos pontos de
vista para entender as causas e efeitos da cultura na contemporaneidade, fomentada
pela convergência, Tecnologia digital e multimídia. Para o autor, vivemos um período
de Intervisualidade, na qual há exibição e interação simultânea de uma variedade de
modos de visualidade caracterizando-a, assim, como “transdisciplinar”.
Mas para Anna Maria Guash (2003) a Cultura visual, demonstrava exacerbar o
Arte Comentada Capítulo 13 161
trânsito tornando-se uma caixa de miscelâneas onde questões como: gênero, raça,
identidade, sexualidade, pornografia, e ideologia convivem com questionamentos
específicos de visualidades. A autora critica arduamente Mirzoeff no que tange à
“transdisciplinaridade” da Cultura Visual, alegando que a liberdade espistemológica
do estudo extrapolava o ferramental metodológico. Acredita-se que o caráter pós-
estruturalista do estudo tenha levado a autora a uma preocupação de caráter didático
na busca de uma sistemática investigativa de parâmetros rígidos que não se aplicava,
ou não tinha tanto peso formal naquele ou em qualquer momento, uma vez que os
estudos visuais tem, como propósito, questionar como e porque, as praticas de ver
(visualidade e visibilidade) tem transformado o universo de compreensão simbólica.
A cultura visual não é simplesmente uma história das imagens, é uma interação
entre o signo visual, a tecnologia que possibilita e sustenta tal signo e o espectador
(Mirzoeff, 2003, p.34). É uma abordagem para o estudo da vida na contemporaneidade
do ponto de vista mais do consumidor do que do produtor. Por meio do estudo da
Cultura visual é possível entender os sinais de resposta do consumidor da mídia
visual. O autor (1999) aborda a dependência da cultura visual ao olhar do espectador,
a partir da tendência moderna de visualização da existência e sua relação com a
mesma, forma e interfaces com todas as disciplinas que lidam com visualidade. Knauss
(2006) propõe cultura visual como produção social, por isso, o olhar do espectador
é definido pelo autor como uma construção cultural que é estabelecida socialmente
através da competência visual do mesmo.Assim, na visão de Monteiro (2008) parece
interessante substituir o conceito de autonomia da arte pelo de intertextualidade a
partir da percepção do valor estético como uma construção social. Substitui-se, assim,
a história da arte pela história da imagem.
3 | 	REFLEXÕES DA IMAGEM MÍDIA
Os meios de comunicação de massa se tornam cada vez mais agentes
transmissões e disseminadores de valores. Eles configuram padrões estéticos e
comportamentais, influenciam pessoas, alteram visões de mundo auxiliando-as
no árduo trabalho de composição identitária, contribuindo, midiaticamente, para a
produção e articulação de novas formas culturais. E nessa composição, onde são
mapeadas questões de ordem econômica, política e social são validadas apropriações
de ideias, fatos, todas referenciadas midiaticamente, em um espaço confortável, frouxo
e pretensiosamente permissivo. Um espaço de diálogo, construção das relações de
poder, interação, demandam adaptação e exige negociação.
As imagens de mídia se manifestam através de ideias, ações, artefatos culturais.
Como ocorre a construção das imagens/mídia em um processo histórico socialmente
situado? É impossível entender e analisar culturalmente a imagem midiatizada sem
considerar os embates sociais, as contradições, interesses, inquietações e temores
fantasias,desejoseutopiasdeumasociedadequeseutilizademecanismossilenciosos:
Arte Comentada Capítulo 13 162
capitalismo, alienação, consumo há tanto anunciada pela Cultura da Mídia que molda
a vida diária, influenciando o modo como as pessoas pensam e se comportam, como
se enxergam e enxergam os outros e como constroem sua identidade.
Os Estudos Culturais recorrem a uma gama díspar de campos a fim de teorizar os
efeitos de uma ampla variedade de formas de mídia/cultura/comunicações em nossas
vidas e demonstram como essas produções servem de instrumento de dominação, e
também oferecem recursos para a resistência e a mudança.
A distinção entre cultura e comunicações é arbitrária e rígida, devendo ser
desconstruída. Seja “cultura” como os produtos da cultura superior, quer como
modos de vida, quer como contexto do comportamento humano, etc. Veremos que
há uma intima ligação com a comunicação. Toda cultura para se tornar um produto
social, portanto, serve como mediadora da comunicação e é por essa mediada,
sendo, portanto, comunicacional por natureza. Assim, a comunicação é mediada pela
cultura. É um modo pelo que a cultura é disseminada, realizada e efetivada. Não há
comunicação sem cultura e não há cultura sem comunicação (Kellner, 2001).
Assim, pela teoria culturalista é possível analisar questões de imagens mídia
por um viés social, de poder e de conhecimento. Detectar mudanças estratégicas
através da visualização e percepção de como são imbricadas e diversificadas em
distintas eras históricas. Kellner (2001) ainda assume a condição material da Cultura
da Mídia partir das premissas marxistas de Raymond Williams sobre materialismo
cultural e suas formas de significação dentro dos meios e condições de produção
ressaltando a importância de se analisar dentro do sistema de produção, de distribuição
e consumo bem como a forma como são produzidos e recebidos. Uma abordagem
materialista cultural ressalta a importância da economia política da cultura, do sistema
que constrange ao que pode e ao que não pode ser produzido, que impõe limites
e possibilidades para a produção cultural. Fala-se, portanto, de produção midiática,
intimamente imbricada em relações de poder e serve para reproduzir interesses e
forças sociais poderosas, promovendo a dominação e dando aos indivíduos força para
resistência e luta.
Por outro lado, esse materialismo focaliza os efeitos na imagem, no espetáculo.
Para o materialismo cultural, os textos da mídia seduzem, fascinam, comovem,
posicionam e influenciam seu público. Servem como um anestésico capaz de paralisar
reduzindo-os a espectadores sem discernimento. O espetáculo visual faz parte da vida
cotidiana.
Para Debord (1991) as imagens decorrentes da relação capital/consumo
funcionariam como uma espécie de conformação hipnótica, como se toda a tragédia do
mundo contemporâneo residisse no fato de as coisas se tornarem imagens, afirmação
veementemente criticada por Machado (2001, p. 19) que diz estarmos vivendo o
quarto Iconoclasmo da história ocidental. Os produtos, provenientes das imagens que
nos escolhem. “O espetáculo, nesse sentido transforma o mundo em imagens, em
representação/ilusão daquilo que antes da revolução industrial fora vivido diretamente,
Arte Comentada Capítulo 13 163
sem mediações” (Martins; Sérvio, 2106, p. 241).
Entende-se, portanto, a eficácia e os efeitos materiais da cultura da mídia. Um dos
objetivos dos Estudos Culturais e analisar de que modo determinados textos/imagens
afetam seu público, e que espécie de efeito real os produtos da cultura da mídia
exercem, quais os potenciais efeitos ‘contra hegemônicos’ e quais as possibilidades
de resistência e lutas cabem neste contexto teórico.
4 | 	ANALISANDO O CORPUS
O conhecimento do mundo, as experiências com a realidade dependem do
que vemos e de como vinculamos cotidianamente com as representações visuais.
Ao deslocar o fato das categorias artísticas tradicionais e disciplinas acadêmicas no
estudo dos objetos (...) ao explorar conexões e contrastes entre as diversas formas de
arte popular e das belas artes, ao incluir e discutir o impacto das imagens de cinema,
de publicidade, de jogos de computador e historia em quadrinhos sobre crianças,
adolescentes, jovens e adultos; ao ampliar os limites culturais e educativos que
abrangem outro segmento ou grupos culturais, suas imagens e artefatos, ao enfatizar
deliberadamente a relação arte e vida, ou seja, arte e imagem como parte do cotidiano,
como parte de uma convivência diária com a nossa diversidade (Martins, 2012).
Como mencionado por Evans; Hall (1999), Guash (2006) e Mitchell (2009),
a complexidade pós-linguística que cerca a imagem na contemporaneidade, em
seu complexo jogo de práticas, torna possível a sua significação. Assim, a análise
desta narrativa audiovisual midiática será balizada pelos elementos: Instituições
(identificação, visada social e relações de poder); Aparatos (mídias de produção e
circulação imagética e vigilância); Corpos (representação e ação dos sujeitos, incluindo
a atividade do espectador proposta de Mitchell (2009), como práticas, observação e
prazer); Figuralidade (pelo viés estético e para além do registro visual – relacionado
às significações)
4.1	 Instituições
Marca: Walt Disney Company. Produto: Franquia Princesas Disney - A franquia
oficial de Princesas Disney foi criada em Janeiro de 2000 por Andy Mooney, então
presidente de produtos da the Walt Disney Company com o objetivo de comercializar
os produtos das personagens femininas que tem alta repercussão junto ao público
infantil. Meio de Divulgação: Pagina oficial da franquia Disney Princesas Brasil no
Facebook. Foi criada no ano de 2011, pela Walt Disney Company. Atualmente utiliza
a tag #SouPrincesaSouReal em todas as publicações. Atualizada com até cinco
postagens mensais, frequência considerada baixa nos ‘parâmetros Brasil’ em que
as fanpages chegam a obter até três postagens diárias. Os posts chegam a ter 13
Arte Comentada Capítulo 13 164
mil likes (curtidas). Na data de analise deste estudo, 19/07/ 2017, a página brasileira
possuía 292.577 mil seguidores brasileiros. Quanto ao conteúdo das postagens,
a sua maioria segue o contexto proposto de que todas as mulheres são princesas
da vida real, e, portanto, buscam interação e cumplicidade a partir da identificação
das imagens de princesas apresentadas ao perfil das meninas/adolescentes e, por
consequência, suas mães/adultas fãs das princesas da Disney e seguidoras da página
social. Os posts são essencialmente imagéticos formados por vídeos bem elaborados,
com trilha sonora e outros com giffs ou imagens estáticas, utilizando cenas dos
filmes e explorando a imagem das princesas. Todas as postagens são seguidas da
#SouPrincesaSouReal
4.2	 Aparatos
A versão brasileira da narrativa videográfica: Sou Princesa, Sou Real - Sonhe
alto, foi postado na fanPage do Facebook Disney Princesas Brasil, dia 5 de março
de 2017, domingo, às 17h09 seguido do texto-legenda: Você pode ser o que quiser,
só depende de você! Qual é o seu maior sonho? #SouPrincesaSouReal. A narrativa
visual, atualmente1
com 187 mil visualizações, 2.270 reações (likes/curtidas) e 316
compartilhamentostrazumamensagemdeotimismoatodasascriançaseadolescentes
brasileiras, mostrando em imagens o que é ser verdadeiramente uma princesa. A trilha
sonora da musica “Hall ofFame” The Script, sofreu adaptações na letra e, no vídeo é
entoada pela voz doce de uma jovem.
4.3	Corpos e Figuralidade
Arepresentaçãoimagéticaocorreemtornodaideiacentral#SouPrincesaSouReal.
Ser princesa é ser ativa, ter disposição, é ter opinião, ser ousada, ser brilhante, ser
vencedora e participar do corredor da fama, mostrando o seu valor ao mundo. E
traz uma mensagem final: “Sonhe alto. Sempre tem uma princesa que mostra que
é possível”. A narrativa mescla cenas de corpos de meninas/adolescentes em ação.
Envoltas às brincadeiras em grupos ou individuais, executando atividades físicas ao ar
livre com cenas clássicas dos filmes de animação que mostram as princesas da Disney
em ações semelhantes. Em todas as imagens da narrativa as crianças aparecem
felizes e são mostradas de forma positiva. A montagem do vídeo “Sou Princesa, Sou
Real – Sonhe alto” é cadenciada pela batida da trilha sonora que anuncia que ser
princesa é “estar no corredor da fama”. A trilha, portanto, instiga a um lúdico menos
melancólico e mais relacionado às relações de poder. As cenas (corte seco) são
rápidas e encadeadas a partir da trilha sonora. Durante a narrativa, muitas princesas
aparecem com identidade espelhada. São elas: Merida, Rapunzel, Mulan, Tiana, Ariel,
Pocahontas, Bela, Jasmine, e Cinderela.
1
Arte Comentada Capítulo 13 165
Segue, na sequência, a captura de alguns frames do vídeo que demostram a partir
de gestuais e olhares algumas a força das imagens e quanto elas podem significar,
quando justapostas a partir de um objetivo definido. É importante frisar que não se
trata de uma análise fílmica clássica, com preocupações analíticas de linguagem
fílmica (planos de câmera e efeitos) e sim possuem enfoque pós-linguístico, a partir
das significações das imagens fundamentadas nos elementos ‘corpo e figuralidade’,
aliadas às relações de poder, espetacularização e recepção.
O vídeo inicia com a imagem de adolescente do gênero feminino em um ambiente
externo (floresta) colocando um capacete de bicicleta na cabeça. Ela o faz a partir de
um gesto simbólico, de coroação. Ela representa a princesa da contemporaneidade.
Seu olhar fixo no horizonte demonstra segurança e determinação. A trilha sonora da
música Hall off Fame - The Script acompanha uma sequência de imagens positivas que
demonstram altruísmo.Asequência inicial acaba na ginasta que consegue finalizar seu
movimento com perfeição e vencer a competição. No semblante, o sorriso da vitória.
Figura 1: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
Na primeira sequência imagética que ocorre de forma espelhada com asimagens
dos filmes de animação de princesas Disney, deixam claros os objetivos de aproximação
da figuralidade da princesa à identidade de infantil. Pela montagem são, claramente,
perceptíveis a intensão de mostrar a aproximação identitária das princesas, às crianças/
adolescentes reais. Nesta imagem, uma criança demonstra coragem ao escalar uma
montanha. Na sequência, aparece espelhada a corajosa princesa Mérida, do filme
Valente realizando o mesmo ato. Embora o plano da imagem esteja em outro ângulo
é possível entender a associação proposta na junção das imagens.
Figura 2: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
Arte Comentada Capítulo 13 166
O segundo espelhamento imagético ocorre a partir da clássica cena do filme
Enrolados, onde Rapunzel, mostrando-se determinada, se lança sobre os seus vinte
e um metros de cabelos dourados. Em fusão aparece uma ginasta infantil, também
usando vestimentas cor púrpura (auxiliando, assim, visualmente a aproximação
imagética). Ela demonstra a destreza nos movimentos. A imagem da menina passa ao
espectador a mesma determinação de Rapunzel sobre uma barra paralela.
Figura 3: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
O terceiro espelhamento imagético ocorre através do atletismo. Crianças correm
em uma competição e vencem. A cena do pódio é reproduzida a partir do orgulho das
crianças concentradas e segurando a medalha conquistada. O gesto é repetido na
cena do filme da princesa chinesa, Mulan, na cena clássica de reconhecimento pela
sua vitória. As cores das roupas da atleta central do vídeo e da audaciosa princesa
Mulan se aproximam, auxiliando o espelhamento. É importante pontuar que, no filme
a princesa precisa se disfarçar de homem para treinar com seus colegas e conquistar
seu sonho.
Figura 4: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
Oquartoespelhamentoimagéticodovídeoocorreemumacenanadaconvencional.
Uma menina se diverte tocando bateria em um show de rock demonstrando, assim,
suas habilidades musicais. A cena que acompanha é do filme A princesa e o sapo.
Tiana é uma princesa batalhadora, com talento culinário e muita imaginação para
driblar os problemas da vida. Ela solta a voz com muito alto astral. O fundo marrom
presente em ambas as cenas auxiliam nesta aproximação.
Arte Comentada Capítulo 13 167
Figura 5: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
O quinto espelhamento imagético ocorre a partir da cena do filme A Pequena
Sereia. Ariel é uma sereia adolescente que se apaixona por um humano. Na imagem,
uma criança faz mergulho no fundo do mar, como se tivesse a energia de Ariel e
explora o fundo do mar como se fosse uma sereia. Interessante notar a sensibilidade
da montagem a partir da composição daprincesaAriel olhando admirada a sua imagem
espelhada. A aproximação da imagem se dá também, atravésdos raios de sol que
incidem na água eas nuvens.
Figura 6: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
O sexto espelhamento imagético ocorre a partir do Filme Pocahontas, uma
princesa nada convencional que se apaixona por um capitão inglês. Indígena forte
e sensível. Ela demonstra suas habilidades durante a trama. É importante notar que
o espelhamento imagético ocorre pela ação (corrida), porém percebe-se uma clara
aproximação da cor predominante vermelha nas duas cenas. A menina, assim,
demonstra sua habilidade como corredora.
Figura 7: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
OsétimoespelhamentoocorrenovamenteapartirdeumacenadofilmeEnrolados.
Arte Comentada Capítulo 13 168
Suspensa pelos seus longos cabelos mostra toda a sua habilidade e sensibilidade
de pintora. Sob a grande luminosidade da janela aparece timidamente e, de costas,
talvez a única criança do gênero masculino protagonizando um espelhamento. Ele
veste roupas mais sóbrias e aparenta concentração ao expressar sua arte. Esse
espelhamento é o mais rápido do vídeo, aparentando ter sido realizado por formalidade,
para não demonstrar discriminação de gênero no filme. A aproximação das cores no
espelhamento também é nítida e ambos estão no mesmo ângulo fílmico auxiliando a
aproximação imagética.
Figura 8: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
O oitavo espelhamento do vídeo ocorre a partir de uma cena do filme Bella e a
Fera. A jovem, por amor ao seu progenitor, decide se entregar a um estranho em troca
da liberdade do seu pai. Na cena Bella aparece por traz de uma árvore e olha para
a câmera. Ela sorri timidamente. A cor do fundo gelado é branca e azul. O mesmo
acontece na imagem seguinte. Sob o mesmo plano (plano médio) e sob o mesmo
olhar, a menina sorri timidamente para a câmera. Ela está em um ambiente escolar,
mas com aproximações de tons de azul. Há a presença do vermelho nos óculos da
menina.
Figura 9: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
O nono espelhamento do vídeo ocorre com Jasmine, a princesa do Filme Aladdin.
Apaixonada pelo plebeu Alladin, a princesa árabe é romântica e doce. Na imagem, ela
voa no tapete mágico de Alladin e abre os braços, num gesto de liberdade. Na cena
em espelhamento, a jovem de etnia oriental, dança com seus amigos e seus passos e
braços abertos passam a sensação de que a menina flutua. Notem o olhar das duas
representações, ambas parecem usufruir da liberdade de forma pura e verdadeira.
Arte Comentada Capítulo 13 169
Figura 10: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto.
Fonte: Facebook
E finalmente, o décimo e último espelhamento do vídeo ocorre a partir de outra
cena de ginástica, agora ginastica artística. A menina em um movimento circular com a
fita rodopia em seu eixo, da mesma forma como a princesa cinderela o faz. A imagem
de espelhamento utilizada é do clássico filme Cinderela de 1950. A imagem mostra
uma das cenas da princesa em rodopio. Embora a imagem escolhida no vídeo passe a
ideia da representação, a cena, de transformação da jovem em princesa, com vestido
azul envolta ao pó mágico da fada madrinha parece ser mais adequada.
Ao fim das representações em espelhamento surge o castelo da Cinderela a
princesa mais clássica da Disney como imagem final do vídeo. O castelo aparece
ao fundo da imagem envolto por luzes. O plano se fecha, aproximando-o ao castelo.
O background do vídeo abaixa e surge uma locução feminina em off: “Sonhe alto.
Sempre tem uma princesa que mostra que é possível”. E o vídeo finaliza reforçando o
conceito. “Sou princesa, sou real”.
Pensando na corporalidade da imagem a partir da atividade do espectador,suas
práticas de interação, observação e prazer, propostas por Mitchell (2009), nos fazem
analisar a repercussão midiática e a receptividade do material. Como esse vídeo foi
percebido e criticado pelo seu público? Mais de 187 mil pessoas já assistiram ao
vídeo, somente através da plataforma Facebook. Importante pontuar que este vídeo
está disponível, também, da plataforma Youtube, desde o dia 05 de março de 2017.
Até o dia do acesso, 20 de julho de 2016, às 12h36, o vídeo no Youtube obteve 24.465
visualizações.
Analisando a postagem, a partir dos dados publicados, mais de duas mil pessoas
reagiram ao vídeo, aprovando-o, em sua maioria. Cinquenta e quarto pessoas, todas
do gênero feminino interagiram com o vídeo através de comentários. Algumas pessoas
comentaram o vídeo através de imagens (giffs animados, emoticons, corações);
outras teceram algunscomentários elogiosos ao vídeo e à página. Aliás, o primeiro
comentário do post tem caráter social e se formaliza como um pedido da espectadora
a Walt Disney Company: fazer um filme com uma princesa careca, que lute contra o
câncer.
Muitas pessoas marcaram amigos, sugerindo o vídeo como conteúdo. Outras
perguntaram sobre a música e os próprios usuários responderam. Algumas apenas
desabafaram sobre o desejo de se tornar atleta profissional (jogadora de futebol,
Arte Comentada Capítulo 13 170
ginasta, etc). Todos os comentários publicados, a princípio, parecem positivos, porém
a página menciona que se reserva o direito de excluir qualquer mensagem ou material
da página que considerarem “não relacionado ou inadequado, questionável ou contrário
aos direitos de qualquer terceiro”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade contemporânea, ”a vitalidade e o poder da imagem são evidentes
através da influência que elas exercem sobre a imaginação das pessoas” (Mitchell
apud Tourinho; Martins, 2010, p. 41), sobretudo nas crianças. Assim, as imagens
culturais da mídia, como o cinema, séries de TV e propagandas que invadem o
cotidiano tem se tornado uma forma dominante de cultura popular. São as influências
dessas mercadorias simbólicas, disseminadas pela indústria cultural, que modelam o
lazer, as opiniões e os comportamentos, “fornecendo o material com que as pessoas
forjam sua identidade” (Kellner, 2001, p. 9).
E em seus estudos sobre a “Disneyzação da Cultura Infantil”, Henry Giroux
(1995) afirma que a cultura infantil é uma esfera onde o entendimento, a defesa de
ideias políticas e o prazer se encontram pra construir concepções do que significa
ser criança – uma combinação de posições de gênero, racial e de classes define a
relação a uma diversidade de outros. Os filmes infantis fornecem um espaço visual
onde se encontram fantasia, porém não são inocentes, estão numa esfera comercial
de consumismo e mercantilização, não são diversões transparentes. Zipes (1995), um
importante teórico dos contos de fada argumenta que os filmes da Disney celebram
um tipo masculino de poder reproduzindo um tipo de estereótipo de gênero. Este,
por sua vez, exerce um efeito adverso sobre as crianças, em contraste com o que
os pais que pensam ser inofensivos. Assim, esse estudo demonstra-se urgente e
de grande relevância para pesquisadores culturais, educadores e pais refletirem e
discutirem criticamente a força e o poder da imagem midiatizada, não subestimando
os meios audiovisuais e digitais e forma a perceber como a Cultura da Disneyzação,
se insere no dia-a-dia das crianças e adolescentes, a partir das imagens fílmicas,
aparentementeinofensivas.
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Arte Comentada Capítulo 14 173
CAPÍTULO 14
QUESTÕES ESTÉTICAS DAS MÍDIAS: LATITUDES
COMO EXEMPLO TRANSMIDIÁTICO
Vanessa de Cassia Witzki Colatusso.
Universidade Federal do Paraná – Doutoranda
em Meio Ambiente e Desenvolvimento na linha de
Comunicação Ambiental.
RESUMO:Aestética,comofontedesignificação,
abrange, não somente, mas também, reflexões
sobre fenômenos artísticos e socioculturais.
Na sociedade contemporânea, o capitalismo
exacerbado influencia a geração de uma
produção midiática superabundante e faz surgir
uma nova forma de relacionamento das pessoas
com os meios de comunicação, assim também,
obras que optam por seguirem esses caminhos,
como o projeto transmidiático Latitudes (Felipe
Braga 2013). Este estudo visa recorrer à
estética como instrumento interpretante, de
como essas práticas vem se realizando, citando
o início do cinema e também o atual, estudado
por teóricos prólogos das vertentes estéticas,
como por exemplo, Hugo Munsterberg e Jean
Mitry, passando pelas mudanças ocorridas com
a televisão, através de autores como Douglas
Kellner, Maria Immacolata Vassallo Lopes e
finalmente as novas mídias, abordadas por
Robert Stan (2005) e sob o olhar de Gilles
Lipovetsky e Jean Serroy (2015).
PALAVRAS-CHAVE: Estética; Consumo de
Conteúdo; Cinema; Televisão; Internet.
ABSTRACT:Aesthetics,asasourceofmeaning,
encompasses, not only, but also, reflections
on artistic and sociocultural phenomena. In
contemporary society, exacerbated capitalism
influences the generation of an overabundant
media production and gives rise to a new form
of relationship between people and the media,
as well as works that opt ​​to follow these paths,
such as the transmissive project Latitudes
(Felipe Braga , 2013). This study aims to use
aesthetics as an interpreting instrument, of how
these practices are being carried out, citing the
beginning of the cinema and also the current one,
studied by prological theorists of the aesthetic
aspects, for example, Hugo Munsterberg and
Jean Mitry, going through the changes With the
television, through authors like Douglas Kellner,
Maria Immacolata Vassallo Lopes and finally
the new media, approached by Robert Stan
(2005) and under the eyes of Gilles Lipovetsky
and Jean Serroy (2015).
KEYWORDS:Aesthetics;ContentConsumption;
Movie theater; TV; Internet; Latitudes.
1 | 	INTRODUÇÃO
Este artigo pretende resgatar algumas
ideias lançadas por autores ligados as teorias
das artes e contemporaneidades, que trazem
luz sobre as questões voltadas a estética como
Arte Comentada Capítulo 14 174
fonte de significação no meio comunicacional e de suas obras. O advento das novas
mídias trouxe um impacto na sociedade e uma modificação na forma como as pessoas
consomem os produtos audiovisuais e como elas se relacionam com as obras através
da intersecção entre diversas mídias (a transmidialidade) e destas com outras formas
de expressão. Autores como Carole Talon-Hugon (2009) explicam como a arte deixou
de ser apenas material com finalidade ritualística na sociedade primitiva, para ser
objeto que visa um consumo estético “desinteressado e gratuito” na atualidade.
Assim também como outros autores que diferenciam a estética em cada meio de
comunicação, citaremos Hugo Munsterberg e Jean Mitry para o cinema, Douglas
Kellner, Maria Immacolata Vassallo Lopes para a TV e Robert Stan, Gilles Lipovetsky
e Jean Serroy para a internet.
Utilizaremos ainda o projeto Latitudes (Felipe Braga, 2013) como exemplo de
obra que se apoia nessas três plataformas citadas, seguindo a tendência estética
da transmidialidade com a intenção de atrair maior público e maior rentabilidade
econômica, visto que, uma coisa é certa e que é atualmente facilmente identificada,
hoje já não existe mais, nesse mercado das artes, as oposições até pouco constituídas,
“arte contra indústria, cultura contra comércio, criação contra divertimento: em todas
essas esferas, leva a melhor quem for mais criativo” (Lipovetsky, Serroy 2015, 27).
2 | 	A ESTÉTICA COMO FONTE DE SIGNIFICAÇÃO
O presente artigo visa utilizar como objeto de estudo a estética e suas
conceituações como disciplina “portanto a estética é explicitamente apresentada
como uma teoria da sensibilidade, mas da sensibilidade como modo de conhecimento”
(Talon-Hugon, 2009, p.45) chegando ao que hoje alguns autores compreendem
como sendo uma estetização do mundo; e por ser um conceito aberto, suscetível de
evolução, será utilizada como sendo uma possibilidade de entender o que a nossa
contemporaneidade nos tem proporcionado, aqui mais especificamente, no campo do
audiovisual.
Fazendo um resgate do que alguns autores consideram como estética, podemos
iniciar com Carole Talon-Hugon (2009) que em sua obra A estética – história e teorias
clarificaoseupercursodesdeasuaconstataçãoatéasuaaplicabilidadecomodisciplina.
Ressalta as primeiras ideias lançadas por Baumgarten que batizou aquilo que ele
considerava a “ciência do modo sensível do conhecimento de um objeto” por estética,
assim também como as conceituações de outros autores, como Kant que na obra
Crítica da faculdade do juízo, examina a questão que atravessa o século: saber como
é que o juízo estético, que é subjetivo pode, não obstante, ter uma validade universal.
Para ele existem duas grandes categorias: as que se ocupam da beleza (são os juízos
de gosto) e as que se referem ao sublime, sendo que a diferença essencial que há
entre elas está em a beleza repousar nas formas espaciais e temporais dos objetos
Arte Comentada Capítulo 14 175
(portanto, no que é limitado no espaço e no tempo), enquanto o sublime repousa na
ilimitação. No que se refere ao juízo de gosto, para Kant, repousa num sentimento de
prazer ou de desprazer, sendo subjetivo. Porém, não está ligado ao belo, feio, agradável,
aos interesses pessoal, intelectual ou moral. Ele é um sentimento desinteressado. “O
desinteresse permite compreender a estranha pretensão à universalidade do juízo do
gosto” (Talon-Hugon 2009, p.49).
Porém, nem sempre as artes foram concebidas tendo a intensão e o consumo
puramenteestéticosedesinteressados,massim,visandoosrituais.Comaemancipação
do artista em relação às corporações, estes dão início a autonomização do domínio
artístico e estético. A partir de então, surge à necessidade do “ter” algo que se exprima
a beleza, seja na arquitetura, na pintura, nos ornamentos, enfim, tudo o que possa
seduzir e atrair a atenção alheia.
Ao mesmo tempo em que uma parte das artes emancipava-se do domínio burguês,
das encomendas aristocráticas e da igreja para criar de forma livre e independente,
também de forma econômica das leis de mercado, surge uma arte comercial voltada
para o lucro.
Tudo opõe esses dois universos da arte: sua estética, seu público, bem como sua
relação com o econômico. A era moderna se mudou na oposição radical entre
a arte e o comercial, a cultura e a indústria, arte e diversão, o puro e o impuro,
o autêntico e o kitsch, arte de elite e a cultura de massa, as vanguardas e as
instituições. Um sistema de dois modos antagonistas de produção, de circulação e
de consagração, que se desenvolveu essencialmente apenas nos limites do mundo
ocidental. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 21)
	 Mesmo com a deficiência de criar um estilo próprio, a modernidade industrial
não se absteve de uma nova maneira de estetizar em massa, forma essa, trazida
pela indústria cultural e pela transformação da grande distribuição. Importante
reconhecer que, segundo Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015), foram antes às
lógicas industriais e mercantis, e não a esfera da arte propriamente dita, que tornaram
possível o processo de estatização de massa. Com o advento das artes de massa e
das estéticas mercantis que o cinema, a fotografia, a publicidade, a música gravada,
o design, as lojas de departamentos, a moda, os produtos cosméticos, desencadeou-
se pela primeira vez uma dinâmica de produção e de consumo estético na escala da
maioria.
Para os autores aqui citados, atualmente assiste-se a um fenômeno geral de
estetização do mundo, paraTalon-Hugon, dizer que o mundo se estetizou é, em primeiro
lugar, dizer que se tornou belo “do corpo dos indivíduos estabelecido pelos cosméticos,
dos centros de fitness e da cirurgia estética”, também quando envolvem as cidades
e os espaços “as cidades, cujos centros são objetos de renovações cuidadas, sendo
as rotundas entregues os paisagistas e a construção de novos programas grandes
nomes da arquitetura, por toda a parte se manifesta preocupação da aparência” (Talon-
Hugon 2009, p.100). Para ela a estetização do mundo é também uma estetização dos
olhares e das atitudes, a estética aqui sugerida não qualifica somente os objetos, mas,
Arte Comentada Capítulo 14 176
também qualquer coisa no sujeito (uma atitude, uma atenção, um olhar, um juízo,
caracterizados pela distância, pelo desinteresse, pela ligeireza, pela gratuidade, pelo
cuidado com aparência). Lipovetsky e Serroy sustentam a ideia de que uma quarta
fase de estetização do mundo se instalou, além do que Talon-Hugon cita, os autores
dizem que esta é remodelada no essencial por lógicas de mercantilização e de
individualização extremas, um mundo transestético.
A partir daí, a preocupação com que tantos autores e artistas estejam a cada dia
produzindo mais obras personalizadas, onde os estilos são múltiplos, assim como as
tendências, os espetáculos, os locais de arte, a moda, o imaginário e as emoções. Um
exemplo de obra realizada nesse momento transestético em que estamos vivendo é
Latitudes (2013), um trabalho nacional realizado pelo diretor Felipe Braga no ano de
2013 e que ganhou o prêmio de melhor série para televisão da Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA 2013). A obra é do gênero drama e narra o romance entre
Olivia e José. Ela, executiva de moda, moderna e ativa. Ele, fotógrafo, comedido e
romântico. Ambos viajam muito a trabalho e numa dessas viagens eles se conhecem e
começam um relacionamento. Embora queiram estar juntos, discutem durante toda a
trama sobre as consequências de abrir mão de suas vidas pessoais e profissionais para
isso. É um projeto transmidiático, considerando alguns de seus elementos narrativos
como integrantes de um conjunto de estratégias adotadas visando à constituição de
um universo narrativo que se desdobra em diversas plataformas (televisão, internet e
cinema) e diferentes formatos (série de televisão, websérie e filme). Segundo Jenkins
(2009), as ideias comuns expressas pelo termo transmidialidade incluem o fluxo de
conteúdos através de várias plataformas, a cooperação entre as múltiplas indústrias
midiáticas, a busca de novas estruturas de financiamento que recaiam sobre os
interstícios entre antigas e novas mídias e comportamento migratório da audiência,
que vai a quase qualquer lugar em busca das experiências de entretenimento que
deseja.
Estamos num momento em que nunca se produziu tanta informação e, tampouco
tivemos tamanha dificuldade em dar conta desse volume imenso de conteúdo, gerando
um movimento contrário entre a riqueza de informação e a pobreza da atenção pelo
fato de que, o público vai buscar apenas aquilo que lhe interessa, surgindo então, o
desafio para quem produz e uma vasta opção para quem consome.
3 | 		A ESTÉTICA DOS MEIOS – DO PRAZER DESINTERESSADO A ESTETIZAÇÃO
DO MUNDO
A pouco mais de um século, o cinema se tornou parte integrante de nossas vidas,
preenchendo nossos momentos de lazer e o imaginário. Os filmes nos proporcionam
experiências e sensações variadas. “Isso não acontece por acaso. Filmes são
concebidos para ter certos efeitos sobre seus espectadores” (Bordwell, Thompson
Arte Comentada Capítulo 14 177
2013, p.29, grifo do autor), como o apego aos personagens, à identificação pessoal
com a narrativa, à descoberta de novos lugares dentre outros. Uma das hipóteses
desse estudo é que essas experiências e sensações não ficam represadas nas
salas de cinemas, elas permeiam por outros meios e ambientes, aumentando as
oportunidades de experimentações. Tais possibilidades também não estão restritas
apenas a narrativa do filme, mas, a forma, os meios e as tecnologias envolvidas são
partes importantes do processo para se contar uma história.
O objetivo principal da teoria do cinema é verificar as suas proposições ou algum
aspecto dele e em vezes é incorporado à questão estética e muitas são as obras
teóricas que ligam as duas vertentes. Para Jacques Aumont (2012, p.14) “esses dois
termos não abrangem os mesmos campos e é útil distingui-los”. Para o autor, à medida
que uma obra está sujeita a múltiplas abordagens, não cabe apenas uma única teoria,
mas sim, algumas que correspondam a cada uma dessas abordagens. A estética do
cinema acaba sendo um desses braços de pesquisa, o qual se dedica ao “estudo do
cinema como arte, o estudo dos filmes como mensagens artísticas” (Aumont et al.
2012, p.15). A estética do cinema está diretamente ligada à questão do gosto, do belo,
e depende da estética geral que trabalha filosoficamente o conjunto das artes.
A estética do cinema apresenta dois aspectos: uma vertente geral, que considera
o efeito estético próprio do cinema, e uma vertente específica, centrada na análise
de obras particulares: é a análise dos filmes ou a crítica no sentido pleno do termo,
tal como é utilizado em artes plásticas ou musicologia. (AUMONT et al., 2012, p.16)
A estética baseada nos princípios kantianos, como já citado anteriormente,
busca explicar o nosso interesse por determinados objetos e experiências, onde esse
aspecto afetivo não é puramente governado por causalidades físicas, mas explica-se
pelo princípio do prazer que sentimos ao apreciar o “belo” ou aquilo que para Kant é
uma “objetividade sem objetivo” (Andrew, 1989, p.31). Uma apreciação desinteressada
e sem a intenção de ganho explica a existência da transcendência.
	 Ao aplicar tais conceitos ao cinema Munsterberg não aceitou que ele fosse
considerado uma arte menor que as outras que ele apreciava e estudava.
Os que afirmam ser este um mero derivado da arte do teatro ignoram o fato de que,
quando vemos uma fotografia da pintura renascentista, desejamos ver o original e,
desse modo, não ficamos realmente satisfeitos com o objeto em frente a nós; mas
quando vemos um bom filme ficamos satisfeitos e não consideramos um teatro
deslocado. Nossas mentes são invadidas por esse objeto na tela e são afastadas
de todos os outros compromissos. O filme então desliza para a sua conclusão
moldado de tal forma que se mantém longe do mundo real e nos mantém no que
tem sido chamado de estado de “atenção extasiada”. Em vez de tentar usar tal
filme, ou mesmo compreende-lo, ficamos contentes por percebê-lo em si mesmo,
isolado de todo o resto valioso por si só. Esta é a resposta de Munsterberg ao
objetivo final do cinema. (ANDREW, 1989, p. 32)
Para Munsterberg o cinema não era apenas uma representação da realidade,
embora essa também possa ser uma opção do diretor em retratar uma figura ou
paisagem real, mas para o estudioso, essa não é a capacidade estética total do filme,
Arte Comentada Capítulo 14 178
mas de estimular nosso interesse pela experiência que o filme apresentou. Assim, nem
todos os filmes, segundo a visão de Munsterberg, conseguem ser objetos estéticos,
o que para tal eles devem seguir a ordem advinda dos preceitos kantianos de tempo,
espaço e causalidade. O filme, para o autor, é diferente do sonho, mas também como
ele totalmente mental. O que os difere é que o filme dispensa a energia envolvida nas
fantasias e emoções geradas durante o sonho. Apenas apreciamos, nos extasiamos
e ao sairmos do cinema nossas vidas cotidianas retomam o rumo natural do qual
fazemos parte.
Mitry, grande estudioso do cinema, além de produtor e historiador, percebe o
cinema como um gerador de experiências e que nos traz um universo paralelo a nossa
realidade, a possibilidade de experimentar a visão do outro.
O processo estético do cinema compartilha uma profunda realidade psicológica
e satisfaz nosso desejo de entender o mundo e uns aos outros de um modo
poderoso, mas necessariamente parcial. A estética do cinema baseia-se em sua
verdade e necessidade psicológica. E assim o cinema é a maior das artes, pois vai
ao encontro dessa necessidade, mostrando-nos o processo de transformação, o
mundo artístico humanizado. No cinema, os seres humanos dizem uns aos outros
o que a realidade significa para eles, mas o fazem através da própria realidade, a
qual cerca o seu mundo como um oceano. (Andrew, 1989, p. 209)
O cinema continua desde a década de trinta com a mesma essência, de ser uma
arte de massa que é realizado por grandes conglomerados, mas dominado ainda pela
produção americana. Certamente é um exemplo de dispositivo voltado para o consumo
estético-emocional que a era industrial instaurou. Visto pelo ângulo comercial, logo
em suas primeiras décadas, o cinema ganha codificações a fim de determinar as
estratégias de produção em larga escala de obras ficcionais. Os gêneros são definidos
para que os filmes sejam facilmente identificados pelo grande público. Os estúdios
se organizam contratando diretores versáteis capazes de passar facilmente de um
gênero para outro e com curtos prazos pré-determinados como uma verdadeira linha
de montagem. Também o Star-system contribuiu na construção da arte comercial do
cinema, sendo o artista totalmente controlado pelo estúdio em que fosse contratado
tendo sua imagem montada para gerar lucro. Era um produto estético transformada
em imagem sublime.
Criações artificiais, as estrelas femininas clássicas sempre estão elegantemente
vestidas, penteadas e maquiadas de forma estudada, oferecem uma imagem de
perfeição ideal da feminilidade associada ao glamour, ao sexy, ao luxo, a opulência.
Como diz Dyer, “a imagem geral da estrela pode ser vista como uma versão do
sonho americano, organizado em torno dos temas do consumo, do sucesso e da
banalidade”. Inventam-lhe um nome, se o dela não convém; inventam-lhe também
uma vida privada e uma existência romanesca capazes de fazer sonhar, tiram até
sua voz, dublando-a como no caso de Rita Hayworth, cuja voz a Columbia acha
“sugestiva demais”. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 204)
As primeiras exibições do cinema eram feitas em locais precários, tão populares
quanto um circo ou um bar. Ganhou notoriedade ao ser desenvolvido por grandes
nomes da literatura e do teatro, surgindo o Film d’Art. O fato de ser uma arte dirigida
Arte Comentada Capítulo 14 179
ao grande público não o impediu de ter ambições estéticas, retratando em absoluto
todas as correntes artísticas. Assim como, “a dimensão estética da sétima arte tem, no
entanto, a particularidade de não se reduzir a um cinema de autores, criadores elitistas
cuja obra seria reservada a um público restrito, único capaz de alcança-la intelectual e
culturalmente” (Lipovetsky, Serroy 2015, p. 200).
Hoje, bem menos democratizado, o cinema restringe-se ao que economicamente
o alcance do público possibilita. Este tipo de cultura está cada vez mais restrito as
classes mais favorecidas. Assistir um filme nas atuais salas de exibições é uma
verdadeira experiência estética desde o momento em que a cadeira reclina a ponto
de deitar-se dentro da sala escura. Ajeitar-se aos óculos 3D já é um ato natural e
quando as luzes se apagam, as cadeiras movimentam-se conforme a ação do filme.
Em muitas salas existem até mesmo garçons que servem bebida e jantar ali mesmo.
Para finalizar tamanha aventura é necessário fotografar e postar tudo na rede social.
O autor de Latitudes, Felipe Braga divulgou em entrevistas e no próprio canal
da obra no Youtube que a sua intensão quando pensou em desenvolver esse projeto
era poder possibilitar as pessoas uma maneira democrática de consumir. Aqueles que
não conseguiriam pagar ingressos poderiam assistir ao conteúdo de maneira gratuita
na internet, assim como muitas obras estão disponíveis nessa plataforma. Vale aqui
ressaltar então, que as diferenças estéticas de consumo entre as plataformas estão
nas experiências que elas nos proporcionam. Isso explica porque o autor buscou
desenvolver uma obra que contemplasse mais de uma opção para o grande público.
Afinal, o cinema há muitos anos, deixou de ser a única mídia a explorar as narrativas
ficcionais. Com a televisão, o cinema precisou se reinventar, e buscar novas fontes de
inspiração. Inclusive, as duas mídias precisaram se unir para fortalecerem-se, assim
também como outras também o fizeram. Arlindo Machado (2007) ao refletir sobre como
as pessoas, hoje, relacionam-se com “as imagens técnicas1
” pela convivência diária
com a televisão e outros meios eletrônicos, exemplifica como os filmes em vídeos
cassetes (ou hoje em CDs, Blu Ray, internet e etc) se parecem com os livros, onde,
o espectador faz a leitura solitária, no horário mais apropriado, iniciando e parando a
leitura conforme o seu tempo.
No Brasil, o modo que as pessoas encontraram para definir sua fisionomia
midiática2
foi, principalmente, pelas imagens vistas pelas telas da televisão, que,
segundo Jesús Martín-Barbero e Germán Rey (2001) “falam de nós e para nós e
onde nós poderíamos nos ver, como em um movimento especular.” E completam, “o
laço é fundamental, faz com que nos sintamos uma só nação, um só povo” (Barbero,
Rey 2001, p. 114). Sugerem também que “a televisão constitui um âmbito decisivo do
1 “As imagens técnicas, ou seja, as representações icônicas mediadas por aparelhos, não podem cor-
responder a qualquer duplicação inocente do mundo, porque entre elas e o mundo se interpõem trans-
dutores abstratos, os conceitos da formalização científica que informam o funcionamento de máquinas
semióticas tais como a câmera fotográfica e o computador” (MACHADO 1997, p. 03).
2 Conjunto das características distintivas e particulares voltados ao consumo midiático.
Arte Comentada Capítulo 14 180
reconhecimento sociocultural e que a melhor demonstração dos cruzamentos entre
memórias e formato, entre lógicas de globalização e dinâmicas culturais é constituída
pela telenovela” (Barbero, Rey 2001, p. 114). Esse gênero televisivo está presente nas
telas brasileiras desde os anos 60 e cativou o público, que se acostumou com a ficção
serializada.
Esta não é apenas uma tendência cultural nacional, mas sim, mundial. Visto a
quantidade de produções ficcionais serializadas em todo o globo e que a cada dia mais,
esse número aumenta, tornando improvável para uma pesquisa acadêmica quantificar
precisamente o número de produções. Em Latitudes, para as duas plataformas
(internet e TV) a obra foi serializada. Para manter um vínculo forte com o público, algo
característico do meio televisivo, o autor incluiu o making off nos capítulos que foram
exibidos no canal de televisão TNT, mostrando os ensaios, a passagem de texto dos
atores, discussões com o diretor o que trouxe para a obra uma linguagem própria
dessa plataforma, diferenciando-a dos outro meios (internet e cinema). Ao contrário do
cinema onde a narrativa artística pode fluir em muitas vertentes, “a televisão comercial
é predominantemente regida pela estética do realismo representacional” (Kellner
2001, p. 301).
Dentre os muitos eventos que estão ocorrendo no campo do audiovisual, há
duas grandes tendências que podem resumir o panorama do ambiente comunicativo
atual, segundo Rogério Covaleski (2015), a primeira delas é que, com a convergência
midiática e a evolução das relações de consumo, passou o cinema de mídia de massa
para a segmentada, até chegar - com a interatividade - a uma mídia praticamente
personalizada; a segunda tendência é a de se evitar a interrupção do conteúdo editorial
e/ ou artístico que a publicidade, evidentemente, gera com seus breaks comerciais
e anúncios. Pode-se supor que a publicidade instituiu o hábito da interrupção;
especializou-se em interromper o conteúdo para despertar a atenção do público. Esse
mesmo público enquanto não dispunha de como reagir a estas interrupções, aceitou-
as de maneira passiva, cândida. Mas com o aparecimento do controle remoto do
digital vídeo recorder e do ad-skipping, a tecnologia criou possibilidades que antes
o público não possuía: evitar aí a interrupção; controlar ou interferir parcialmente no
conteúdo.
Alguns teóricos como Douglas Kellner (2001) consideram a televisão como
um instrumento de entretenimento subordinada aos códigos narrativos e da história
contada, onde o público se reconhece e se diverte com histórias contextualmente
simplistas. Argumenta também que essa “pobreza estética do meio provavelmente foi
responsável pelo desprezo com que tem sido ele tratado pelos teóricos eruditos e pela
sua designação como um vasto “ermo intelectual” por parte daqueles que tem outros
gostos e valores estéticos” (Kellner, 2001, p. 301). Embora, seja perceptível a mudança
de foco da televisão atual, ela está se adaptando às mudanças comportamentais do
público, mais exigente em relação ao consumo de conteúdo devido a maior número
de opções de mídias, tem se especializado para não perder audiência, que em outros
Arte Comentada Capítulo 14 181
tempos era absoluta e para Gilles Lipovtzky e Jean Serroy (2015) os momentos de
tédio e a decepção frequente diante da televisão por algum motivo não nos impedem
de abandonar a mania de assisti-la.
Os consumidores das sociedades desenvolvidas consagram em média 40% a 50%
de seu tempo livre – ou seja, três horas por dia na Europa – à televisão, apesar de às
vezes obterem com isso, conforme eles mesmos dizem, menos satisfação do que
com sua atividade profissional . Como se sabe, a escuta da televisão é flutuante
e distraída, acompanhada de mudanças frequentes de canal e, além do mais ela
proporciona uma sensação de “perda de tempo” e vacuidade. Os consumidores
zapeiam, denunciam a nulidade a estupidez dos programas, mas somente 23%
dos franceses declaram que a televisão não lhes faria falta se fossem privados
dela. (LIPOVETSKY, SERROY 2015, p. 381)
	 Esse é o retrato da sociedade contemporânea que induzida por uma rotina
frenética, dedicam seu tempo livre para atividade que não lhes agregam valor e não lhes
trazem satisfação. Ao analisarem o capitalismo na sociedade atual, Gilles Lipovetsky
e Jean Serroy (2015), levantaram as questões referentes aos novos comportamentos
sociais frente às várias opções de consumo. Sejam referentes à arte, moda ou mídias,
as pessoas estão cada vez mais exigentes em relação à aparência das coisas. A
beleza, o estilo e o design se tornam estratégias importantes para as marcas na
diferenciação dos produtos.
	 Os autores conceituam o que chamam de “sociedade de hiperconsumo”, onde
as pessoas não são mais passivas diante das mercadorias, mas sim coprodutoras
daquilo que consomem. Não diferente acontece com as novas tecnologias de
informação e da comunicação. O consumidor compra seus produtos pela internet,
instala e faz manutenção através de links e tutoriais. É o triunfo do capitalismo artista
que lança continuamente modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho,
o imaginário, as emoções. Um universo de superabundância ou de inflação estética
se molda diante de nossos olhos. Temos o mundo “transestético” uma espécie de
hiperarte, em que se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e
da vida comum.	 Está cada vez mais presente de forma online nas redes sociais,
são intercambiáveis entre os internautas, desenvolvendo assim, segundo Lipovetsky
e Serroy (2015, p. 373), um “uso estético do virtual digital”.
Graças às novas tecnologias, a experiência estética tende a se infiltrar em todos
os momentos da vida cotidiana: ouve-se música em todos os lugares e em todas
as situações e pode-se assistir a filmes em quase toda parte, no trem, no avião,
no carro. Nunca o público teve tanto acesso a tantos estilos musicais, a tantas
imagens, espetáculos e músicas. No tempo da internet, dos DVDS, da música
digitalizada, o consumo cultural se emancipou de seus antigos rituais sociais, das
formas de programação coletiva e até de qualquer limite espaço temporal: ele
ocorre sob demanda, num supermercado cultural proliferante, hipertrófico, quase
ilimitado. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 373)
A tecnologia digital traz a possibilidade dos espectadores produzirem conteúdos
para circular nas redes e não necessitar de mecanismos de mediação como à época
da exibição original. Um fenômeno novo que atualmente movimenta os acessos ao site
Arte Comentada Capítulo 14 182
do Youtube, são os famosos canais dos youtubers, esses competem diretamente com
a televisão, fazendo migrar a audiência, principalmente do público jovem. Eles partem
do princípio do “faça você mesmo”, ou seja, conquistam o público com seus próprios
conteúdos. Essa liberdade gera afinidade entre quem produz e quem assiste, muito
mais que isso, uma fidelidade, criando assim novos astros. Muitos desses personagens
recebem convites de trabalho para atuarem fora da internet, como, participação em
filmes para o cinema como personagens ou como dubladores, campanhas publicitárias,
presença em eventos e outros, tornando a atividade rentável financeiramente.
	 Seguindo esta tendência, a websérie Latitudes deu início ao projeto, com um
tom de inovação, pois, procurou seguir as características da plataforma digital, com
episódios curtos, diálogos emoldurados em sequências de cenas rápidas. Além de
estar totalmente disponível na web num canal próprio no site do Youtube, onde seu
público pode fazer comentários e assistir quantas vezes quiserem. Essas ferramentas
capacitam os indivíduos ao arquivo, à apropriação e recirculação do conteúdo das
mídias, mudando as suas relações com os meios. Henry Jenkins (2009) destaca
que, “se os antigos consumidores eram previsíveis e ficavam onde mandavam que
ficassem; os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma declinante
lealdade a redes ou a meios de comunicação” (Jenkins 2009, p. 47).
4 | 	CONCLUSÃO
O objetivo deste estudo foi de verificar os fenômenos estéticos que perpassam
pelos três meios de comunicação de massa, cinema, televisão e internet, que não
constituem mais mundos periféricos de arte, mas sim, estão integrados nos universos
de produção, de comunicação e de comercialização, o que Jenkis (2009) conceitua
como convergência das mídias.
Ao pensar o atual cenário de produção artística, dominado pelo capitalismo
gerador de tendências e estilos, onde tudo o que envolve essa área transforma-se
em grandes projetos feitos em larga escala, como enfatiza Lipovetsky e Serroy (2015,
p. 27) a arte está passando por um momento de “desdefinição” que para os autores
implica numa forma inédita de experiência estética, num universo de superabundância
e inflação estética, um mundo “transestético” (idem) em que a arte se infiltra nas
indústrias, virando uma necessidade de consumo e que já não pode estar fora da
vida das pessoas. Um exemplo citado foi à obra brasileira transmidiática Latitudes
desenvolvida dessa maneira para que atingisse um público maior, o que acarreta
numa leitura estética diferente conforme a sua plataforma. No cinema, quando traz ao
expectador um momento insuperável da felicidade da evasão. Aquele momento em
que se volta a uma realidade que se faz flutuar, que extasia e remete ao sonho sem
precisar sonhar. E que hoje, altamente estetizado no quesito comercial, proporciona
uma experiência surreal momentânea.
Arte Comentada Capítulo 14 183
	 Na televisão, aparato indispensável como que fosse um membro do corpo
humano, ou como um integrante da família que já faz parte da rotina escutá-la mesmo
que sem querer. Ligada, muitas vezes não interfere no ambiente, mas se desligada
parece provocar um imenso vazio. A dependência desse equipamento faz girar um
universo sociocultural, seja através da aproximação que faz com a realidade por meio
da identificação do público com as imagens, ou, seja pela imposição estética que ela
proporciona pelas suas obras ficcionais.
	 E na internet, já incorporada na rotina das pessoas, liberta o público à partir do
momento em que não se faz necessário a submissão aos padrões culturais dispostos
pela indústria. Pode-se acessar a conteúdos nos momentos oportunos, podendo
transformar expectadores em produtores, atores, participantes e realizadores.
REFERÊNCIAS
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Editor Ltda, 1989.
AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 2012.
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Vento, 2015.
FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três críticas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
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KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre 	 o
modernismo e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
LATITUDES FILME. Los Bragas House. BR, 24/05/2013. 81mins. <https://www.youtube.com/
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São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Estratégias de transmidiação na ficção televisiva
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________________________________. Ficção televisiva e identidade cultural da nação. Alceu
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STAM, Robert; SHOHAT, Ella. “Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos ‘pós’”. In RAMOS,
Fernão Pessoa (org,). Teoria contemporânea do cinema I. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2005.
p. 393-424.
TALON-HUGON, Carole. A estética: história e teorias. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2009.
Arte Comentada Capítulo 15 184
CAPÍTULO 15
IMAGEM E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DA
MEMÓRIA A PARTIR DO ARQUIVO DO FOTÓGRAFO
PROFISSIONAL
Thiago Guimarães Azevedo
Professor Auxiliar III do curso de Design
da Universidade do Estado do Pará em
Paragominas, Doutorando em Artes pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA,
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Artes pela UFPA, MBA em Marketing pela UNAMA
e Bacharel em Design pela UEPA. Pesquisa
atualmente a relação imagem e memória,
fotografia e poética do imaginário amazônico pela
fotografia.
azevedo_thiago@yahoo.com.br
RESUMO: Apresente pesquisa nasce a partir da
dissertação de mestrado em artes desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em Artes da
UFPA e tinha como foco a compreensão de
como funciona a relação arte e memória no
aplicativo Instagram, em virtude da identificação
da mudança do suporte da imagem, do campo
concreto o álbum para o virtual, da imagem
postada. A partir disso chegou-se a proposta
atual que visa buscar essa relação entre imagem
e memória através dos profissionais que atuam
com fotografia em Belém do Pará, pois este
grupo se dedica a efetivar o registro de diversos
grupos sociais em seus ritos coletivos como
casamentos, festas de aniversário, formaturas,
entre outros. Dessa forma, suas memórias
sobre esses grupos estão efetivadas a partir dos
recortes realizados por meio das imagens que
estabelecem entre a memória do profissional e
a memória coletiva do grupo. Outro aspecto que
marca o fotografo profissional como um marco
significativo de estudo, pois, o arquivo segundo
Derrida é um elemento de poder, visto que este
profissional é detentor do material que será
disponibilizado para realização de memórias
coletivas. A fotografia pode ser entendida como
a relação entre a Experiência de Mundo e a
Experiência Vivida, levando em conta que a
primeira tem relação com aspectos sociais e
culturais, ou seja, podendo se relacionar com a
memória coletiva e a segunda tem a ver com as
percepções do indivíduo no mundo, que podem
ser entendidas como as memórias do indivíduo
em torno da imagem retratada. No caso da
pesquisa, pode-se pensar que o primeiro tem
relação com o grupo social retratado e da
experiência do Fotógrafo Profissional com esse
grupo e o segundo com as subjetividades do
próprio profissional. A presente pesquisa tem
como abordagem a Fenomenologia. Segundo
Masini (2000) a pesquisa com abordagem
Fenomenológica possui caráter no homem
enquanto animal racional que garante a ele
sua identidade. Ou seja, vê no indivíduo sua
importância na forma como ele racionaliza o
mundo vivido, ou seja, “propõe um retorno a
essa totalidade do mundo vivido”.
PALAVRAS-CHAVE: Fotografia, Imagem,
Memória, Profissional de Fotografia, Memória
Arte Comentada Capítulo 15 185
Coletiva.
1 | 	INTRODUÇÃO
Essa pesquisa nasce a partir da dissertação de mestrado em artes desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA e tinha como foco a compreensão
de como funciona a relação imagem e memória no aplicativo Instagram, em virtude da
identificação da mudança do suporte da imagem, do campo concreto o álbum para a
galeria virtual.
Durante a pesquisa na efetivação do recorte do campo, foi tomado o blog do
aplicativo1
como parâmetro para seleção dos atores sociais que seriam pesquisados.
Ao efetuar a seleção, fui desenvolvendo uma tessitura de profissionais que atuam com
a imagem como designers, artistas e fotógrafos.
Esses últimos relataram durante a pesquisa seu envolvimento com a fotografia
seja como técnica, ou como espectadores da imagem, pôde-se perceber que esses
profissionais possuem dois tipos de relação com a memória por meio da imagem,
deles como indivíduos retratados e de como aqueles que retratam.
A partir disso chegou-se a proposta atual que visa buscar essa relação entre
imagem e memória através dos profissionais que atuam com fotografia em Belém
do Pará, pois este grupo se dedica a efetivar o registro de diversos grupos sociais
em seus ritos coletivos como casamentos, festas de aniversário, formaturas, entre
outros. Dessa forma, suas memórias sobre esses grupos estão efetivadas a partir
dos recortes realizados por meio das imagens que estabelecem entre a memória do
profissional e a memória coletiva do grupo.
2 | 	O MUNDO SOCIAL E A FOTOGRAFIA
O mundo social é marcado pela presença das imagens, estas que nos cercam
e nos fazem interpretar o mundo, ou seja, damos a elas significados diversos e a
usamos como linguagem ou para descrevê-lo e tornar nossas percepções tangíveis,
ou para ilustrar fatos ocorridos na relação com o texto escrito. Nesse ponto a fotografia
faz parte da vida como elemento que registra o momento, ao mesmo tempo em que
se dimensiona para além de suas bordas na construção de memórias. Para Dubois
(1993, p. 30)
O papel da fotografia é conservar o traço do passado ou auxiliar as ciências em seu
esforço para uma melhor apreensão da realidade do mundo. Em outras palavras, na
ideologia estética de sua época, Baudelaire recoloca com clareza a fotografia em
seu lugar: ela é um auxiliar (um “servidor”) da memória, uma simples testemunha
do que foi.
1 Ver em blog.instagram.com/
Arte Comentada Capítulo 15 186
A fotografia pode ser entendida como a relação entre a Experiência de Mundo
e a Experiência Vivida2
, levando em conta que a primeira tem relação com aspectos
sociais e culturais, ou seja, podendo se relacionar com a memória coletiva e a segunda
tem a ver com as percepções do indivíduo no mundo, que podem ser entendidas como
as memórias do indivíduo em torno da imagem retratada. No caso da pesquisa, pode-
se pensar que o primeiro tem relação com o grupo social retratado e da experiência do
Fotógrafo Profissional com esse grupo e o segundo com as subjetividades do próprio
profissional.
Nesse diálogo em Benjamin (1994) vemos o contato entre dois extremos: da
técnica do fotógrafo que efetua o registro e eterniza a memória de forma poética por
meio da estética da imagem e do observador que
[...] sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha
do acaso, do aqui e agora com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar
o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há
muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo olhando para trás.
(BENJAMIN, 1994, p. 94)
Nesse sentido, o olhar que retrata ou é retratado no momento não é o mesmo que
contempla, visto que nesse processo, há o que está além da imagem, seu contexto,
suas micro-histórias3
que estão no entorno da imagem e que servirão de mecanismos
motores para rememoração sob forma de imagens-lembranças4
.
3 | 	A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE IMAGEM E MEMÓRIA
Essa relação é importante ser estudada em virtude de primeiramente observar
esse movimento da memória que tem a imagem como elemento mediador, nesse caso,
ela tem sido vista sob a perspectiva do observador, ou seja, daquele que vivencia o
momento que é retratado. Todavia, quem retrata é ao mesmo tempo um agente ativo,
pois registra o momento, por outro lado, no ato de rememorar é colocado como agente
passivo, pois não participa da verdade material5
, tornando esse indivíduo, um rastro de
memória, entretanto, ele também possui suas memórias sobre o que há dentro e fora
da imagem captada.
Assim, analisar a imagem do ponto de vista da memória do arquivo é importante,
pois Derrida (2001) aponta primeiramente o conceito de arquivo como começo e
comando, pois exerce um processo de ordenamento da memória, no caso do Fotógrafo,
a imagem impressa representa o princípio físico, ou material do arquivo que inicia e
dá comando ao processo de rememoração dos fatos, ao mesmo tempo em que esse
profissional como detentor da imagem, exerce poder sobre a memória, visto que ele é
possuidor do recorte tempo/espaço na imagem, então, ele estabelece a ordem social
2 Ver em Benjamin (1994)
3 Ver em Bensa (1998)
4 Ver em Bergson (2006)
5 Ver em Derrida (2001)
Arte Comentada Capítulo 15 187
da memória dos indivíduos retratados.
Outro ponto significativo nessa perspectiva da imagem como mediadora do
processo de memória é o que aponta Bergson (2006), visto que ela representa um
mecanismo motor que ativa o movimento da Memória Espontânea, que segundo o
autor, representa aquilo que está presente, mas adormecido e que através desses
mecanismos é ativado e se manifesta através de imagens-lembranças.
Nesse sentido, o em relação a esses dois universos (do produtor de imagens e
observado) observa-se que o que os diferencia é o olhar, com isso, em Barthes (2011)
encontramos a definição de dois tipos de olhares, o studium e punctum. Para o studium
o olhar é estabelecido pelo todo, de forma generalizada, sem observar detalhes, com
isso, é um tipo de imagem que se olha, mas não há um relacionamento emocional
com ela, no sentido de que ela lhe traga algo de significativo. Diferente do punctum,
que é explicada pela analogia da ferida, ou seja, uma fotografia que fere através de
aspectos particularizados, esse tipo de imagem prende seu Spectator através de
aspectos perceptivos, como se este se sentisse mortificado pela imagem, não pelo
todo, mas por detalhes particulares, na linguagem que tratamos aqui, o Spectator do
punctum em Barthes (2011) é o que chamamos de observador, no mesmo sentido na
linguagem fenomenológica de Merleau-Ponty (1999), o studium está no campo da
percepção enquanto que o punctum está no campo dos sentidos.
Essa compreensão da imagem studium está no entendimento de Barthes (2011),
na ordem do gosto/não gosto, like/I don’t, ou seja, o observador não é estimulado a
desenvolver uma relação emocional com a imagem, pois é “um meio-desejo, um meio-
querer; é a mesma espécie de interesse vago, uniforme, irresponsável, que temos por
pessoas, espetáculos, roupas, livros que consideramos ‘distintos’”. (BARTHES, 2011,
p. 37)
A compreensão do que foi levantado por Barthes em relação ao campo proposto
da pesquisa é compreender essa dimensão de interação e interesse envolvido com a
imagem tanto do produtor, quanto do observador. Isso influencia diretamente na forma
como essa memória será construída a partir do arquivo.
É importante também sob o aspecto de ao conciliar os pontos de vistas sobre
esse arquivo, tanto do Fotógrafo quanto dos grupos retratados, podemos encontrar
estruturas da memória a partir da imagem, que atuam num diálogo entre a memória
dos indivíduos (Experiência de vida/Erlebins) e da memória coletiva (Experiência de
mundo/Erfahrung)6
e com isso, compreender como esses dois grupos ordenam esse
diálogo entre a verdade material e verdade histórica a partir dessas imagens.
6 Erlebins tem relação com as experiências individuais, estas não compartilhadas, diferente de Er-
fahrung que tem relação com o ato coletivo de relatar as experiências vividas, estas são sociais. Ver
em Benjamin (1994)
Arte Comentada Capítulo 15 188
4 | 	O QUE É A IMAGEM
Em Belting (2005) a imagem é um processo simbólico, pois tem relação com
a memória e se relaciona entre o visual e o mental. Em Eliade (1979) a existência
humana e marcada por símbolos e estes marcada por imagens, dessa forma pode-se
dizer que nossa sociedade é da imagem.
Aumont (1993, p.78) afirma que nenhuma imagem é gratuita, pois as imagens tem
cunho individual ou coletivo e coloca que uma das razões essenciais para produção de
imagens “provém da vinculação da imagem em geral com o domínio do simbólico, o
que faz com que ela esteja em situação de mediação entre o espectador e a realidade”.
Para o autor a imagem possui três valores:
a.	 Valor de representação
b.	 Valor simbólico
c.	 Valor de signo
Nesse processo de construção da imagem há a relação entre espectador que a
constrói, entretanto também é construído pela imagem nesse sentido “o espectador
consiste antes de tudo em trata-lo como parceiro ativo da imagem, emocional e
cognitivamente”. (AUMONT, 1993, p. 81).
A partir desse ponto da relação entre espectador e imagem, há a visão que
segundo Català-Domènech (2011) extrapola a dimensão biológica do olho, mas
está na relação que o corpo possui com a realidade, dessa forma, as experiências
dimensionam a forma como construímos as imagens sobre o mundo que nos cerca,
com isso: “Perceber, ser receptor ou usuário de uma imagem, significa em primeiro
lugar iniciar um jogo entre a identidade social e a identidade individual” (CATALÀ-
DOMÈNECH, 2011, p. 19).
Diferente de Aumont (1993), Català-Domènech (2011, p. 23) aponta como função
da imagem:
a.	 Informativa (a imagem constata uma presença);
b.	 Comunicativa (a imagem estabelece uma relação direta com o espectador
ou usuário);
c.	 Reflexiva (a imagem propõe ideias);
d.	 Emocional (a imagem cria emoções).
Essas funções estruturam a forma como a cultura organiza sua percepção em
torno dela. Nesse sentido, a fotografia representa a forma concreta de relacionar
essas funções e valores da imagem para a cultura. Para Barthes (2011) a fotografia é
o campo da representação, não apenas da imagem que quer representar algo, mas
dos sujeitos que querem ser vistos, pois
A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí
Arte Comentada Capítulo 15 189
se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que
eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me
julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte. (Barthes, 2011, p. 23).
Dessa forma, a imagem existente na fotografia, dialogando com o Català-
Domènech (2011) está no campo da construção da imagem enquanto discurso cultural,
pois, ela faz parte dos imaginários construídos pela cultura, então o ato de fotografar
está no âmbito de efetuar o registro desses ritos que marcam a sociedade, entretanto,
esses eventos representados estão no campo da representação segundo Barthes
(2011), há por trás da imagem, outras imagens que extrapolam a representação e
desnudam os grupos sociais. Sobre isso Dubois (1993, p. 38) citando Rudolf Arnhein
afirma:
Arnheim propõe uma enumeração sintética das diferenças aparentes que a imagem
apresenta com relação ao real: em primeiro lugar, a fotografia oferece ao mundo
uma imagem determinada ao mesmo tempo pelo ângulo de visão escolhido, por
sua distância do objeto e pelo enquadramento; em seguida, reduz, por um lado,
a tridimensionalidade do objeto a uma imagem bidimensional e, por outro, todo o
campo das variações cromáticas a um contraste branco e preto; finalmente isola
um ponto preciso do espaço-tempo e é puramente visual (às vezes sonora no caso
do cinema falado), excluindo qualquer outra sensação olfativa ou tátil.
5 | 	A IMAGEM ENQUANTO MEMÓRIA
Nesse ponto, a imagem como campo perceptivo, estimula o movimento de
memória, ao mesmo tempo em que a fotografia representa o ato concreto que estimula
esse movimento, pois para Yates (2007) enfatiza a partir de Aristóteles que há dois
princípios que estimulam a “arte da memória”: a associação e a ordem.
Ricoeur (2007) pontua esse movimento em dois sentidos, do hábito e da
memória, ele afirma que a memória está ligada ao passado e o hábito ligado à vivência
com o presente. Em ambos os casos o tempo é o que ordena esses dois elementos.
Nesse sentido o ato de descrever auxilia no processo de classificar e ordenar as
experiências em relação ao tempo, com isso, a fotografia seria a forma visual de criar
esse ordenamento da memória.
A imagem enquanto mecanismo motor para ativação da memória é dividida em
duasoutrasmemórias(memóriahábitoememóriaespontânea)segundoBergson(2006,
p. 88), “a primeira registra, por meio de imagens-lembranças, todos os acontecimentos
de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum
detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data”.
A memória não atua somente no campo do individual, mas de acordo com o
Halbwachs (1990) apresenta uma construção social e coletiva, visto que nunca
estamos sozinhos no mundo e as testemunhas dos acontecimentos que nos cercam,
ajudam a construir nossas memórias que ele chama de “memória coletiva”.
Nesse caso, ao contemplar uma imagem, não há somente o indivíduo que lembra,
mas o grupo que faz parte da representação, além dessa coletividade, há também
Arte Comentada Capítulo 15 190
quem está por trás da objetiva, no caso o fotógrafo profissional que efetua o registro.
Esse processo do registro do fotógrafo há a construção do arquivo que na
perspectiva de Derrida (2001) representa um ordenamento da memória, nesse aspecto
a imagem a partir dos arquivos dos fotógrafos profissionais que atuam em Belém,
representa esse ordenamento da memória, que estabelece vínculos com o tempo e
espaço do acontecimento.
Esse ordenamento, por parte do fotógrafo é o poder que ele possui em estruturar
a memória, definir aquilo que pode ou não ser lembrado, visto que ele é proprietário do
material registrado, ou seja, com isso há nele o controle das suas memórias através
da imagem e daqueles que irão rememorar o acontecimento a partir do arquivo do
fotógrafo.
Nesse ponto, o arquivo é mais que um elemento físico que auxilia no processo
de lembrança, mas seguindo o que Derrida (2001) aponta, é o mecanismo motor que
auxilia no ordenamento da memória e a fotografia representa esse movimento que
a memória faz para relacionar o que Bergson (2006) fala entre a memória hábito e
memória espontânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse artigo, procurou-se estabelecer um diálogo teórico sobre os elementos
que darão subsídios para se efetivar pesquisas em torno dessa relação da memória
tendo a imagem como mediadora, ou seja, como esse mecanismo motor que ativa
transformando a memória espontânea em memória hábito de acordo com que trata
Bergson (2006).
Assim, pensar a memória não somente por meio dos grupos sociais que
vivenciam o momento, mas através daqueles que registram é significativo, pois estes
personagens fazem parte da construção da tessitura da memória coletiva em um outro
tipo de contexto.
A partir disso, a imagem se torna mediadora da memória no sentido de se colocar
entre aquele que olha e o que é olhado, pois, o registro do momento depende da
percepção e do olhar desse profissional, com isso, ele possui poder sobre o que
será revelado, assim, esse fotógrafo não é um mero profissional contratado, mas um
interlocutor narrativo do momento a ser registrado.
E através de sua lente, a história dos grupos sociais é contada sob o ponto de
vista não apenas de quem vivenciou o momento, mas também de quem o registrou,
nesse sentido, esse profissional deixa de ser um agente passivo da história e passa
ter voz ativa na construção dessas memórias coletivas.
REFERÊNCIAS
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Arte Comentada Capítulo 15 191
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. In: Revista Concinnitas n. 8. Rio de Janeiro,
2005, p. 65-78.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENSA, Alban. Da micro-história a uma antropologia crítica. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de
Escalas: A experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. P. 39-76.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
CAMPOS, S.M.C.T.L. A imagem como método de pesquisa antropológica: um ensaio de
Antropologia Visual. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 6:275-286, 1996.
Disponível em <http://www.periodicos.usp.br/revmae/article/viewFile/109274/107772>. Acesso em 24
de agosto de 2016.
CATALÀ-DOMÈNECH, Josep M. A forma do real. São Paulo: Summus, 2011.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas-SP: Papirus, 1993.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
ELIADE, Mircea. Imagem e símbolo. Lisboa: Artes e Letras/Arcádia, 1979.
FAZENDA, Ivani (org) Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2000.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LAKATOS, Eva Maria. Metodologia científica. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1991
MARCONI, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica.
São Paulo: Atlas, 2003.
MASINI, Elcie F. Salzano. Enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In
MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999
MOREIRA, Daniel Augusto. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira, 2002.
RICOEUR, Paulo. A memória, a história, o esquecimento. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2007.
YATES, Frances. A arte da memória. São Paulo: Editora Unicamp, 2007.
Arte Comentada Capítulo 16 192
CAPÍTULO 16
OS PIONEIROS DA FOTOGRAFIA EM PONTA
GROSSA: UMA ANÁLISE DO JORNAL O PROGRESSO
E CASA DA MEMÓRIA
Tais Maria Ferreira
Faculdades Santa Amélia e Universidade Estadual
de Ponta Grossa
Ponta Grossa, Paraná
Carlos Alberto de Souza
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Ponta Grossa, Paraná
RESUMO: A proposta deste trabalho foi
identificar os profissionais que iniciaram
atividades fotográficas na cidade de Ponta
Grossa. A pesquisa foi desenvolvida tendo
como recorte temporal o período de 1895
a 1920. A investigação foi desenvolvida por
meio de análise de documentos públicos
e de edições do jornal O Progresso (1907-
1912), arquivos disponibilizados pela Casa
da Memória. A metodologia envolveu também
pesquisa bibliográfica. Observa-se que os
profissionais, alguns anônimos, contribuíram
com seus registros para evidenciar o início da
fotografia na cidade e marcaram o surgimento
das primeiras empresas de fotografia, levando
às novas gerações imagens que revelam
aspectos históricos do município. Uma das
evidências da pesquisa é que nesse período as
fotografias eram utilizadas de forma publicitária,
demonstrando que os jornais já trabalhavam
com anúncios para se autofinanciar.
PALAVRAS-CHAVES:Documentos,Fotografia,
Ponta Grossa.
ABSTRACT: The purpose of this study was
to identify the professionals who started
photographic activities in the city of Ponta
Grossa. The research was developed with
the temporal cut from 1895 to 1920. The
investigation was developed through analysis
of public documents and editions of the
newspaper O Progresso (1907-1912), archives
made available by the House of Memory.
The methodology also involved bibliographic
research. It is observed that the professionals,
some anonymous, contributed with their records
to evidence the beginning of the photography in
the city and marked the appearance of the first
companies of photography, taking to the new
generations images that reveal historical aspects
of the municipality. One of the evidences of the
research is that in this period the photographs
were used in advertising, demonstrating that the
newspapers already worked with ads to be self-
financing.
KEYWORDS: Documents, Photography, Ponta
Grossa.
1 | 	INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se propôs a fazer um
levantamento dos primeiros fotógrafos de Ponta
Arte Comentada Capítulo 16 193
Grossa a partir de uma análise no acervo da Casa da Memória e em edições do Jornal
O Progresso, que circulou no Município no período de 1907 a 1912. Além de apontar
para o nome daqueles que iniciaram a profissão de fotógrafo, o trabalho relaciona as
contribuições que tais profissionais legaram à cidade e ao desenvolvimento do campo
fotográfico na região dos Campos Gerais. Com a indicação das primeiras empresas
na área da fotografia.
O trabalho envolveu uma pesquisa bibliográfica e documental, arquivos
imagéticos digitais, disponibilizados pela Casa da Memória do Paraná, de Ponta
Grossa, que possui um grande acervo para pesquisa. Porém, os registros sobre
fotografia e seus autores encontram-se fragmentados. A intenção não é desenvolver
um estudo aprofundado sobre estes personagens e pioneiros da fotografia em Ponta
Grossa. Parte da história desses fotógrafos foi pesquisada no período de 1895-1920,
por meio de suas publicações, “obras” arquivadas na Casa da Memória.
Pode-se evidenciar a importância de seus registros fotográficos, pois foram eles
que, ao congelar um momento no passado, possibilitam um resgate histórico das
transformações da sociedade, da cultura e da história no final do século XIX e começo
do século XX, quando ainda se experimentava, em várias partes do país, o uso da
fotografia.
Na pesquisa, identifica-se imagens que são importantes historicamente para
Ponta Grossa, como é o caso da fotografia, produzida por Frederico Lange, que retrata,
em 1905, o Hotel Palermo, onde atualmente funciona o QG do Exército, localizado ao
lado do histórico prédio da Pró-reitoria de Extensão da UEPG. Aquela área central,
sempre valorizada, abriga hoje a Igreja Matriz Catedral de Sant’Ana. Ele também é
o responsável por fotos que retrataram as obras da Estrada de Ferro da cidade, que
ajudaram no desenvolvimento do Município, atraindo para a região fazendeiros, e,
posteriormente, empresas e grandes indústrias. Hoje, Ponta Grossa é reconhecida por
seu parque industrial.
O primeiro profissional a publicar anúncios no Jornal O Progresso foi Miguel
Herdace. Ele aproveitava o espaço da imprensa para anunciar seus trabalhos e sua
empresa na área da fotografia, procurando atrair com esta estratégia a clientela de
Ponta Grossa.
Outra imagem que tem peso histórico para a memória da cidade, revelando estilo
de vida e comportamento, é de autoria Edmundo Canto. Um de todos trabalhos dele,
que se encontra na Casa da Memória, mostra dois carros antigos, seus proprietários
trajando Paletó, botas e chapéus - no ano de 1915-, o que evidencia o retrato de uma
época do Brasil e seus costumes.
2 | 	FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: O VALOR HISTÓRICO DA IMAGEM
Registrar por meio de pesquisa, o início da fotografia em Ponta Grossa, têm
importância para a memória e história da cidade.Afotografia, como já observaram vários
Arte Comentada Capítulo 16 194
pesquisadores como, por exemplo, Kossoy (2001, p.28), é “um intrigante documento
visual, cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de
emoções”. A fotografia e os fotógrafos contribuem, com seus registros, para a história
e para a sociedade, mostrando o passado e as transformações no meio social. Suas
imagens possibilitam pistas para contar histórias de um tempo passado. Ele enfatiza
que “toda fotografia é um resíduo da história.” (KOSSOY, 2001, p. 47).
Veiga (2006, p. 17) salienta que a imagem transforma “em imortal uma história,
uma pessoa, a singeleza de um gesto ou de um momento”. Outro que defende o valor
da fotografia é Straube (2012, p. 5). Ele define que “a fotografia registra um precioso
momento que só o fotógrafo poderá sentir, dentro de sua sensibilidade ótica”. Lima
(1989, p. 39) observa que o fotógrafo trabalha “com o que vai desaparecer, pois nada,
nada mesmo, se repete”.
Sobre a importância da máquina e do ato fotográfico, convém neste momento
atentar para o que diz Straube:
O artista da máquina fotográfica era, sem dúvida, um privilegiado. Privilegiado
por ter captado cenas que hoje nos remetem ao passado, permitem reconhecer
familiares e pessoas já falecidas, acontecimentos alegres e tristes, contar enfim a
história de um momento e por terem, às suas expensas, trazidos até nós nostálgicos
momentos (STRAUBE, 2012, p. 5).
É impossível voltar no tempo. Mas, graças ao desenvolvimento da máquina
fotográfica e de outros dispositivos de gravação de imagens, consegue-se entender
o passado. Hoje se compreende ou se tem pistas de como viveram os homens
das cavernas e de outras civilizações, por causa , por exemplo, de suas pinturas. Os
fatos e as imagens acompanham a história da humanidade em diferentes cenários
e contextos. Neste estudo, a pesquisa foi ao encontro de registros dos pioneiros da
fotografia (1895-1920) em Ponta Grossa, procurando destacar o seu trabalho e suas
atividades em favor da história da cidade em seus vários aspectos.
Trata-se de um tempo em que os fotógrafos não se preocupavam em assinar
suas imagens. Muitas fotos disponíveis na Casa da Memória são anônimas, o que
dificultou a pesquisa, que tinha como propósito revelar os primeiros profissionais da
área na cidade, atividades e empresas no ramo. Essa preocupação com o crédito da
imagem só começa a ser forte com a profissionalização do jornalismo. A partir do uso
mais frequente da fotografia em jornais e da profissionalização do fotógrafo, é que é
que isso começou a ser exigido.
Verificou-se que as informações pessoais e profissionais dos fotógrafos da
época nem sempre eram registradas, mas os conteúdos de suas imagens continuam
tendo valor histórico. De acordo com Straube (2012, p.5), tudo que passou pela retina
daquele que soube reconhecer um instante mágico, permitiu “eternizá-lo”.
Percebeu-se que poucos profissionais tiveram a percepção a respeito do cuidado
com a fotografia e seus registros, fato comprovado no trabalho. Além de revelar alguns
nomes importantes da fotografia de Ponta Grossa, a pesquisa mostra que muito de
Arte Comentada Capítulo 16 195
suas imagens fazem referência a Ponta Grossa de antigamente, suas ruas, prédios,
praças, monumentos e o cotidiano.
Na análise de O Progresso, verificou-se que as empresas fotográficas da cidade
fazem anúncios no jornal para divulgar seus produtos. Entre elas, Thomen&Bianchi,
Photographia, Atelier Photographico A Flamula&Irmão. Miguel Herdace (O
PROGRESSO, 1909, p. 2), proprietário de Photographia, foi o primeiro fotógrafo a
anunciar neste jornal. Posteriormente, surgiram publicidades do estabelecimento
Thommen & Bianchi (O PROGRESSO, dez. 1909,) sendo um dos proprietários Luis
Bianchi, que foi um dos grandes fotógrafos da cidade, responsável pela cobertura de
solenidades sociais, políticas e outros eventos da cidade. Bianchi ainda não atuava
com fotografia, fato que veio acontecer logo em seguida. Thommen&Bianchi era uma
empresa de Secos&Molhados
Outra figura importante da área fotográfica, que também aparece no Progresso,
foi Alfredo Flamuler. Ele, igualmente, utilizou o espaço no jornal para apresentar
seu trabalho. Era o proprietário do Atelier Photographico A Flamula & Irmão (O
PROGRESSO, 1910, p.2). A atividade fotográfica na cidade neste período foi baseada
em álbuns de famílias e retratos, além de coberturas no trabalho, atividades de lazer,
fotos cotidianas, acompanhando o dia-a-dia da cidade.
3 | 	UMA CIDADE DENOMINADA PONTA GROSSA
Ponta Grossa, fundada em 15 de setembro de 1823, segundo Fernandes (2003,
p. 63) “pode crescer e prosperar”. A cidade dona de um grande entroncamento
rodoferroviário, conforme Oliveira afirma, também já foi nominada de Casa de Telha,
Estrela, Ponta Grossa, Pitangui. Pela lei nº 309, de 05 de abril de 1872, retornou ao
nome atual - Ponta Grossa (OLIVEIRA, 1988, p.02 e 03).
Os anos passaram e Ponta Grossa acompanhava os padrões de modernidade
de cada época. Suas ruas centrais ganharam calçamentos, iluminação elétrica, entre
outras melhorias para atender à população crescente e os visitantes vindos de diversas
localidades do estado, do país e até do exterior. As comunicações tornam-se mais
ágeis com o uso do telégrafo e do telefone. Os automóveis passaram a dividir espaços
com carroções e charretes. As fábricas surgiram com as suas chaminés esfumaçantes.
Seus operários, colonos russo-alemães e viajantes, compuseram um novo quadro com
personagens que chegaram para contribuir com este cenário emergente (MIKAELLI,
2008, p.3).
Na virada do ano de 1900, Ponta Grossa tinha 8.335 habitantes, mais que o
dobro de duas décadas anteriores. Seu crescimento populacional esteve relacionado
à chegada da ferrovia em 1894. “Este crescimento estimula a abertura de pequenas
e médias empresas e a integração à economia nacional” (BUCHOLDZ, 2007, p.20).
Hábitos requintaram-se e a cidade se movimentou em meio a cafés, casas
Arte Comentada Capítulo 16 196
comerciais desfilando seus produtos, hotéis, cine-teatros, bailes, praças arborizadas,
clubes sociais, espetáculos esportivos. Surgiram seus símbolos de poder como
Prefeitura, Catedral, Fórum, Cadeia. Espaços que estavam localizados no centro
da cidade foram ocupados por segmentos da elite que notoriamente controlavam a
política e a economia do município (BUCHOLDZ, 2007, p.65-66).
Uns identificados e citados, outros anônimos. Chaves (2009, p. 28) definiu esses
personagens, registrando que a cidade “se constrói exatamente a partir da ação dos
homens que a ocuparam e que lhe deram vida e sentido”. Foram as pessoas que
diuturnamente, com seus trabalhos, costumes e ações fizeram a cidade prosperar e
progredir, deixando um legado para o futuro. Assim foi a contribuição dos profissionais
dafotografia.Queaoregistrar,acompanharosacontecimentoseevoluçãodomunicípio,
com suas lentes, possibilitaram que a cidade de outrora pudesse ser conhecida e
pesquisada atualmente.
3.1	O JORNAL O PROGRESSO
Parte da contribuição desses profissionais, como já foi explicado, encontra-se na
Casa da Memória e nas publicidades do Jornal O Progresso, que revelavam o comércio
fotográfico crescente na cidade. A escolha pelo jornal O Progresso se justifica pelo fato
do mesmo ter sido utilizado para a divulgação dos nomes de fotógrafos no período
pesquisado. Os meios impressos de comunicação tinham e têm um papel social e
documental importante na sociedade. Além disso, o jornal foi um dos documentos mais
representativo de preservação da memória da cidade, daquela época. São os seus
registros do cotidiano que possibilitam compreender o passado. Pontes (2006, p.12)
observa que O Progresso, fundado em 1907, teve por objetivo “ divulgar e impulsionar
o avanço material e intelectual da cidade”.
Na busca por informações sobre a imprensa ponta-grossense, o estudo deparou-
se com nomes de jornais que circularam pelo município. São periódicos registrados
em livros que tiveram “vida efêmera”. O primeiro jornal registrado foi “O Precursor”
que surgiu, em 1892; posteriormente, no ano de 1893 e 1900, o Jornal “Campos
Gerais”; em 1898, o “Jornal Clube Pontagrossense” e “Gazeta dos Campos”; em 1903,
“O Ponta Grossa”, “Jubileu Operário”, “Luz Essenia” e “O Pigmeu”; e em 1904, “O
Ridor” e “O Commercio”; 1907, chega “O Progresso”. (CARDOSO, 1969, p. 216 a
219). Bucholdz (2007, p. 24) explica que os jornais não possuíam uma periodicidade.
Surgiam e desapareciam rapidamente. Havia muitas dificuldades financeiras e em
relação a estrutura, além de contendas políticas para manter um jornal em operação.
Por esta razão, muitos não conseguiram transpor o caráter panfletário. Pontes retrata
um pouco desta situação vivida pelos jornais da época:
O jornal é o lugar em que acontecimentos, regularidades, relacionamentos,
mudanças entram em conflito e, consonância, provocam, registram, interferem. O
jornal é capaz de afetar, incitar, causar ações e reações e ao mesmo tempo, ser
Arte Comentada Capítulo 16 197
afetado por discursos que permanecem em seu limiar e que lhe propõem escolhas
que definirão o resultado de sua produção (PONTES, 2006, p. 17)
Aldo Silva, proprietário do jornal O Commercio, segundo Bucholdz (2007, p.09)
relatou a Jacob a dificuldade em manter seu estabelecimento. Por este motivo, Aldo
ofereceu a um conto de réis a tipografia completa. Este, por sua vez, sendo um homem
empreendedor, vislumbrou a oportunidade. E, somado aos equipamentos, que lhe
rendeu ainda um - funcionário experiente -, João Antunes foi o gráfico do jornal. Com
ajuda de amigos, conseguiu o dinheiro e comprou os maquinários, para então fundar
o seu jornal.
Assim surge O Progresso, que veio a substituir O Commercio. Ele foi criado
em 1907, pelo capitão Jacob Holzmann. Seu processo de produção foi totalmente
manual. Com apenas cinco colunas, sem títulos, sem fotos. Os textos seguiam o estilo
telegráfico, linguagem pessoal e periodicidade semanal. “Ao iniciarmos hoje na afanada
lida jornalística com esse nosso modesto e despretensioso jornal hebdomadário, nesta
cidade inquestionavelmente predestinada a um grandioso futuro [...]” (BUCHOLDZ,
2007, p.21-25).
O crescimento da cidade foi visível. Paralelamente, o jornal em meio a reformas,
seguiu o mesmo rumo. Passou a ser impresso em duas páginas, e três vezes por
semana. Em 1911, Jacob e Hugo dos Reis deixaram o jornal. O novo proprietário
foi Eliseu Campos Mello, também dono da Companhia Tipográfica Pontagrossense
que incorporou O Progresso e o pequeno acervo do Correio dos Campos. Em 14 de
novembro de 1912, nasceu um novo jornal que em 1913 troca de nome, passa a se
chamar O Diário dos Campos, (circulando até 1990, sofre uma interrupção, voltando a
circular em 1999. E que permanece até os dias atuais) seguiu como um jornal diário,
“este era o sonho do antigo dono”, como afirma Bucholdz (2007, p. 30-40).
Muitos foram os temas tratados pelo jornal. A exemplo de saúde, meio ambiente,
recados para familiares, recados por extravios de pertences e documentos, mudança
de endereços. A publicidade também fez parte do periódico. Ao constatar nas páginas
do periódico anúncios sobre a atividade fotográfica em desenvolvimento em Ponta
Grossa. Observou-se que o periódico contribuiu para que essa atividade popularizasse.
Foi possível, com os registros em suas páginas, comprovar a existência de empresas
de fotografia no período da pesquisa e o nome dos profissionais que tocavam a
atividade.
A escolha do Jornal e da Casa da Memória para a investigação deu-se pela
importância desta última em manter intactos arquivos importantes da cidade e do
próprio O Progresso, onde se conseguiu registros sobre a atividade da fotografia e o
nome de alguns profissionais que atuaram na área. Humberto (2000, p. 98), trata do
valor da imagem ao explicar que por meio da fotografia retém-se um “fragmento do
real” o que é fundamental para a melhoria de um lugar.
Muitas imagens fotográficas daquela época foram encontradas na Casa de
Memória, alguns delas sem nenhuma informação sobre seus respectivos fotógrafos.
Arte Comentada Capítulo 16 198
Outros dados foram encontrados em livros de alvarás da Prefeitura, livros de
pagamentos de impostos.
A pesquisa foi iniciada primeiramente pelo jornal O Progresso. Apesar de ter
conhecimento que, neste momento histórico, o mesmo ainda não fazia uso de imagens
fotográficas, por outro lado dispunha de informações sobre a atividade, revelada por
meio de anúncios. Daí foi possível identificar alguns dos profissionais que atuavam na
cidade e que se consagraram na profissão.
Apesar de não ser comum, encontrou-se nas páginas do jornal O Progresso
(1909, p.2) uma foto, retrato preto e branco, formato 3x4 cm, no ano de 1909. Esse
retrato documentava que o “Elixir de Nogueira” do Pharmaceutico Chimico, do senhor
João da Silva Silveira, havia curado José Maria Pereira da Silva. Fato este acontecido
na cidade de Santos, o qual foi noticiado pelo periódico A Tribuna de Santos, de 1907.
Acredita-se ser a primeira foto publicada pelo O Progresso. Este fato chamou muito
a atenção. A fotografia e o jornal foram usados para dar credibilidade a cura e ao
remédio. Ao mesmo tempo revelava que a fotografia teria futuro e importância nos
jornais locais, o que se confirmou nos anos que se seguiram.
4 | 	A FOTOGRAFIA EM PONTA GROSSA
Ao pesquisar as páginas do jornal O Progresso, agora digitalizado pela Casa
da Memória em Ponta Grossa (1909 - 2º semestre, 1910 refeito, 1911 e 1912), na
busca por fotógrafos e fotografias publicadas no jornal, identificou-se fotógrafos,
que utilizaram a publicidade, para se afirmar no comércio de Ponta Grossa. Nessa
investigação, verificou-se nomes como Bianchi, Herdace, Frederico Lange e outros
profissionais que adotaram a fotografia como atividade profissional. Abaixo, procura-
se relacionar alguns deles, conforme arquivos encontrados no Progresso e Casa da
Memória.
4.1	Miguel Herdace, “trabalho o mais lindo e perfeito”
Como mencionado anteriormente, um dos primeiros fotógrafos encontrados nas
páginas do jornal foi Miguel Herdace, em um anúncio publicitário em 12 de junho de
1909, quando o periódico fez referência a sua empresa denominada Photographia.
“Para obter retratos, trabalho o mais lindo e perfeito, physionomia verdadeira, artística.
Em qualquer tamanho até o ponto natural só no Miguel Herdace, Rua Dr. Collares,
Ponta Grossa-Paraná” (O PROGRESSO, 1909, p.2). Herdace seguiu publicando seu
trabalho sozinho até 1910. Em 11 de dezembro de 1909 (O PROGRESSO,1909, p.2)
Herdace passou a dividir espaço no periódico com a empresa Thommen & Bianchi.
Herdace também foi referenciado no Album do Paraná, da época, como o
sobrenome Herdage. O estabelecimento, de sua propriedade e da esposa, Anna
Arte Comentada Capítulo 16 199
Herdage, “exerceu sua difícil e dedica arte por cinco anos (TRINDADE, 1924/1928.).
A empresa funcionava na rua Dr. Collares, nº 01. Foi verificado que o sobrenome
Herdace no periódico e Herdage no Álbum, era a mesma pessoa. Neste trabalho não
se encontrou imagens fotográficas sobre seus feitos.
4.2	 Luis Bianchi, brinquedos, perfumaria, cine e foto
A empresa Thommen & Bianchi foi noticiada no Progresso pela primeira vez
em 11 de dezembro de 1909 (PROGRESSO, 1909. p.2). O anúncio, na página do
jornal, referia-se a um Bazar de Brinquedos. A empresa não se dedicava a fotografia,
mas o nome Bianchi passou a ser de grande relevância na fotografia da cidade até
os dias atuais. E em 05 de julho de 1910, a empresa de Bianchi trocou o nome para
Armarinhos-Brinquedos-perfumarias. Estes dois fotógrafos passaram a disputar os
espaços de anúncio do jornal. Percebeu-se a existência de uma concorrência entre as
duas empresas em relação à ocupação dos espaços publicitários.
Mais tarde, em 06 de outubro, de 1910, a empresa passa a se chamar Bazar
Cinematográfico. Situado na rua 15 de novembro, nº 33, esquina com Augusto Ribas.
Bianchi também emprestou seu nome a um Atelier de Pintura, em que sua esposa era
a proprietária (Atelier de Pintura Bianchi), em 1º de dezembro, 1910 (O PROGRESSO,
p. 2).
Luis Bianchi passou a atuar como fotógrafo na cidade de Ponta Grossa,
oficialmente em 31 de dezembro de 1913, conforme registro em Alvará de número,
714. Seu estabelecimento comercial era situado na Rua Cel. Theodoro Baptista Rozas,
(LIVRO 04, 1911-1914, alvará 714).
Bicudo (2010, p.20) relatou que Bianchi com suas imagens fotográficas retratou
as famílias princesinhas, municípios paranaenses, lojas comerciais, casamentos,
igrejas, praças, ruas, grupos musicais, futebol e outros temas. Seu acervo fotográfico
foi adquirido em 2001 pela prefeitura e é disponibilizado ao público na Casa da
Memória. Por meio de suas imagens e dos demais fotógrafos tornou-se possível
conhecer um pouco da história de Ponta Grossa do começo do século 20. É Bianchi o
maior acervo fotográfico disponível na Casa da Memória. Muitos pesquisadores usam
seus trabalhos para entender o passado e retratar as transformações da cidade. As
informações sobre ele e seus cadernos de anotações demonstraram que Bianchi foi
uma pessoa que se preocupou com seus registros pessoais e imagéticos.
4.3	Atelier Photographico A Flamula & Irmãos
Outro nome importante foi encontrado no jornal, no desenvolvimento da
pesquisa. Trata-se do Atelier Photographico A Flamula & Irmãos, de propriedade
de Alfredo Flamuler, registrado nas páginas do Jornal, em 09 de agosto de 1910 (O
Arte Comentada Capítulo 16 200
PROGRESSSO, 2010, p.02). Neste momento, a disputa pelo espaço publicitário do
periódico é entre o Atelier de pintura Bianchi e A Flamula.
Em 20 de março de 1913, A Flamula & Irmãos foi transferida para o Sr. Edmundo
Canto (LIVRO 04,1911-1914, alvará 656, p. 27). Porém, não foram encontrados
registros sobre as atividades dessa empresa, com a nova administração. Há registros
depagamentodeimpostosdeEdmundoCanto,photographo,em1914(LIVRO53,p.38).
Também foi possível encontrar uma fotografia dele em arquivos da Casa da Memória,
datada de 1915. Nela consta Informação impressa, com a seguinte inscrição “Atalipio
Macedo Pai do Dr. Fulton, Foto A Flamula e Cia”, (FOTOGRAFIA, nº, A.01601.001).
4.4	José Ruhland Photograpia
José Ruhland foi o primeiro fotógrafo a ser identificado em atividade profissional
em Ponta Grossa, janeiro de 1901. Seu estabelecimento denominado de José Ruhlannd
e Companhia, era situado na Rua Quinze de Novembro, (LIVRO 01, 1899/1904, alvará
nº40. p. 10). Porém, não foram encontradas imagens fotográficas deste profissional.
Outra informação encontrada do fotógrafo José Rohland Photographia, foi em 30 de
setembro 1905. Ele havia pago seus impostos à prefeitura, em função das atividades
que exercia no Município (LIVRO 1901, nº45, p.23).
4.5	Frederico Lange de Secos e Molhados à Fotografia
Outra figura importante do mundo fotográfico de Ponta Grossa e que fez história
na cidade foi Rodolfo Carlos Frederico Lange, proprietário de uma empresa de Secos
e Molhados, localizada à Rua 15 de novembro, nº 17. Foi dono do Atelier Fotográfico,
atendendo a clientela nas horas vagas. Fez registros fotográficos importantes das
obras da Estrada de Ferro de Ponta Grossa, produziu muitas fotografias do Paraná,
do Brasil e mesmo do exterior. (LANGE, R, 2012, p. 123-124).
Foram vários os registros fotográficos encontrados com a sua assinatura, a
exemplo da foto do “Hotel Palermo, atual Quartel General do Exército, localizado ao
lado, naquela época, do 1º Correio de Ponta Grossa”, fotografia produzida em 1905.
(FOTOGRAFIA, nº, 008.01.002).
Ao analisar algumas de suas imagens fotográficas, a pesquisa observou que
em muitos momentos é possível contar parte da história da cidade por meio dessas
imagens. Os fotógrafos vivenciaram a construção das primeiras avenidas, prédios da
cidade, monumentos públicos, praças e outros equipamentos municipais. Frederico
Lange também registrou um fato grave, ocorrido Ponta Grossa: a chuva de pedra de 11
de setembro de 1906. (LANGE, 1998, p. 288). A partir dessa imagem, teve-se certeza
que isso aconteceu de fato, o que confirma o valor documental de uma imagem.
Arte Comentada Capítulo 16 201
4.6	 A. Silva e Filhos da Typographia para Fotografia
	 Em um Livro de Alvará, também foi localizado a empresa denominada A. Silva
e Filhos. Uma Oficina Typographica (LIVRO1899/1904. Alvará nº 76, p.27). Aldo Silva
foi proprietário do jornal O Commercio, (LIVRO 1905/46, p. 37-38), situada à Rua
Santana. A empresa foi identificada, pelo pagamento do imposto municipal, como de
Litographia - encadernação, Tipographia; ou fotografia, em 1º de fevereiro de 1905.
Registros dos nomes e datas de muitos desses profissionais não foram
encontrados no periódico ou em bibliografias. Não foi possível encontrar também
relatos desses fotógrafos e de suas obras. Encontrou-se sim algumas imagens que
ora eram descritas manualmente, o local (cidade) em cima da foto ou no verso, mas
raramente o nome do estabelecimento e do profissional eram mencionados.
A exceção foi Holzmann (1966, p. 85- 86) em um relato publicado em seu livro. O
documento mostra as rivalidades entre as bandas Euterpe e Lira da região princesina,
retratadas por ele em 1905. Tratava-se de um flagrante capturado na estação ferroviária
dacidadedeCastro.ForamfotografadososcomponentesdaBandacastrense,Euterpe,
comandada por Benedito Alves Pereira, que estavam muito bem fardados juntamente
com os componentes da Banda Lira dos Campos, ponta-grossense, comandada por
Jacob Holzmann, estes um grupo de paisanos. Os dois mestres, conforme relatos,
também fizeram parte da imagem fotográfica. O autor descreveu o material fotográfico,
“a foto, copiada em cartão postal, foi o veículo de boas-festas pela entrada do ano de
1906, distribuído pelo Beneditinho”. Nada constava sobre o fotógrafo. Isso, reforça
que não se tinha o cuidado e atenção com o autor da fotografia, dando-se destaque
na época só ao conteúdo da imagem. Em outras ocasiões nem isso era mencionado.
5 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a realização deste estudo foi necessário ir a Casa da Memória por diversas
vezes, no período de 2015 e 2016. A pesquisa foi realizada também em documentos
da Prefeitura de Ponta Grossa, bibliografias, periódicos, artigos, sites. Observou que
muitos dos profissionais relacionados neste trabalho deixaram poucos registros sobre
sua atuação no município. Outros continuam anônimos pelo fato de, naquela época,
não se ter preocupação com a autoria das fotos, preocupação que existe nos dias
de hoje. O que se pode afirmar é que, mesmo em fase inicial, a fotografia na cidade
de Ponta Grossa foi importante para a história e memória do Município, revelando o
surgimento de uma nova atividade e, o mais importante, cenas das pessoas, prédios
e o cotidiano.
Se as imagens fotográficas fazem as pessoas pensar, como afirma Humberto
(2000, p. 47), também é verdade que elas são importantes registros que os fotógrafos
levam as gerações futuras. Esses profissionais que iniciaram a fotografia em Ponta
Arte Comentada Capítulo 16 202
Grossa cristalizaram momentos importantes da cidade. Na análise que se fez dos
documentos, em busca das empresas e dos fotógrafos que iniciaram a fotografia
em Ponta Grossa, percebeu-se igualmente a importância da Casa da Memória e do
Jornal o Progresso para o resgate da história da cidade. O registro fotográfico das
ruas e avenidas, das casas comerciais, dos casamentos e festejos, das famílias e do
cotidiano de Ponta Grossa fazem com que se compreenda aspectos da história e do
desenvolvimento da região, ou seja, as raízes do que é hoje Ponta Grossa. Kossoy
(2001, p. 45) faz referência a imagens do passado quando afirma que “as vicissitudes
por que se passou, as mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que
despertou […] são portanto, a fotografia como recorte, o fotógrafo um acréscimo de
interpretação, o fotografado e o observador [...] elementos que simbolicamente ou
não, representaram a ação contida na imagem” e que revelam um tempo. Finaliza-se
a pesquisa com as palavras de Bresson (2004, p. 11) fotografar é por “na mesma linha
da mira cabeça o olho e o coração”.
REFERÊNCIAS
BICUDO, Fabricio. Nos Trilhos e Memórias do Passado. O portal, Ponta Grossa, nº43, p.20, abril,
2010.
BRESSON, Henri Cartier. O imaginário segundo a natureza. Barcelona, Espanha: Editorial Gustavo
Gili, 2004.
BUCHOLDZ, Alessandra Perrinchelli. Diário dos Campos: memórias de um jornal centenário. Ponta
Grossa: UEPG,2007.
CARDOSO, Rosy de Sá, et al. História do Paraná: breves notas sobre a Imprensa do Paraná.
Curitiba: Gráfica Editora Paraná Cultural Ltda. 3ed. 1969.
CHAVES, Niltonci Batista; WOSNIAK, Rosângela Zulian; VEIGA, Zaclis. Visões de Ponta Grossa:
Mosteiro da Ressurreição, 25 anos. Curitiba: edição bilíngue. Pós Escrito, 2006.
CHAVES, Niltonci Batista. História e cidade: cotidiano, cultura e sociabilidade, in. História, Arte e
Cultura. Ponta Grossa: UEPG/NUTEAD,2009. v. II.
FERNANDES, Josué Corrêa. Das colinas do pitangui… Ponta Grossa: Editora Gráfica Planeta Ltda.
2003.
HOLZMANN, Epaminondas. Cinco histórias convergentes. Curitiba: Ed. Curitiba, 1966.
HUMBERTO, Luis. Fotografia, a poética do banal. Brasília Editora Universidade de Brasília: São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado.2000.
KOSSOY, Boris, Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial,2001.
LANGE, Francisco Lothar Paulo. Os Campos Gerais e sua princesa. Curitiba: COPEL, 1998.
LANGE, FREDERICO. Fotografias centenárias do Paraná e de outros locais. Curitiba: Corgraf,
2012.
Arte Comentada Capítulo 16 203
LIMA, Ivan, Fotojornalismo brasileiro: realidade e linguagem. Rio de Janeiro: Fotografia Brasileira,
1989.
MIKAELLI, Aldo. Transformações de uma cidade: Ponta Grossa-185 anos. Ponta Grossa: Editora
Gráfica Planeta Ltda., 2008.
OLIVEIRA, Itacil Ferreira de. Álbum de Ponta Grossa: Gente nossa. Ponta Grossa: 1988. v.3.
O PROGRESSO. Ponta Grossa: João Dutra. 1907-1912. Digitalizado pela Casa da Memória
PONTES, Felipe Simão. Nuances de uma análise histórica do jornalismo: homens, mulheres e
a cidade nas páginas do Diário dos Campos (1910-1923). 2006.217fs. Monografia (Comunicação
Social-Jornalismo). Universidade Estadual de Ponta Grossa, UEPG. 2006.
TRINDADE, J.P. Álbum do Paraná. 1924-1928.
Arte Comentada 204Sobre a Organizadora
SOBRE A ORGANIZADORA
JEANINE MAFRA MIGLIORINI Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (2003) e em Licenciatura em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (2007), Especialista em História,Arte e Cultura
pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Mestre em Gestão do Território pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora do ensino superior na Unicesumar
eprofissionalliberaldaarquitetura.TemexperiêncianaáreadeArquiteturaeUrbanismo,
com ênfase em Projeto de Arquitetura. Explora principalmente os temas: arquitetura
modernista, história da arquitetura, projetos de arquitetura, dança, preservação,
paisagem modernista. Cursando Gastronomia na Unicesumar e pós graduações
em Projeto de Interiores; Docência no Ensino Superior: Tecnologias Educacionais e
Inovação e Design Thinking e Criatividade nas Organizações.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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Arte Comentada

  • 2. Arte Comentada Atena Editora 2019 Jeanine Mafra Migliorini (Organizadora)
  • 3. 2019 by Atena Editora Copyright da Atena Editora Editora Chefe: Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira Diagramação e Edição de Arte: Geraldo Alves e Lorena Prestes Revisão: Os autores Conselho Editorial Prof. Dr. Alan Mario Zuffo – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Álvaro Augusto de Borba Barreto – Universidade Federal de Pelotas Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa Prof. Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Daiane Garabeli Trojan – Universidade Norte do Paraná Prof. Dr. Darllan Collins da Cunha e Silva – Universidade Estadual Paulista Profª Drª Deusilene Souza Vieira Dall’Acqua – Universidade Federal de Rondônia Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Fábio Steiner – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Prof. Dr. Gianfábio Pimentel Franco – Universidade Federal de Santa Maria Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Profª Drª Girlene Santos de Souza – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Profª Drª Ivone Goulart Lopes – Istituto Internazionele delle Figlie de Maria Ausiliatrice Profª Drª Juliane Sant’Ana Bento – Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Julio Candido de Meirelles Junior – Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Jorge González Aguilera – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Profª Drª Lina Maria Gonçalves – Universidade Federal do Tocantins Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Paola Andressa Scortegagna – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão Prof. Dr. Ronilson Freitas de Souza – Universidade do Estado do Pará Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista Prof. Dr. Urandi João Rodrigues Junior – Universidade Federal do Oeste do Pará Prof. Dr. Valdemar Antonio Paffaro Junior – Universidade Federal de Alfenas Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa Prof. Dr. Willian Douglas Guilherme – Universidade Federal do Tocantins Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) A786 Arte comentada [recurso eletrônico] / Organizadora Jeanine Mafra Migliorini. – Ponta Grossa (PR): Atena Editora, 2019. – (Arte Comentada; v.1) Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7247-057-5 DOI 10.22533/at.ed.575191801 1. Arte – Crítica e interpretação. 2. Arte – Filosofia. I. Migliorini, Jeanine Mafra. II. Série. CDD 707 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. 2019 Permitido o download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. www.atenaeditora.com.br
  • 4. APRESENTAÇÃO Arte é um vocábulo carregado de significado, em cima dele existem muitos discursos, ao mesmo tempo que abre leques de possibilidades de entendimento, restringe a compreensão por parte da maioria. Afinal sempre procuramos a resposta certa, fechada, para as questões, e isso não será encontrado na arte. Existem sim conceitos e respostas para ela, mas não um único significado, são caminhos que nos levam a reflexões que enriquecem ainda mais esse discurso. O que é arte? Este é um questionamento que perpassa os séculos e mantêm- se atual, afinal arte é reflexo da sociedade, que está em constante mudança. Arte é resultado da sociedade, e por isso se ressignifica, muda de sentido e de função. Neste momento histórico muitas linguagens artísticas se apresentam como forma de expressão, novas formas de arte que trazem à tona representações, questionamentos, ampliam a abrangência e muitas vezes desmistificam que a arte se volta apenas para uma elite a que ela tem acesso. Outra grande influência na arte é a própria tecnologia, que além de possibilitar novas linguagens auxiliam na propagação da produção artística atual e histórica. O acesso a arte se torna mais possível, e esse conhecimento cria novos artistas, permitindo assim um círculo virtuoso de produção e conhecimento. Apresentam-se aqui discussões acerca da arte nas suas mais variadas linguagens, e sua compreensão: a arte é única e individual, seu entendimento depende do repertório, da vivência de cada um, e esses múltiplos olhares complementam a obra. Discute-se a função social da arte, seu papel como crítica social e o impacto dessa crítica, e apresenta a necessidade de se classificar essas linguagens, como se faz nas ciências exatas. Esse universo amplo permite que se englobem as discussões sobre os sons da cidade, as performances, a dança, as imagens. Percorrendo este caminho chega o momento de o cinema entrar neste debate, além dos movimentos coletivos de arte, finalizando com a imagem, uma vasta discussão sobre suas funções, sua estética, sua função. Tão ampla como a temática deste livro, essa discussão não se encerra, ela busca respostas e novos caminhos de que podem ser seguidos por pesquisadores, curiosos, estudantes. Quem mergulha neste universo em busca de respostas, acaba encontrando mais perguntas. Boa leitura! Trace seus caminhos, suas interpretações, suas impressões, e que elas lhe proporcionem muitas reflexões!
  • 5. SUMÁRIO CAPÍTULO 1.................................................................................................................7 JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO, ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO DO MUNDO. Sandra Makowiecky DOI 10.22533/at.ed.5751918011 CAPÍTULO 2...............................................................................................................20 COLETIVO ANDORINHA: UM ANO DE EXISTÊNCIA, DE RESISTÊNCIA, DE POLÍTICA, DE ARTE, DE EDUCAÇÃO Samara Azevedo de Souza DOI 10.22533/at.ed.5751918012 CAPÍTULO 3...............................................................................................................28 AS ARTISTAS NO INÍCIO DO SÉCULO NO RIO GRANDE DO SUL E A CRÍTICA DE ARTE Ursula Rosa da Silva DOI 10.22533/at.ed.5751918013 CAPÍTULO 4...............................................................................................................29 TANTO FAZ SE É PERFORMANCE OU NÃO Natasha de Albuquerque Maria Beatriz de Medeiros DOI 10.22533/at.ed.5751918014 CAPÍTULO 5...............................................................................................................41 ENTRE JANELAS E PESSOAS: EM BUSCA DE UMA ESCUTA CITADINA Thais Rodrigues Oliveira Sainy Coelho Borges Veloso DOI 10.22533/at.ed.5751918015 CAPÍTULO 6...............................................................................................................55 A ARTE DO CORPO PERFORMÁTICO MEDIADO PELA TELA DO CINEMA DOCUMENTAL: AS FORMAS-FENDAS DO OLHAR NA(DA) DANÇA Cristiane Wosniak DOI 10.22533/at.ed.5751918016 CAPÍTULO 7...............................................................................................................69 MEMÓRIA EM DIÁRIOS DE VIDEOGRAMAS – UM DIÁLOGO ENTRE A RETOMADA DE IMAGENS DE ARQUIVO PROPOSTA POR JONAS MEKAS E HARUN FAROCKI Guilherme Bento de Faria Lima Monica Rodrigues Klemz DOI 10.22533/at.ed.5751918017 CAPÍTULO 8...............................................................................................................80 “SOMBRAS DO PASSADO”: O PERDÃO EM BUSCA PELA VERDADE E RECONCILIAÇÃO Alessandro Galletti Ricardo Vilariço Ferreira Pinto DOI 10.22533/at.ed.5751918018
  • 6. CAPÍTULO 9...............................................................................................................94 DISPOSITIVO E COLETIVOS ARTÍSTICOS: UMA METODOLOGIA DE NARRAR O ENCONTRO Lara Lima Satler Lisandro Magalhães Nogueira DOI 10.22533/at.ed.5751918019 CAPÍTULO 10...........................................................................................................109 PRODUÇÃO DE SENTIDOS E (RE) SIGNIFICAÇÃO NA HISTÓRIA A PARTIR DO MOVIMENTO BLACKFACE Daiany Bonácio Giuliano Mattos Viviane Dias Ennes DOI 10.22533/at.ed.57519180110 CAPÍTULO 11...........................................................................................................125 DA LEMBRANÇA AO SONHO: ANÁLISE FÍLMICA DE “A DANÇA DA REALIDADE”, DE ALEJANDRO JODOROWSKY. Ana Carolina Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.57519180111 CAPÍTULO 12...........................................................................................................134 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ONÍRICO, OU UMA PRIMEIRA IMERSÃO NAS IMAGENS SEM LUZ Carlos de Azambuja Rodrigues DOI 10.22533/at.ed.57519180112 CAPÍTULO 13...........................................................................................................142 IMAGENS SENDO IMAGENS: REFLEXÕES DE UM CAMPO DE LUTA, RESISTÊNCIA E PODER. Patrícia Quitero Rosenzweig Rosa Maria Berardo DOI 10.22533/at.ed.57519180113 CAPÍTULO 14...........................................................................................................158 QUESTÕES ESTÉTICAS DAS MÍDIAS: LATITUDES COMO EXEMPLO TRANSMIDIÁTICO Vanessa de Cassia Witzki Colatusso. DOI 10.22533/at.ed.57519180114 CAPÍTULO 15...........................................................................................................169 IMAGEM E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA A PARTIR DO ARQUIVO DO FOTÓGRAFO PROFISSIONAL Thiago Guimarães Azevedo DOI 10.22533/at.ed.57519180115 CAPÍTULO 16...........................................................................................................177 OS PIONEIROS DA FOTOGRAFIA EM PONTA GROSSA: UMA ANÁLISE DO JORNAL O PROGRESSO E CASA DA MEMÓRIA Tais Maria Ferreira Carlos Alberto de Souza DOI 10.22533/at.ed.57519180116 SOBRE A ORGANIZADORA....................................................................................189
  • 7. Arte Comentada Capítulo 1 7 CAPÍTULO 1 JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO, ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO DO MUNDO1 Sandra Makowiecky Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC Florianópolis – Santa Catarina RESUMO: Em simpósio que se propõe refletir sobre o tema “ Passado – presente: a temporalidade heterogênea na história da arte”, enfatiza-se que a história da arte tem buscado novosmodelosdetemporalidade,poisaimagem do tempo já não condiz com as ideias de origem e linearidade provenientes do historicismo positivista. As imagens não são apenas formas da semelhança com a origem, mas sintomas da dessemelhança e de transformações. Partindo do entendimento do termo “janelas múltiplas”- pontos de vistas diversificados em relação a uma imagem e “imagens-fantasma”, descortinam-se obras a partir do tema “janelas”, almejando um exercício de entender o que obras em geral podem pedir ao olhar. As imagens dialéticas são autenticamente históricas, imagens não arcaicas, que sobrevivem no presente de forma diferente, carregando em si a prova, a latência daquilo que um dia foi. Palavras-chave: “Janelas Múltiplas”, “Imagens- fantasma”, “Temporalidades heterogêneas”. ABSTRACT: In a symposium that proposes to reflect on the theme “Past - present: the heterogeneous temporality in the history of art”, it is emphasized that the history of art has sought new models of temporality, since the image of time no longer matches the ideas of origin and linearity from positivist historicism. Images are not only forms of resemblance to the origin, but also symptoms of dissimilarity and transformations. Based on the understanding of the term “multiple windows” - diverse points of view in relation to an image and “ghost images”, works can be seen from the theme “windows”, aiming at an exercise in understanding what oeuvres in general can ask for the look. Dialectical images are authentically historical, non-archaic images, which survive in the present in a different way, carrying in themselves the proof, the latency of what once was.   KEYWORDS: term “multiple windows”; “ghost images”; “heterogeneous temporality”. 1 | INTRODUÇÃO O simpósio “ Passado – presente: a temporalidade heterogênea na história da arte”, busca pensar a história da arte sob 1( Artigo publicado nos anais do 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Campinas: PUC- Campinas- Anpap 2017, 2017. v. 1. p. 2067-2083).
  • 8. Arte Comentada Capítulo 1 8 a perspectiva de modelos temporais heterogêneos, entendendo que enquanto o passado sobrevive no presente, o presente torna-se atemporal, anacrônico. Partindo desses pressupostos e de dois conceitos principais, a saber, “ janelas múltiplas” e “imagens-fantasma”, o texto buscará estabelecer possíveis constelações. Como diz Didi-Huberman, saber e olhar não tem o mesmo modo de ser, nunca se vê o bastante, sempre há uma integralidade que escapa da obra de arte, sempre resta algo a dizer, fazendo com que a acumulação tranquila daquilo que se conhece ceda seu lugar ao proliferante infinito (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 297 a 346). 2 | JANELAS MÚLTIPLAS Georges Didi-Huberman emprega o termo “Janelas Múltiplas” para descrever a condição do fazer histórico (DIDI-HUBERMAN, 2011a, p. 56), que descortina a possibilidade de hipóteses e considerações sobre o passado como movimento em obras de arte, devido ao transbordamento de referências históricas, artísticas e mitológicas, visando “abarcar o visual e o temporal reunidos na imagem dialética” (DIDI- HUBERMAN, 2011a, p. 21), que forma uma constelação de possibilidades, fazendo que dos detalhes se produzam aparições, permitindo analogias infinitas segundo o olho de quem vê. Borges, no livro “O fazedor” (BORGES, 2008), diz que o escritor é como um ator que encena o texto de um autor outro, de tal modo que o principal “ato” de um texto é repor os textos anteriores que foram decisivos para a existência do seu. Vamos tentar fazer algo assim, considerando que o que veio antes, motiva a escrever agora. Para Stéphane Huchet (2012, p. 11) “a teoria da arte contemporânea não se concebe como uma atividade de predicação de seu objeto, isto é, de busca de definições ou de confirmação das convenções estéticas e metodológicas”, mas pensar por imagens, a partir de relações, principalmente com o passado e presente histórico e artístico. Seguindo o mesmo raciocínio de Huchet, Hubert Damisch, em uma entrevista, afirma que “o objeto teórico é um objeto que provoca outros objetos. É um objeto que não pode ser estudado por si próprio. Para nos aproximarmos dele é necessário referir outros objetos” (apud LEAL, 2007, p. 13). Não há finalidade de usar a teoria como objeto motor de análise e sim o contrário, o objeto é a obra de arte, porém a teoria é aquilo que faz com que a aproximação aos outros objetos se componha. Em entrevista ( MORISAWA, 2012) sobre a 30ª Bienal de SP, o curador Luis Pérez-Oramas afirma que fez uma curadoria baseada em constelações e vínculos, em que partiu do princípio básico no legado moderno, sobre a compreensão dos sistemas simbólicos, de que os signos, as formas simbólicas (e a arte é isso, para além de todas as vanguardas) não têm significado em si mesmos a não ser quando estão relacionados entre si e com outras formas, símbolos, estratégias expressivas. Isso os levou a privilegiar os vínculos, as relações e os fez necessariamente falar de constelações. Citou ainda Deleuze e Guattari, que dizem que se as obras de arte
  • 9. Arte Comentada Capítulo 1 9 produzem sentido por relações, o destino delas é ser constelar, isto é, quando alguém entra em contato com a obra, imediatamente pensa em outra. Ninguém olha para ela sem criar relações. A pretensão deste texto não é criar modelos teóricos para compreender o objeto, mas ser ajudado por uma abordagem de modo a construir uma argumentação, como esboço daquilo que se tornou legível a partir de um detalhe e que será escrito para fazer de um lampejo, uma propagação no contemporâneo. Se uma imagem reúne em si vários tempos heterogêneos, não é possível fazer uma história verdadeira da história das imagens, e por isso, qualquer determinação de significado será uma montagem interpretativa, constituinte de uma memória histórica de um arquivo complexo de um indivíduo. Estas imagens só podem ser vistas quando há um tensionamento entre os indícios que buscamos, de modo a construir tramas quando avistamos os fantasmas que habitam as imagens, partindo da premissa de consciência sobre o uso do anacronismo, evitando cair em uma espécie de relativismo, perigo iminente, onde tudo pode ser e tudo é válido. As imagens, muito antes de serem portadoras de história, foram e continuam sendo portadoras de memória. Interrogando a ideia de que nelas cabem apenas os enquadramentos cronológicos, reconhece seu poder de ultrapassar as molduras de uma época, permitindo novas configurações e proximidades empáticas. (DIDI- HUBERMAN apud ROMERO, 2007) Trata-se de entender a imagem como noção operatória que diz respeito a procedimentos que se metamorfoseiam e persistem na contemporaneidade. É na imagem como noção operatória e não como mero suporte iconográfico, que aparecem as sobrevivências, anacrônicas, atemporais, memórias enterradas e que ressurgem. Para Didi-Huberman, em “ Imagens apesar de tudo” ( 2012, p.131-146), o arquivo é sempre “uma história em construção”, pois a cada nova descoberta aparece nele como uma “brecha na história concebida”, uma singularidade que o investigador vai unir com tudo o que já sabe para possivelmente produzir uma história repensada do acontecimento em questão e deve ser sempre elaborado mediante recortes incessantes, mediante uma montagem cruzada com outros arquivos. 3 | “IMAGENS- FANTASMAS” Podemos dizer que de acordo com Warburg e Didi- Huberman, são aquelas imagens que nos assombram, que nos tiram o chão,  que nos levam a querer entender um pouco mais da arte e de nós mesmos, de nossas pesquisas.  Um leitmotiv imagético (  figura de repetição, no decurso de uma obra literária, de determinado tema, a qual envolve uma significação especial), se for o caso. Nossas imagens fantasmas podem ser nossas ausências que resultam dos entrevistos, dos vistos há muito tempo, dos sugeridos, dos quase perdidos. E que ficam ali, à espera de uma redenção. O ausente nos remete às oportunidades renegadas e às batalhas ainda não travadas. Este artigo investe nas amplas possibilidades da latência, das lacunas. Em La Imagem Mariposa,
  • 10. Arte Comentada Capítulo 1 10 Didi- Huberman (2007), considera os objetos na medida em que se apresentam, mas também pelo que neles se ausenta. Pois aquilo que falta suscita na imaginação uma permanência justamente pelo fato de ter desaparecido e pode então retornar mais uma vez e incessantemente num outro tempo. É esse o fascínio da imagem, cuja fixação passageira de uma aparição se torna reincidente e marca uma temporalidade feita de golpes inesperados e de contragolpes infindáveis. Quando se põe em jogo o não-saber dasimagens,ostemposseconfundemeopassadoirrompenopresente,impregnando-o em cada instante, como numa possessão. Estar sob o domínio das imagens é entregar- se ao fascínio da ausência de tempo, que como nos esclarece Blanchot ( 2011), é “sem presente” e não nos devolve a um passado pura e simplesmente. Ainda que a ação passada sobreviva na lembrança e seja possível invocá-la livremente no agora, o que é “sem presente” não aceita a atualidade de tal lembrança, pois nele nada se afirma, uma vez que tudo está entregue à indeterminação que dilui as fronteiras entre os opostos, fazendo do presente algo inatual, inscrito no ritmo eterno de um retorno ( BLANCHOT, 2011). Como conclui o autor, o que se manifesta nesse tempo “vem como já e sempre passado”. Ao aparecer, a imagem modifica completamente a temporalidade na qual se apresenta, pois seu sempre presente sem presença é inatual, é da ordem do retorno. É sem tempo na medida em que é, mas cuja presença abre o agora ao indeterminado. No tempo do fascínio, estamos submetidos aos poderes da imagem, aos tremores que pela distância nos seduzem e nos deslocam sempre para fora – e sempre dentro desse fora – na oscilação sem fim entre presença e ausência. A esse respeito, nos pergunta Blanchot: o que acontece “quando o que se vê, ainda que à distância, parece tocar-nos mediante um contato empolgante, quando ver é um contato à distância?” Precisamente nessa distância, nos adverte o escritor, ocorre a paixão da imagem. Pelo fascínio, a presença fantasmática da imagem nos possui de tal forma que nosso olhar encontra aquilo que o impede de jamais terminar, como um clarão neutro que não se apaga. Movimento incessante de quem navega das margens ao infinito do impensado, na torrente do imaginário, criando aberturas dentro e fora do espaço da arte ( RODRIGUES, 2016, p. 68). Dizer agora “era uma vez um fantasma, a imagem” significa não desprezar por completo a semelhança e a representação, mas jogar com elas pela diferença que pode ser produzida, pela apresentação da imagem e, sobretudo, pela possibilidade de pensar seus intervalos. “ [...] A imagem é pouca coisa: resto ou fissura. Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.86-7). No texto Quando as imagens tocam o real (2012), Didi- Huberman, atravessando os postulados de Aby Warburg e Walter Benjamin, entre outros, argumenta que a imagem não é um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles – que, como arte da memória, não pode aglutinar.
  • 11. Arte Comentada Capítulo 1 11 4 | AS IMAGENS O que motivou este artigo? Justamente umas imagens vistas no ano de 2007, na Itália e outras em 2014, na França, que remeteram em lembrança, às de 2007. Já se passaram dez anos das primeiras e elas me perseguem, como imagens fantasmas. As primeiras imagens se encontram no monumental Mosteiro de Pavia, a segunda, em Roma, ambas na Itália e as terceiras, em Bourges, na França . Em Pavia, tratam-se de dois cartuxos em vestes brancas pintados em afrescos, pendurados nas janelas a olhar, ao que parece, com serena indiferença os visitantes dentro do templo: um no corredor esquerdo pela segunda bifora ( bifora é um tipo de janela dividida verticalmente em duas partes, característica da arquitetura gótica),ooutronocorredordadireitapelasextabifora. Certosa di Pavia é um mosteiro de Cartuxos, em Pavia, na Lombardia, Itália. Fundado em 1396, este enorme complexo teve os trabalhos interrompidos entre 1402 e 1412 e continuou a renovar-se até 1782. Durante todo esse tempo pode ser constantemente enriquecido constituindo um testemunho histórico da região, como o demonstra a rica ornamentação dos dois claustros, assim como a construção da igreja terminada em 1473, quando se iniciou a decoração da fachada com mármore, o que demorou mais de um século e inúmeras alterações do projeto (Fig. 1a e 1b). A Ordem dos Cartuxos, também chamada de  Ordem de São Bruno, é uma  ordem religiosa  católica  semi- eremítica de clausura monástica e de orientação puramente contemplativa surgida no século XI. É conhecida como aquela que professa maior austeridade no modo de vida dos seus membros e ao longo de toda a sua existência manteve sempre o espírito de pobreza. No presente, os monges cartuxos continuam ainda a prática, com pequenas modificações, de tal austeridade. As imagens dos Cartuchos na pintura mural (figs. 2a, 2b e 3) constituem um trompe-l’oeil , técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão ótica que faz com que formas de duas dimensões aparentem possuir três dimensões. Provém de uma expressão em língua francesa que significa «engana o olho” e é usada principalmente em pintura ou arquitetura. O Trompe-l’oeil pressupõe um tipo particular de interação com o espectador e caracteriza-se como um jogo visual. Podemos ver na imagem dos Cartuchos, formas problematizadas como espetáculo do mundo. O trompe l’oeil se coloca como uma tipologia ou abordagem da pintura caracterizada pela invasão do espaço do espectador, simulando uma verdade documental enfatizada pela fiel representação da realidade. Assim, confundindo o próximo e o distante, o interior e o exterior, o sombrio e o luminoso, a superfície biplanar se torna dotada de carnalidade, constituindo-se numa espécie de espelho que projeta uma hiper-presença palpável da coisa ausente, registro de uma materialidade que se afirma mediante o desfalecimento da realidade e permite pensar o que emerge na sua condição enganosa ( BAUDRILLARD, 1997). Recurso que insiste em afirmar que o olho é traiçoeiro e sua certeza uma fraude, pois exagerando a aparência do real, as coisas são desnudadas de aura, produzindo uma confusão do código visual, em que ocorre a revelação de uma operação enganosa e a persistência do triunfo absoluto da
  • 12. Arte Comentada Capítulo 1 12 ilusão como condição humana. Fig. 1a. Certosa de Pavia. Fundado em 1396. Fig.1b. Certosa de Pavia. Fundado em 1396. Interior da nave central. Fig.2 a. Pintura mural. Nave lateral. Certosa de Pavia. Corredor esquerdo. Afresco Di Borgonone. Fig.2 b Pintura mural. Nave lateral. Certosa de Pavia. Corredor Direito. Afresco Di Borgonone. Fig.3. Pintura mural. Nave lateral. Certosa de Pavia. Afresco Di Borgonone. (1453 – 1523) No âmbito religioso, estas imagens em Trompe-l’oeil, remeteram à outra imagem- fantasma, por acaso, sobre um monge da ordem dos Cartuxos, desta feita, em Roma ( Fig. 4). O interior da primeira porta que dá para o claustro contem uma pintura a óleo dentro da porta em madeira, em trompe l’oeil representando o monge da ordem dos
  • 13. Arte Comentada Capítulo 1 13 Cartuchos, chamado Fercoldo, pai do Papa Clemente IV. Fercoldo, que morreu em 1265, se tornou monge após a morte de sua esposa. A pintura é assinada por Filippo Balbi (1806-1890) e foi realizada em 1855. Na madeira na porta são expostos, em prateleiras, alguns objetos típicos utilizados nas atividades da vida de clausura. Um crânio e um crucifixo, em referência à meditação sobre a morte e reflexão sobre a Paixão de Cristo; a oração do rosário como uma ferramenta, e a vela vapor para simbolizar a ajuda humilde para as orações da noite; a ampulheta, símbolo da passagem do tempo, que em um mosteiro parece estar suspenso; as canetas de pena e tinta, estão listados no quadro de pessoal do cartuxo, como ferramentas essenciais ao trabalho no mosteiro; um instrumento de corda de alto flagelo e um par de óculos de leitura “pince- nez”, que remetem ao arrependimento e à possibilidade de ser leitores e estudiosos cuidadosos; livros, simbolicamente colocado ao lado de alimentos e adequados para a nutrição do espírito e da mente; alimentos, consistindo de pão e vegetais, em uma clara referência à dieta rígida que não inclui o consumo de carne. Fig.4. Pintura em Trompe l`oeil representando um monge da ordem dos cartuchos- “Re- trato do monge Fercoldo” - feita por Filippo Balbi ( 1806-1890), realizada em 1855. Claustro di Michelangelo, da Basílica de Santa Maria degli Angeli – Roma . Estão também presentes, livros pilares do conhecimento religioso: antigo e novo testamento, juntamente com Consuetudini Guigo, ou a regra dos cartuxos; uma cesta cheia de lenha para queimar no fogão a lenha e aquecer os quartos. No interior da porta, vemos Fercoldo que indica o retrato de seu filho, o Papa Clemente IV( realizado por Guy Foucois). Na mão esquerda, Fercoldo segura um papel em que está escrito: “Erudi Filium tuum et te et refrigerabit dabit delicias animae tuae. Provérbio. XXIX. 17. Traduzindo: Discipline seu filho, e você será feliz e você vai adquirir consolações. Provérbios 29:17”. O outro folheto, abaixo da imagem de Clemente IV, conta os dados da história aqui descrita, bem como a data da morte de Fercoldo. Vemos, por fim, uma gata, anfitriã silenciosa que se destaca como uma observadora atenta da cena
  • 14. Arte Comentada Capítulo 1 14 retratada. Seriam os cartuchos tão silenciosos como se diz? E com todos os seus silêncios, continuam ecoando em nós, através dos séculos? Em 2014, em outra viagem, mais imagens - fantasma ( fig.5), esculpidas em uma parede, ao alto, que fizeram relembrar as primeiras imagens. Trata-se do Palácio de Jacques Couer, cidade de Bourges, França, tesoureiro de Carlos VII, construído entre 1443 a 1451, obra prima da arquitetura gótica tardia e um dos mais belos edifícios civis da época. Este edifício nasceu da vontade Jacques Couer de construir uma grant’maison (grande casa) na cidade natal. Prefigura os hôtels particuliers que florirão no Renascimento. Todavia, o tesoureiro de Carlos VII nunca chegou a habitá- lo, pois caiu em desgraça em 1451. O palácio conheceu sortes diversas. Comprado pelo Estado em 1925, foi completamente restaurado. Está classificado com o título de Monumento Histórico desde 1840. Comerciante e banqueiro audacioso, ponte entre Oriente e Ocidente, Jacques Coeur foi o pilar financeiro da unificação da França no reinado de Carlos VII. Filho de um modesto negociante de peles, tornou-se o homem mais rico de França. Financiou Carlos VII ajudando-o a acabar com a Guerra dos Cem Anos. Mudou o olhar sobre o Oriente e viajou através de todo o mundo então conhecido. Com ele, a Europa passou do tempo das Cruzadas ao tempo do comércio. Tal como o seu palácio de Bourges, metade castelo medieval e metade palácio renascentista, ele é uma figura de duas faces: tão familiar dos reis e do papa como das casas modestas. Ao cume da glória sucederam-se a queda, a miséria e a tortura, antes de encontrar de novo a liberdade e a fortuna. Entre as paixões da sua vida, a mais perturbadora foi a que o uniu a Agnès Sorel, a beleza suprema da sua época, modelo dos famosos quadros de Jean Fouquet, o mais proeminente pintor francês e entre eles, destaca- se “ A Virgem e o Menino rodeados de anjos” ( Fig. 8). Agnés, primeira favorita real, faleceu aos vinte e oito anos. Esta relação conduzirá à ruptura de Jacques Couer com Carlos VII e à sua prisão e exílio no Vaticano e no Mediterrâneo, na ilha de Cos. Jacques Couer está representado, ele mesmo, na fachada principal, ao lado esquerdo. Ao lado direito, sua mulher e novamente em efeito de trompe l’oeil. O que fazem na janela? A fachada do lado da rua e a do edifício principal estão lindamente decoradas com o emblema real de Jacques Coeur, juntamente com uma infinidade de esculturas que retratam temas religiosos, as viagens de Jacques Coeur, personagens ou cenas da vida cotidiana. A fachada principal se organiza em duas alas em que domina a porta central de entrada.  Esta entrada, de inegável caráter monumental, é prodiga em homenagens ao rei Carlos VII. O tímpano do vitral apresenta uma flor de lis suportada por dois corações. Abaixo do vitral, um dossel de pedra que acolhia até 1792, uma estátua equestre do rei. Em ambos os lados do dossel, falsas janelas que acolhem retratos escultóricos de Jacques Couer e sua mulher ( fig.6.a,6.b,7.a,7.b). A esquerda do pavilhão de entrada, encontramos uma torre com escada em cuja balaustrada se exibe uma das máximas de seu proprietário: “ Nada é impossível para os corações valentes”. Ainda, na fachada, em detalhes nas balaustradas onde ficam suas figuras, dois de seus emblemas: Uma coquille Saint Jacques e um coração.
  • 15. Arte Comentada Capítulo 1 15 • Fig.5. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, o próprio Jacques Couer e à direita, sua mulher. Fig. 6a. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, Jac- ques Couer. Fig. 6b. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A Direita da fachada, a mu- lher Jacques Coeur, Macée de Léodepart . Fig. 7a. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A esquerda da fachada, Jac- ques Couer. Abaixo da balaustrada, em detalhe, a imagem de um emblema de Jacques Couer: Coquille Saint Jacques. Fig. 7b. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. A Direita da fachada, Ma- cée de Léodepart. Abaixo da balaustrada, em detalhe, a imagem de um dos emblemas de Jacques couer: um coração.
  • 16. Arte Comentada Capítulo 1 16 Fig.8. Jean Fouquet. “A Virgem de Melun” ou “A Virgem com o Menino e os Anjos. Parte direita de um díptico, que foi desmembrado. Madeira. Circa 1450. 93 x 85 cm. Real Museu de Belas Artes, Antuérpia. Em “A virgem com o menino e anjos”, embora se trate de um tema sacro, com a presença de anjos, o modo como o pintor representou a Virgem está carregado de erotismo, ou seja, traslada do divino para a esfera do profano. A Madona tem um seio bem modelado à vista, e sua visão nada tem a ver com o tema, pois o Menino não se encontra amamentando, e o seio foi sempre visto como uma imagem erótica por si só. Contudo, alguns críticos têm para o peito nu uma explicação teológica: Maria mostra o seio aos homens em referência a seu papel de Mãe e de intercessora. A Virgem é uma mulher belíssima, que usa um vestido de seda cinza azulado, entrelaçado de fita no decote, que deixa o ombro e o peito esquerdos a descoberto, usando na cabeça uma larga coroa de ouro com pérolas e pedrarias, e segura um luxuoso manto forrado de arminho. Encontra-se num trono suntuosamente decorado com ouro, pedras preciosas e pérolas, transportado por um grupo de anjos azuis e vermelhos, que preenchem o restante da composição. Ela sustenta no joelho esquerdo o Menino Jesus,  nu e com o mesmo tom de pele da mãe. É interessante notar o contraste irreal que o artista conseguiu, ao usar o azul e o vermelho na feitura dos anjos. Todas as cores usadas são fortes e contrastantes e não existe lógica espacial na composição. Contudo, os detalhes ornamentais usados na coroa e no trono demonstram extrema sensibilidade. Agnès Sorel tinha o estatuto de favorita oficial, o que era uma novidade : os reis de França tinham tido sempre amantes, mas estas deveriam ser discretas. A sua arte de viver e as suas extravagâncias roubaram a atenção que devia ser dada à rainha. Os véus e outras peças de vestuário foram abandonados, e ela inventou os decotes de ombros nus desaprovados pelos crônicos da época, e os seus penteados eram decorados com pirâmides. Para obter estas preciosidades, ela torna-se na melhor cliente de Jacques Couer e usava grandes quantidades de tecidos caros, sendo imitada pelas outras mulheres da corte. A primeira amante oficial de um rei da França morreu com 28 anos de idade, em 1450. A sua morte foi tão súbita que houve logo suspeitas de
  • 17. Arte Comentada Capítulo 1 17 envenenamento. Uma autópsia do seu cadáver revelou em 2004-2005 que um tubo no seu sistema digestivo estava infestado de ascaris e que ela tinha absorvido mercúrio. Foi a ingestão deste metal que acelerou a sua morte. Contudo, as doses de mercúrio observadas são tais (cem mil vezes a dose terapêutica) que é difícil acreditar que tenha sido um erro médico. O envenenamento intencional é então uma hipótese que não se deve descartar. Mas quem são as personagens outras que aparecem na fachada? ( Fig.8 a, 8b). Certamente carregam muitas coisas inapreensíveis para nós. Fig. 9a. Palácio de Jacques Couer. Bourges. Sec. XV. Detalhe da fachada. Fig. 9b. Palácio de Jacques Couer. Detalhe da fachada. Como os monges cartuchos da Certosa de Pavia fizeram chegar emAgnès Sorel? Talvez a filosofia explique: “ [...] O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar, identidade do sair e entrar em si, é a definição mesma do espírito (CHAUÍ, 1988, p.60- 1)”. Neste sequência, de uma observação intrigada dos silenciosos cartuchos que olhavam de cima para o grande teatro do mundo à distancia, cheguei em outro cartucho que também silenciosamente nos relata os objetos que resumem a vida e hábitos no mosteiro de cartuchos, bem como a transmissão de valores de pai para filho. De lá, parte-se para um castelo, símbolo do poder profano. De uma imagem de casal fortemente impregnada na parede para percorrer os séculos e ficar registrada na história, a quem inicialmente se imagina fortemente ligados, descobre-se que na verdade nem habitaram o castelo, que a mulher do dono do castelo, vestida quase como uma freira, está ao lado dele na fachada, que é quase uma peça de marketing, hoje. Quase não se fala no nome dela, Macée de Léodepart, mas todos conhecem a amante. Macée de Léopart era casada com um homem riquíssimo que caiu de amores e em desgraça por uma mulher retratada em muitas obras do principal pintor francês do século XV, que também era amante do rei Carlos VII, rei que tinha no dono do castelo, seu tesoureiro. Descobre-se ainda, em 2005, há apenas 12 anos atrás, que ela foi provavelmente envenenada e por isto, morreu tão jovem. Quem disse que a história da arte não é uma coisa divertida e repleta de surpresas?
  • 18. Arte Comentada Capítulo 1 18 5 | JANELAS MÚLTIPLAS, JANELAS DO OLHO, ESPÍRITO DA ALMA, ESPELHO DO MUNDO: Marilena Chauí (1988), escreveu um texto chamado “Janela da alma, espelho do mundo”, do qual me aproprio dos títulos neste texto. Diz a autora: “ Porém, porque estamos igualmente certos de que a visão se origina lá nas coisas, delas depende, nascendo do ‘teatro do mundo’, as janelas da alma são também espelhos do mundo [...]”.(CHAUÍ, 1988, p.34). Segue dizendo que ver é ter à distância, pois o olhar apalpa as coisas, repousa sobre elas, viaja no meio delas, mas delas não se apropria. É a imaterialidade da operação visual que a torna tão propícia ao espírito. Espelhos, janelas ou faróis, os olhos estão no limite entre a materialidade e a espiritualidade.“ Pois vincular é o ato primordial de cada ser, e a cada ação, a magia, as artes, a memória e a ciência não são senão o poder de fazer vínculos (CHAUÍ, 1988, p.51). Retornamos com Didi – Huberman ( 2013, p.297 a 346), quando nos diz que sempre há uma integralidade que escapa da obra de arte, sempre resta algo a dizer, fazendo com que a acumulação tranquila daquilo que se conhece ceda seu lugar ao proliferante infinito e que sempre existe uma espécie de refugo, um lapso, algo que produz um efeito disjuntivo, que tem a força de uma imagem onírica, quando a figuração é afetada por um acidente soberano. Que acidente seria esse? Porque essas imagens me perseguiram tanto tempo? Estas imagens, esses detalhes, coisas que a princípio pareciam uma coisa, acabaram levando a outras. [...] compreendemos que a história se faz por imagens, mas que essas imagens estão, de fato, carregadas de história. Ela é uma construção discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a repetição e o corte. Enquanto ativação de um procedimento de montagem, toda imagem é um retorno, mas ela já não assinala o retorno do idêntico. Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado (ANTELO, 2004, p. 09-12). As formas do passado, conforme nossa receptividade, podem ser novamente equacionadas como problema. As nossas imagens fantasmas nos levam a caminhos que parecem uma extravagância, têm a aparência de uma insensatez, o visual se torna indeterminado e a figuração interrompe a ordem e as regras em proveito do  inapreensível, produzindo uma  fenda ou rasgadura   do olhar, gerando  uma vibração que produz uma estranha presença e um diferencial perturbador.  Recusando a consecutividade e o linearismo,  faz com que o passado e o presente modifiquem a noção de atualidade. REFERÊNCIAS ANTELO, Raul. Potências da Imagem. Chapecó: Editora Argos, 2004. BAUDRILLARD, Jean. A Arte da desaparição. R.J.: Ed. UFRJ / N-Imagem, 1997. Capítulo I. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011
  • 19. Arte Comentada Capítulo 1 19 BORGES, J.L. O fazedor. São Paulo: Companhia da Letras, 2008. CHAUÍ, Marilena. Janelas da alma, espelhos do mundo. In: NOVAES, Adauto (org). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.31–63. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Edições Graal Ltda., 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011a. ______. Diante da imagem. São Paulo: Ed. 34, 2013, p. 297 a 346 ______. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012, p. 130. ______. La Imagen Mariposa. Barcelona: Mudito & Co, 2007. ______. Quando as imagens tocam o real. Tradução Patrícia Carmello e Vera Casa Nova. Revista Pós: Revista do Programa de Pós Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG. V. 2. N. 4. Nov. 2012. Disponível em http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos/article/view/60, acesso em 16 jul. 2014. ______. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011b. Fra Fercoldo e la genesi di Cartusialover. Disponível em < https://cartusialover.wordpress.com/page/107/?app-download=ios>. Acesso em 6 ago.2017. HUCHET, Stéphane (org.). Fragmentos de uma Teoria da Arte. São Paulo. Edusp, 2012. LEAL, Joana Cunha. Entrevista com Hubert Damisch, Revista de História da Arte, Lisboa, n. 3, p. 7-18, 2007. Disponível em: <http://issuu.com/ihafcshunl/docs/rha_3>. Acesso em: junho de 2014. MAKOWIECKY, SANDRA. Janelas Múltiplas, janelas do olho, espírito da alma, espelho do mundo. In: 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas- ANPAP 2017, 2017, Campinas. Anais do 26 Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Campinas: PUC- Campinas- Anpap 2017, 2017. v. 1. p. 2067-2083. MORISAWA, Mariane. 30 Bienal de SP: uma entrevista com o curador Luiz Pérez-Oramas. Set. 2012. Disponivel em< http://casaclaudia.abirl.com.br/profissionais/30a-bienal-de-sp-uma -entrevista-com-o- curador-luiz-perez-oramas/>. Acesso em 28.mai.2017 RODRIGUES, Rodrigo Freitas. Intermitências da imagem manuscrito : um diálogo com o tempo. 2016. 226 f.: il. Tese (Doutorado do Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas Artes), Universidade Federal de Minas Gerais, Minas gerais. ROMERO, Pedro: Um conocimiento por El montaje. Entrevista com Georges Didi- Huberman. Madrid, 2007 http://www.circulobellasartes.com/fich_minerva_articulos/Un__conocimiento__por__el__mo ntaje_(4833).pdf RUFIN, Jean- Christophe. O grande Jacques Couer. ( 1a ed.) Porto Editora, 2012.
  • 20. Arte Comentada Capítulo 2 20 CAPÍTULO 2 COLETIVO ANDORINHA: UM ANO DE EXISTÊNCIA, DE RESISTÊNCIA, DE POLÍTICA, DE ARTE, DE EDUCAÇÃO Samara Azevedo de Souza Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Mestrado em Arte Multimédia (Audiovisuais). Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes (CIEBA). Lisboa, Portugal. RESUMO: Esta investigação visa apresentar primeiramente a existência e as práticas do Coletivo Andorinha, que partem da narrativa da discussão política, mas se expandem para além. Discorre sobre o conceito de escultura social de Joseph Beuys, que entende a arte em horizontes mais amplos e como o mecanismo de uma nova ordem social. Traz também algumas reflexões de Paulo Freire no âmbito da educação, a entendendo como ferramenta crítica, política e de intervenção no mundo. Por último, tece aproximações entre os conceitos apresentados e as práticas do Coletivo Andorinha. PALAVRAS-CHAVE: escultura social, Coletivo Andorinha, pedagogia da autonomia, arte- política, arte-educação. ABSTRACT: This research aims to identify the existence and practices of the Coletivo Andorinha, which begin with the narrative of political discussions, but expand beyond that. It discusses the concept of social sculpture of Joseph Beuys, who understands the art in broader horizons and as the mechanism of a new social order. It also brings some reflections of Paulo Freire about education, understanding it as a critical tool, political and intervention in the world. Finally, it weaves about the approximations between the concepts used and the practices of the Coletivo Andorinha. KEYWORDS: social sculpture, Coletivo Andorinha, Pedagogy of autonomy, art-politics, art-education. 1 | INTRODUÇÃO Desde a crise mundial de 2008, o mundo tem passado por mudanças políticas significativas. É claro que vive-se sempre em tempo de mudança. Mas o retorno de um conservadorismo radical, de discursos xenófobos, a crise de refugiados, as soluções através de figuras políticas de discurso fácil e de milagres imediatos, passando pelo retrocesso de direitos dos mais frágeis, têm apresentado novos desafios para os indivíduos se colocarem no mundo. Desafios estes tanto para os indivíduos, quanto para as artes e para a educação. Momento novo para a geração que nasceu nos
  • 21. Arte Comentada Capítulo 2 21 anos oitenta e noventa, mas que traz um carácter cíclico pertencente a outras fases da história da humanidade. Frutos deste período, surgem novas propostas de organização, que não atendem a lógicas associativas, nem partidárias, nem artísticas isoladamente. Como exemplo, nos referindo à situação política no Brasil, que vivencia ares reacionários desde as grandes eleições de 2014, surgiram diversos grupos de atuação política dentro do país e também mundo afora: a Rede de Brasileiros no Mundo contra o Golpe conta com representações em mais de 74 cidades. Uma dessas representações acontece em Portugal: o ColetivoAndorinha – Frente Democrática Brasileira em Lisboa. O Coletivo surgiu em março de 2016, juntamente com as grandes manifestações no Brasil de apoio à permanência do governo eleito pelo processo democrático até então vigente no país. 2 | DESCOBRINDO FORMAS PRÓPRIAS DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL: A EXPERIÊNCIA DE “COLETIVO” Andorinhas! Quem nunca as viu? Cantam e dançam, por cima de todas as coisas. Querem ouvi-las? Têm de levantar os olhos para o céu, o Zulwine, lavar os olhos no azul que tranquiliza a alma e escutá-las. Elas inspiram-nos a descobrir a grandeza da alma na imensidão do mundo. Se queres conhecer a liberdade, segue o rasto das andorinhas (Ditado Chope)” (CHIZIANE, 2013) Asandorinhassãopássarosmigratórios.Têmaexpressãodaliberdadeagregadas ao seu nome. São pássaros encontrados em grande número no Brasil e em Portugal. Sendo assim, foram escolhidas para batizar e poetizar o coletivo recém-criado. Formado em grande parte por brasileiros estudantes, professores e pesquisadores das mais diversas áreas, assim como por trabalhadores brasileiros e portugueses simpatizantes à causa, o Coletivo Andorinha tem como motor primeiro tentar compreender a situação política do Brasil atual e discutir contranarrativas não veiculadas pela mídia tradicional. Essas contranarrativas se expressam em proposições das mais diversas naturezas, tais como atos/performances/manifestações de rua (Figura 1 e 2), criação de manifestos escritos e materiais gráficos (Figura 3), mesa de debates (Figura 4), ciclo de filmes, apoio e participação de eventos da cidade de Lisboa, assim como de associações organizadas com objetos afins. Neste um ano de existência, o grupo já soma mais de trinta e cinco atos realizados.
  • 22. Arte Comentada Capítulo 2 22 Figura 1- Ato em apoio à greve geral no Brasil e contra a PEC 241/55. 12nov2016. Praça do Rossio, Lisboa. Foto: Manuel Almeida/Agencia Luso. Figura 2 - Ato em apoio à greve geral no Brasil e contra a PEC 241/55. 12nov2016. Praça do Rossio, Lisboa. Foto: Manuel Almeida/Agencia Luso. Figura 3 - Material gráfico para divulgação de ação no dia 31 de julho de 2016. Ilustração: Alexandre Guedes.
  • 23. Arte Comentada Capítulo 2 23 Figura 4 - Encontro com a presidenta eleita do Brasil, Dilma Rousseff e o Núcleo do Partido dos Trabalhadores em Lisboa. 14mar2017. Casa do Alentejo, Lisboa. Foto: Filipe Ruffato. O grupo trabalha de forma horizontal, de modo que as decisões são tomadas por aqueles que podem estar presentes e que podem doar seu tempo no momento. Sem a necessidade de hierarquização de cargos ou vontades, as ações acontecem ou quando notícias surgem por internet e são ocultadas pela mídia tradicional, tanto brasileira quanto portuguesa, ou quando convocados por eventos portugueses. As ações são coordenadas a partir do interesse, do desejo de alguns dos integrantes, seja de todos, seja de poucos (a partir das bases fundamentais da luta pela democracia no Brasil). O Coletivo Andorinha se coloca como um espaço de reflexão e pensamento, que se traduz em seus manifestos, materiais gráficos e discursos, mas que se afirma nas ações de rua e nas produções de fotos e vídeos destas, em caráter de denúncia. Na tentativa de contar a história pelo ponto de vista não controlado pelo mercado, mas também de expurgar e de canalizar os sentimentos de frustração, decepção, raiva e medo presentes atualmente em um número expressivo da comunidade brasileira fora de seu país de origem. Uma das preocupações atuais do grupo, é entender seu papel imagético. Vídeos produzidos no âmbito de suas performances/manifestações de rua alcançaram expressiva quantidade de visualizações, mesmo compostos por número reduzido de pessoas, se comparados às práticas ativistas realizadas no Brasil. Há mais de um ano o grupo permeia áreas que estabelecem zonas de confluência entre política, arte, educação. Sem necessidade de estabelecer fronteiras entre estas, constrói modos de se organizar a partir das necessidades de se expressar
  • 24. Arte Comentada Capítulo 2 24 apresentadas pelas várias atualizações dos contextos, e que atualmente, no Brasil e no mundo, mudam drasticamente em dias. 3 | A ESCULTURA SOCIAL: TODO MUNDO UM ARTISTA Eu acho que a arte é o único poder político, o único poder revolucionário, o único poder evolucionário, o único poder capaz de libertar a humanidade de toda a repressão. (BEUYS, 1990:34) Joseph Beuys, artista, professor e atuante político, através de seu conceito escultura social discute relações de interdependência entre arte, política e educação. ParaBeuys,aideiadeescultura,edearte,eraentendidademodoalargado,embriagada de uma atitude política. O artista determina três estágios desta sua visão alargada de escultura e de arte. O primeiro estaria contido pelo campo das ideias, suas abstrações, seus moldes, sua energia caótica, “materiais invisíveis usados por todos”: formas de pensamento. O segundo estágio acontece no momento em que toda essa potência confusa passa por um afinamento, uma harmonia, uma contenção e se transforma em forma, em palavras: formas faladas. E no terceiro estágio acontece um processo determinado, no qual se cristalizam formas, onde se fazem conexões objetivas: a escultura social (BEUYS, 1990:19). Estando os materiais invisíveis disponíveis a qualquer pessoa, e sendo qualquer indivíduo dotado de uma potência livre criativa em si, logo, todos podem ser artistas, “todo mundo um artista” (BEUYS, 1990:19). Beuys entendia a arte como uma das engrenagens sociais, intrinsecamente conectada à política e a educação, trazendo em suas reflexões resquícios de sua própria história, uma vez que, além de artista, também foi professor e membro de organizações partidárias socialistas na Alemanha. Considerava que a construção de uma obra de arte total se daria naturalmente em uma futura ordem social, perpassando por uma nova postura individual. De acordo com nossos perfis individuais e coletivos, através da liberdade que todos nós experimentamos, nós iríamos determinar a nossa participação nas esferas legislativas, econômicas e culturais. (BEUYS, 1990:22) 4 | INTERVIR NO MUNDO: A EDUCAÇÃO EXIGE LADO Em favor de quê estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo? (FREIRE, 2002:47) Ainda na perspectiva da amplitude e a interdependência dos saberes, sob o ponto de vista de um educador, Paulo Freire em seu livro Pedagogia para a Autonomia, quando discute “ensinar exige apreensão da realidade”, também vai dizer que “a
  • 25. Arte Comentada Capítulo 2 25 educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral” (FREIRE, 2002:41). Lida com objetos, com materiais físicos, mas também lida com medos, com frustrações, com construção estéticas e subjetivas. Por isso, o professor deve estar em constante diálogo com seus alunos e sua realidade. Não existe educação sem contexto, sem propósito. É preciso ter a consciência de que a educação, a escola presta serviço a um sistema, que valoriza o mercado em detrimento do humano. É função da educação, e consequentemente do professor, lutar contra as lógicas globalizadas fatalistas na sala de aula, que tentam “convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo” (FREIRE, 2002:78) O discurso político está contido em cada ação do educador, estando ele consciente disto ou não. Está contido nas escolhas dos programas, nas proposições de desafios, nos modos de se construírem os saberes. E não apenas nestes. O educador, não deveria ser um mero reprodutor de técnicas, pois deste modo está apenas a atender interesses dominantes. É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana. (FREIRE, 2002:63) Ao mesmo tempo, também é ingênuo acreditar que uma revolução pode ser ditada a partir de uma sala de aula. Pois, por maiores que sejam a esperança e a boa vontade do educador, a escola não é uma força que atua livremente, sem obstáculos e sem duras dificuldades. (FREIRE, 2002:61) A utopia pode levar a frustrações e ao fracasso. É preciso ter consciência que a escola é parte de uma engrenagem mercadológica que não pretende criar seres autônomos, críticos, cidadãos conscientes de seu papel no mundo. Segundo o autor, seguindo os ideais dos dominantes, a educação é concebida para amansar mentes, para conter os indivíduos de modo imobilizador e ocultar destes verdades e realidades. (FREIRE, 2002:61) É preciso trabalhar a partir dessa consciência, com potência e assertividade para subverter a lógica estabelecida nos espaços que sejam possíveis, mas tendo em vista que, para o fazer, é necessário definição. É necessário que se tomem posições, entendendo que a educação, que a prática educativa nunca é neutra. E o mero tentar ser é estar do lado do dominante, do opressor. Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. (FREIRE, 2002:63)
  • 26. Arte Comentada Capítulo 2 26 5 | CONCLUSÃO As ações desenvolvidas pelo Coletivo Andorinha em seu um ano de existência contemplam em si possibilidades de confluências entre arte, política e educação, a partir de manifestações rua, intervenções urbanas, criação de manifestos, de conteúdo midiático independente; de escolhas inventivas, criativas, inerentes às práticas humanas que permeiam os campos citados. Entre o ativismo político e a arte performativa, o pensamento político se confunde e se representa a partir de escolhas estéticas e críticas, capazes de conterem em si sentidos redimensionados de formação, de arte e de política. A olhar pela perspectiva dos estágios apresentados por Beyus, as formas de pensamento, a caótica potência criativa apresentada pela nossa liberdade individual fazem do Coletivo um lugar para o reconhecimento destas formas de pensamento, ao mesmo tempo que o constante ato de falar, de discursar, de debater e de escrever, inerentes em suas ações, o faz percorrer o segundo estágio chamado por Beyus de formas faladas. O terceiro estágio, escultural, artístico, social, em uma nova ordem pensada pelo viés da arte, se apresenta nas ações desde a rua até a utilização de ambientes virtuais e poderia estar no âmbito do que Beyus define como escultura social. Beyus ainda vai defender que a arte é o único meio evolucionário-revolucionário capaz de desconstruir os efeitos de um sistema repressivo. Só uma concepção de arte revolucionada até este ponto pode se transformar em uma força politicamente produtiva, percorrendo cada pessoa e moldando a história. (BEYUS, 1990:22) Se para Beyus a arte era capaz das mudanças necessárias de paradigmas, para Freire é através da educação que esta afirmação amplificada é ressignificada. “A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.” (FREIRE, 2002:69) Freire ainda chama para os educadores a responsabilidade de refinar as posturas rebeldes e as transformar em posturas revolucionárias “que nos engajam no processo radical de transformação do mundo” (FREIRE, 2002: 47) É preciso transformar os rebeldes em revolucionários. Para Beyus, através da potência caótica da arte. Para Freire, através da conscientização daquele que estuda, seja de que área for. Para o Coletivo Andorinha, nas formas de se colocar no mundo, de pensar suas práticas, de se unir aos que também se rebelam e se revoltam contra o retorno da manutenção imoral do privilégio de poucos. Em tempos atuais, em que uma ala reacionária, preconceituosa, conservadora se revela e se consolida não só no Brasil como no mundo, arte e educação só podem ser, só podem acontecer, por excelência, como lugares de resistência, de pensamento crítico, com consciência de seu viés estético, ideológico e político.
  • 27. Arte Comentada Capítulo 2 27 REFERÊNCIAS CHIZIANE, Paulina (2013) As andorinhas. Belo Horizonte: Nandyala. FREIRE, Paulo (2002) Pedagogia da Autonomia. Publicado originalmente em 1996. Versão online 2002. Coletivo Sabotagem. Disponível em: https://sonhosdeumprofessordeeducacaofisica.files.wordpress.com/2015/09/pedagogia_da_ autonomia_-_paulofreire.pdf BEYUS, Joseph (1990) Joseph Beyus in America: Energy plan for the Western Man. Writtings by and Interviews with the Artist. Compiled by Carin Kuoni. 1ª ed. New York:Four Walls Eight Windows. (tradução nossa)
  • 28. Arte Comentada Capítulo 3 28 AS ARTISTAS NO INÍCIO DO SÉCULO NO RIO GRANDE DO SUL E A CRÍTICA DE ARTE CAPÍTULO 3 Ursula Rosa da Silva (UFPel) RESUMO: Em geral, os periódicos divulgavam as exposições de arte com textos da crítica, ou seja, até meados do século XX, não se usava a fotografia para mostrar as obras e os textos substituíam as imagens. Neste período, nas artes e na ciência, a mulher era considerada mais frágil e de condições inferiores ao homem para exercer determinadas funções sociais e de trabalho. A mulher, enquanto artista e indivíduo foi, por muito tempo, invisibilizada nos registros históricos e no espaço público. A história da arte e a crítica de arte não valorizavam as artistas mulheres, em sua capacidade de produção e de criação. Este texto traz um estudo da crítica de arte em Ângelo Guido, sob o enfoque de um olhar para as artistas mulheres nos anos de 1930 a 1950, no Rio Grande do Sul. A pesquisa se propõe a avaliar a maneira como o crítico tratou as artistas mulheres e que distinções existiam no tratamento aos artistas homens, com o objetivo de trazer visibilidade e pontuar novas integrantes para uma cronologia histórica e artística feminina. PALAVRAS-CHAVE: gênero e visualidade, crítica de arte, mulheres na arte. ABSTRACT: In general, the journals disseminated the art exhibitions with texts of criticism, that is, until the middle of the twentieth century, did not use the photograph to show the works and the texts replaced the images. In this period, in the arts and science, the woman was considered to be more fragile and of lesser conditions than man to exercise certain social and work functions. The woman, as an artist and an individual, was, for a long time, invisible in the historical records and in the public space. Art history and art critique did not value women’s artists, their capacity for production and creation. This text brings a study of art critique in Angelo Guido, under the focus of a look at women artists in the years 1930 to 1950, in Rio Grande do Sul. The research proposes to evaluate the way the critic treated the female artists and what distinctions existed in the treatment of male artists, aiming to bring visibility and punctuate new members to a historical and artistic chronology of women. KEYWORDS: Gender and visuality, art critique, women in art. O presente texto tem como objetivo abordar os aspectos referentes à produção artística das mulheres, trazendo inicialmente questões de diversos campos do conhecimento,
  • 29. Arte Comentada Capítulo 3 29 como sociologia, história e artes visuais. O uso desse diverso apanhado de questões, tratadas sob um viés de gênero, possibilita a criação de diversas justificativas para explicar a maneira como a mulher foi negligenciada ao longo da história, do relato dos acontecimentos públicos, da produção direta da criação de arte, tendo a esfera doméstica e o resguardo da mesma como seu ambiente de atuação social. Michelle Rosaldo e Louise Lamphere, em seus textos, explicitam os possíveis aspectos que ocasionaram a desigualdade social entre homens e mulheres durante os séculos. Além da explicação biológica e hormonal, há a justificativa da atribuição de valor das atividades realizadas pelas sociedades primitivas: caçar animais de grande porte exigia força, enquanto a mulher cuidava da prole. A caça é vista como um ponto importante na evolução social e tem como agente principal o homem. O papel da mulher, por sua vez, exigia comunicação e habilidades cooperativas tão importantes para o desenvolvimento social quanto a caça. Rosaldo afirma que “os biólogos podem nos dizer que, estatisticamente, os homens são mais fortes do que as mulheres, mas eles não podem nos dizer por que a força e as atividades masculinas, em geral, parecem ser valorizadas em todas as culturas.” (1979, p. 21). Segundo a historiadora francesa Michelle Perrot, a “história é o que acontece, a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o devir da sociedade” e completa “mas também é o relato que se faz de tudo isso.” (PERROT, 2008, p. 16). Conforme ela, pouco se falou diretamente sobre a história das mulheres antes da metade do século XX, quando se estabeleceu como foco de análise o indivíduo, a mulher em sua unicidade, partindo progressivamente até a história das mulheres em esfera pública. Como causa para a invisibilidade da mulher na história, Perrot traz dois pontos: a falta da presença das mulheres no espaço público, limitadas ao ambiente doméstico, e o silêncio das fontes; ocasionado pela escassa quantidade de material produzido, tanto pelo acesso aos meios de produção do mesmo, quanto pela aceitação de uma incapacidade por parte das mulheres, subjugadas a outros afazeres. Então, o que se falou de mulheres foi o que permeou o imaginário masculino, uma vez que não se falava sobre mulheres, mas de mulheres. Uma história contada por homens resulta em uma história de imaginação e representação. Como compensação à falta de fontes e registros, que apagaram as mulheres, há milhares de representações visuais, plástica e literárias, feitas por homens. O que se tem de registro são olhares masculinos que tão pouco estabelecem contato direto com a realidade cotidiana das mulheres representadas. “Discursos e imagens cobrem as mulheres como uma vasta e espessa capa. Como alcançá-las, como quebrar o silêncio e os estereótipos que as recobrem?” (PERROT, 2008, p. 25) Outro fator importante também se constituiu a partir do conteúdo e da época em que os relatos foram produzidos: os primeiros historiadores gregos se fazem valer dos acontecimentos públicos, como guerras e reinados. Para se contar a história dos acontecimentos, era preciso voltar atenções para o ambiente público, existindo
  • 30. Arte Comentada Capítulo 3 30 uma distinção antagônica entre os termos “doméstico”, entendido como as atividades referentes à esfera privada, ao lar, aos filhos, as atividades femininas etc, em oposição ao “público”, referente aos grandes acontecimentos que trouxeram a evolução das sociedades e que tinham como agentes principais, o homem. A necessidade da construção de uma história das mulheres se dá, então, por diversos fatores: fatores científicos, que se referem à crise dos sistemas de pensamento, que tornou sexuada a questão do comportamento; fatores sociológicos, considerando a presença da mulher nas universidades, como professora e aluna; e fatores políticos, pois, a partir de 1970, com o movimento de liberação da mulher, temos como consequência a crítica de um saber institucionalizado e masculino. Sobre o tema da educação, Michelle Perrot fala sobre o pensamento que existiu em boa parte do século XIX, em que se acreditava que o saber e a feminilidade se contrapunham, pois tal aspecto não possuía relação com seu papel na sociedade, uma vez que “a leitura abre as portas perigosas do imaginário, uma mulher culta não é uma mulher”, (2008, p. 93) que estando restrita ao ambiente doméstico o que lhe deve ser ensinado são seus respectivos afazeres: o lugar da boa mãe, a esposa e a dona de casa, e ainda os valores morais que preconizam o pudor, a obediência e o sacrifício. O acesso das mulheres ao ensino secundário irá acontecer no início do século XX, e o ingresso à universidade se dá no período entre guerras e em maior quantidade em 1950, devido à necessidade de instrução para o trabalho no setor terciário. Para obter o conhecimento, foram necessários meios alternativos em um esforço autodidata. Aquestãodoensinodaarteaindatinhacomoconstituiçãoumolhardesuperioridade às mulheres, que se deparavam com um ensino modificado e com conteúdo abrandado. Perrot cita Rousseau, dizendo que “toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens”, sendo dever das mulheres “amparar os homens, cuidá-los e tornar suas vidas agradáveis” (2008, p. 92). Muito dessa restrição imposta, na questão do ensino, foi mais uma vez, um pensamento sobre a incapacidade feminina, em que foram atribuídos aspectos biológicos distintivos para justificar construções culturais. Se criou a relação polarizada entre o sopro abstrato masculino e criativo e atributos femininos como sensibilidade e intuição, não existindo criação às “imitadoras”. No campo da arte, assim como em outros campos que exigiam faculdades mentais ligadas à criação e à abstração, as mulheres foram afastadas: como elas poderiam fazer arte, a arte como criação de algo? Elas copiam, traduzem e interpretam. No texto Mujer, Arte y Sociedad (1992), Whitney Chadwick inicia o texto falando sobre o caso da Royal Academy: Mary Moser e Angelica Kauffmann, que fizeram parte do grupo de fundadores da instituição inglesa, mas se tornaram apenas representações e não representantes de um grupo. Um dos registros das aulas na academia é a pintura Os membros da academia real (1771-1772), de Johann Zoffany, na cena figura uma aula de modelo nu, mas as alunas não estão presentes na aula, elas foram reduzidas à representação dentro da representação no canto superior da imagem, em que aparece os seus retratos pintados. Perrot afirma:
  • 31. Arte Comentada Capítulo 3 31 No Salon, os júris inteiramente masculinos, esperavam das mulheres que se conformassem com os cânones da feminilidade, pelos temas de naturezas- mortas, retratos, cenas de interior e buquês de flores, que formavam uma seção inteira, e pelo estilo. Nem nu, nem pintura de história. (2008, p.102) Johann Joseph Zoffany, Academicians of the Royal Academy, 1771-1772. Adentrando os apontamentos sobre campo da arte, há um consenso, entre as teóricas feministas que buscam trazer à tona uma história das mulheres, que a história da arte é um relato de acontecimentos organizados de maneira cronológica de homens sobre homens, dos historiadores sobre “grandes mestres”. De que se constituiu a problemática das artistas mulheres na prática? Dos aspectos culturalmente estabelecidos abordados anteriormente: a cadeia produtora de um comportamento passivo e submisso, da redução de seu espaço de atuação ao âmbito doméstico, da distinção entre público versus privado, em que público se refere ao masculino e privado limita o espaço feminino, a ideia de que as mulheres eram imitadoras, sem capacidade criativa, seus fatores biológicos, constituição física, a moral, os bons costumes, a sociedade, a visão própria de inferioridade. Sobre os cerceamentos impostos no quesito acesso ao ensino da arte, Ana Simioni no texto O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século XIX (2007), realiza importantes apontamentos. A situação em relação ao ensino acadêmico da arte, ao longo dos séculos XVIII e XIX, possui diversas distinções para artistas homens e mulheres. Partindo do ponto já citado anteriormente usando como base as ideias de Michelle Perrot e Whitney Chadwick, de que existe mais por trás da negligência e falta de mulheres artistas do que a real inexistência delas ou da falta de capacidade delas, é coerente salientar alguns dos fatores que tornaram árduo o caminho das artistas ao sistema das artes. Na base do cerceamento institucional estava a questão do estudo a partir do modelo vivo e do modelo nu, considerado indecente para o “sexo frágil”, Assim, o acesso ao ensino artístico, com as bases necessárias da representação do período, foi-lhes negado através dos fatores sociais em perspectiva de gênero e a atribuição de uma conduta moral à mulher. O acesso à informação era inicialmente vetado nas
  • 32. Arte Comentada Capítulo 3 32 academias. As artistas que tivessem interesse em ter o conhecimento sobre o cânone tinham como saída buscarem ateliês privados. Simioni comenta, sobre a Academie Julian – instituição francesa fundada em 1867, que mesmo com o destaque pela abertura de turmas mistas tinha como agravante a questão financeira, de tal modo que “o único senão ali é que deveriam pagar caro por tantos privilégios”, que constituíam no estudo do modelo vivo por até 8 horas, e onde “as mensalidades para as mulheres custavam, geralmente o dobro das masculinas.” (Simioni, 2002, p. 92) Indo por outro caminho seriam classificadas como artistas de artes menores, que não necessitavam do conhecimento da representação do corpo, como a pintura de paisagem e a natureza-morta. Além disso, a maneira como a crítica às classificava era decisivo, pois ao serem clarificavas como “amadoras”, em comparação ao chamado “trabalho sério” dos artistas homens, elas eram facilmente excluídas da história da arte. A dificuldade da profissionalização das mulheres artistas se deu ainda pela construção de um conceito de “arte feminina”, com temas “menores”, em contraste com a arte masculina, histórica e com temática pública. Além dos ateliês privados, Simioni diz que as artistas recorriam a “uma série de caminhos alternativos, onde a artista pode aprender o corpo humano e descobrir quais as melhores maneiras de representá- lo” (2002, p. 86). Sendo excluídas desse conhecimento pelo meio acadêmico, lhes restava ainda recorrer a esboços de seus próprios corpos ou de amigas íntimas. Mesmo com a possibilidade de entrada das artistas na academia desde 1770, o acesso era distinto do masculino e seria necessário contar com uma indicação real, que atribuísse a elas o título de excepcionalidade. Em 1896, as artistas conseguiram a liberação para frequentar as aulas de anatomia e história da arte, mas necessitavam de diversos requisitos para que fossem aceitas: a comprovação de que tinham entre 15 e 30 anos, uma requisição por escrito e uma carta de indicação de um professor ou artista renomado. Apenas em 1990 foi destinado às artistas um ateliê exclusivo. As reações acaloradas por parte dos alunos têm como justificativa, como se refere Simioni, o “medo da feminilização da profissão e sua correlata desvalorização social” (SIMIONI, 2002, p.94). Apesar do caso brasileiro ser mais favorável para as artistas, já que aqui puderam ingressar na academia legalmente desde 1892, a instituição possuía as mais diversas carências, havendo um baixo nível de institucionalização. Havia um caráter de autoridade e dominação ocasionados por relações pessoais, pois se uma mulher desafiasse a autoridade masculina “estava fadada ao pior dos castigos: a exclusão absoluta do campo da arte e da memória coletiva, ou seja, uma dupla morte.” (SIMIONI, 2008, p.5) A partir dos diversos apontamentos feitos aqui sobre a situação cultural atribuída à mulher e sua esfera de atuação enquanto ser social, alguns dos aspectos de dificuldade de acesso às instituições destinadas ao ensino da arte, se segue uma abordagem sobre outro aspecto importante na inclusão ou apagamento de artistas mulheres na história da arte: a crítica.
  • 33. Arte Comentada Capítulo 3 33 O capitalismo, então, não seria uma causa direta, uma vez que a subordinação feminina existe desde muito antes desse sistema econômico. Tal teoria buscaria então fatores causais que fossem descolados de uma relação puramente física a respeito de homens e mulheres. Sobre a relação entre o capitalismo e o patriarcado responsável pela dominação masculina, a autora diz que o sistema econômico e o sistema de gênero não eram a causa fundamental, mas que interagiam para fixar estruturas socioeconômicas que perpetuaram as estruturas de dominação. As identidades subjetivas de gênero são processos de diferenciação e distinção, que exigem a supressão de ambiguidades e de elementos de oposição a fim de assegurar uma coerência e uma compreensão comum. A ideia de masculinidade repousa na repressão necessária de aspectos femininos e introduz o conflito na oposição entre masculino e feminino. (1995, p. 82) Ao longo do texto, a autora cita diversas teorias e suas bases, e utiliza como exemplo de uma visão limitadora acerca do conceito de gênero a teoria de Chodorow, que tem como premissa o conceito de gênero ligado basicamente à esfera familiar e experiência doméstica: Sem dúvida está implícito que os arranjos sociais que exigem que os pais trabalhem e as mães executem a maioria das tarefas de criação das crianças estruturam a organização da família. Mas não estão claras a origem e nem as razões pelas quais eles estão articulados em termos de uma divisão sexual do trabalho. Tampouco se discute a questão da desigualdade, por oposição à de assimetria. (p. 81) Sendo assim, dentro dessa teoria seria falha a tentativa de explicar a atribuição de poder na masculinidade, levando em consequência a carga negativa associada com feminilidade em comparação com a virilidade. De que maneira a estrutura familiar, por si só, poderia gerar essa repercussão de maneira direta? Para Joan, então, o caminho a ser seguido passa pelos sistemas de significação, uma vez que sem esse processo de significação não existe significado. Existem articulações de regras feitas pela sociedade para estabelecer relações sociais para representação de gênero. O processo de significação se dá através da linguagem, que por resultado dá acesso até mesmo a crianças que não são integrantes de um modelo familiar nucleado, à ordem simbólica. A relação entre masculino e feminino é estabelecida de maneira imaginativa. Tal circunstância torna problemática as categorias de homem e mulher, sendo construções subjetivas. A autora cita Sally Alexander e Denise Riley acerca do antagonismo e polaridade inerentes para a aquisição da identidade sexual, e que tal caráter historicamente construído, através dessa situação de extremos, tem por consequência uma “oposição invariante e monótona entre homens/mulheres”. (RILEY, 1988) Michelle Rosaldo, teórica acerca das questões de estudos de mulheres e antropologia de gênero, afirma Vejo agora que o lugar da mulher na vida social humana, não é, de qualquer forma direta, um produto das coisas que ela faz, mas do significado que suas atividades adquiriram através da interação social concreta. (1980) Para abordar questões de gênero é necessário fazer uso da noção de concepção
  • 34. Arte Comentada Capítulo 3 34 política e de organização presentes em cada período abordado. É necessário analisar através de uma visão expandida que inclua o mercado de trabalho, que atua de maneira segregacionista pelo sexo; e a educação, fator não apenas institucional, mas de passagem de conhecimento. A subordinação feminina está além das causas biológicas pura e simplesmente, mas tem como base para atuação o processo de significação construído a partir do pensamento instaurado socialmente de sujeito- verbo-objeto, além da construção de uma identidade sexual pautada na escolha baseada na dicotomia feminino-masculino. É necessário utilizar gênero não como uma categorização imposta a um corpo sexuado, mas fazê-lo como aspecto analítico de um indivíduo, a organização social em que está inserido e as relações estabelecidas a partir disso. Tanto no texto de Whitney Chadwick, Arte, mulher e sociedade quanto no de Ana Simioni, O corpo inacessível: as mulheres e o ensino artístico nas academias do século XIX, sobre a maneira como a mulher foi tratada na história da arte, são citadas como exemplos duas artistas, escolhidas através de fatores externos, como aparentemente justificativa para suas entradas nas academias: filhas de alguém, indicadas pelo rei, com sobrenome de seu marido, um célebre artista, apadrinhadas por algum membro da sociedade, em maneira de sustentar o argumento de que eram mulheres e que eram produtoras de arte, não por sua clara capacidade criativa, mas inseridas na relação com homens. Rivalizadas entre si mesmas, sendo minoria, eram comparadas e em um consenso masculino, detentoras de obras inerentemente femininas reconhecíveis e passíveis de serem distinguidas de uma obra feita por um homem. A maneira como as artistas eram vistas dentro do campo, podem ser salientadas utilizando trechos encontrados em Arte, mulher e sociedade (1992), de Whitney Chadwick: O quadro de Zoffany, igual a outras muitas obras de arte, recorre aos pressupostos culturais acerca das mulheres, que submetiam os interesses das mulheres aos dos homens, e estruturavam o acesso da mulher a educação e a vida pública de acordo com suas crenças acerca do natural. Reitera a incumbência marginal tradicionalmente aplicada a mulher artista na história da pintura e da escultura, e confirma a imagem da fêmea como objeto de contemplação pelo macho em uma história da arte geralmente alinhavada seguindo os feitos dos velhos mestres e das obras mestras. (p. 8) O trecho citado por Chadwick se refere a obra de Johann Zoffany Os estudantes da Royal Academy (1771-1772), cuja temática é pictoricamente mostrar a maneira como as aulas dentro da academia se configuravam. Levando em consideração que duas das artistas que serviram como base para a fundação e base constitutiva dessa academia eram mulheres, Angelica Kauffmann e Mary Moser, e por assim serem, se encontraram em um contexto de apagamento em uma obra que demonstra o funcionamento da academia na qual eram membros atuantes, foram apresentadas como objetos, e não como produtoras de arte. Foram representadas não em meio aos estudantes, mas como representações, posição atribuída às mulheres durante a maior
  • 35. Arte Comentada Capítulo 3 35 parte do tempo na história da arte. Tal fato enfatiza claramente a relação da mulher com o ensino da arte nesse período. Como poderiam elas, mulheres, estarem posicionadas ao lado de homens, realizando o fazer que passou pela mão de grandes mestres? Chadwick chama atenção para a desigualdade representada no quadro acerca da posição masculina e feminina presente dentro da história da arte, e acrescenta o questionamento recente sobre a situação: No início da década de 1970, os artistas, críticos e historiadores da arte feministas começaram a colocar em dúvida os pressupostos sobre os quais se assenta a reinvindicação masculina do monopólio dos valores universais de uma história da arte heroica proclamada como produzida pelos homens, e que sistematicamente excluía as produções de artistas mulheres desta corrente, a medida em que transformava a imagem da mulher em uma imagem de consumo e posse. [...] Porque historiadores da arte decidiram ignorar a obra de quase todas as artistas? (p. 8) A autora questiona ainda sobre o caráter de possível “excepcionalidade” presente nas artistas conhecidas. Seriam elas excepcionais ou vítimas de um sistema patriarcal que determina que a posição social estabelecida a uma mulher desde o início de sua vida, é diferente da ocupada pelos homens? Suas posições devem ser reivindicadas por seu sexo? Para avaliação estética das obras de mulheres artistas foram atribuídas todo o peso das dicotomias estabelecidas ocidentalmente, consideradas em comparação aos homens, através de um adjetivos de valoração como decorativas, sentimentais, intuitivas, ressaltando a diferença pautada na distinção produzida artisticamente por homens e mulheres. A cultura ocidental demonstrou que a valoração histórica e crítica de arte das mulheres foi inseparável do lugar atribuído a elas socialmente.Arespeito das tentativas das historiados da arte feminista de estabelecer critérios alternativos que analisassem e por consequência ocasionar a inserção das artistas mulheres na história, Linda Nochlin, em seu famoso artigo WhyThereBeen No GreatWomanArtists? (1971), diz que “em todos os sentidos, mulheres artistas e escritoras parecem estar mais próximos de outros artistas de seu período e panorama, que entre si.” (p. 20) Sendo possível, a partir desse trecho, perceber que a tentativa de inserir artistas mulheres no sistema em resposta à negligencia do passado através da análise por caráter de distinção de uma arte produzida por homens é errônea, uma vez que o que determina seu desenvolvimento artístico não é seu sexo biológico pura e simplesmente, mas o contexto em que se insere e as construções culturais de gênero vigentes em seu período. A ideia de grandeza dita por Nochlin foi associada ao gênero masculino, intrinsecamente. A condição de “falta de sucesso” em comparação aos gênios artistas se dá em grande parte pela condição econômica, racial e de gênero, sendo atribuído às mulheres papeis e funções sociais que são obstáculos ao desenvolvimento de seu fazer artísticoç A autora segue o ensaio afirmando que os fatores condicionantes para
  • 36. Arte Comentada Capítulo 3 36 o possível fracasso das artistas não se encontravam em sua composição física ou capacidade criativa, mas no contexto de falta de acesso à educação lecionada pelas academias. A socialização feminina contribuiu de maneira direta para a hierarquização dos gêneros. Partindo do ponto citado anteriormente, usando como base teórica os escritos de Joan Scott e Whitney Chadwick, de que existe mais por trás da negligência e falta de mulheres artistas do que a real inexistência delas ou da falta de capacidade negativa atreladas a distinções negativas em grau comparativo com os artistas, é coerente salientar alguns fatores que tornaram árdua a caminhada das artistas até o sistema das artes: um dos principais fatores foi o acesso dessas artistas às instituições responsáveis pela formação artística. A respeito disso, Ana Simioni afirma que “na base do cerceamento institucional estava a questão do estudo a partir do modelo vivo, considerado indecente para o ‘sexo frágil’” (p.2), salientando mais uma vez que o acesso ao ensino artístico, que constituía a base da representação no período, lhes foi negada através de fatores socialmente construídos e atribuição de idealização na conduta admitida a uma mulher. O acesso à informação artística era inicialmente vetado nas academias. Não suficiente, as artistas que tiveram interesse em desenvolver a representação tinham como saída recorrer a ateliês privados, onde mais uma vez tinham a questão de distinção de gênero na questão econômica. Ana Simioni cita a respeito da Academie Julian, instituição francesa fundada em 1867 e que mesmo com o destaque pela abertura de turmas mistas tinham como agravante a questão financeira: Nas novas turmas, as jovens encontraram uma formação equiparável à dos homens, podendo exercitar-se no estudo do modelo vivo, por até oito horas seguidas, e contando ainda com as lições fornecidas pelos grandes mestres que também lecionavam na ÉcoledesBeauxs-Arts. O único senão é que ali deveriam estar dispostas a pagar por tantos privilégios: as mensalidades e as anuidades para as mulheres, custavam, geralmente, o dobro das masculinas. (p.92) Indo por outro caminho, seriam classificadas como artistas de arte menores, que não necessitavam de conhecimento da representação do corpo, como pintura de paisagens e naturezas-mortas. Além disso, a maneira como a crítica as classificou foi um fator decisivo para a invisibilidade ao serem classificadas como amadoras. O amadorismo trazia implícitas conotações negativas: a ideia de refinamento (em oposição ao trabalho árduo), frivolidade (versus a arte séria dos homens), a ausência de profissionalismo, desconhecimento técnico. Vale notar que o termo era comumente empregado para as mulheres (e raramente usado para casos masculinos), sendo portando, um termo sexuado e relacional, que tinha como contraponto a noção de artista, conjugado no masculino. (p.2) Arespeitodisso,éimportantesalientarquehaviaumpensamentocoletivonoséculo XIX a respeito das diferenças das faculdades criativas entre os sexos: as mulheres, vistas como incapazes de possuir capacidade criativa, ligadas essencialmente à imitação, sendo assim incapazes de serem gênios, uma vez que a arte era vista como capacidade criativa.
  • 37. Arte Comentada Capítulo 3 37 Ana Simioni cita o caso de duas artistas francesas: Elisabeth Vigée-Lebrun e Adelaide Labille-Guiard, ambas admitidas na academia em 1783, como retratistas, e emergidas do entorno da corte francesa do século XVIII, sendo impulsionadas pela família, casamento com artista renomado ou proteção direta de membros de instâncias de poder. O acesso a pintura de nus era subsidiado pelas relações sociais estabelecidas por elas, que as possibilitaram o transito por coleções privadas. Além dessa possibilidade, Simioni cita que “as artistas recorriam a uma série de caminhos alternativos, a artista pode apreender o corpo humano e descobrir quais os melhores meios de representa-los.” (2007, p. 86) Sendo excluídas do conhecimento direto do cânone, elas tinham a chance de recorrer a esboços de seus próprios corpos ou de amigas íntimas. Mesmo com a possibilidade da entrada de artistas na academia desde 1770, o acesso era distinto do masculino e seria necessário contar com uma indicação real que as concedesse o título de excepcionais. Em 1896, as artistas conseguiram a liberação para frequentar as aulas de anatomia e história da arte, mas necessitavam de diversos requisitos para que fossem aceitas, sob a justificativa, segundo a autora, de que “o medo da promiscuidade entre os sexos” (p.94) tornava inviável o contato entre homens e mulheres, sendo os requisitos a comprovação mediante certidão de nascimento de que tinham entre 15 e 30 anos, uma requisição por escrito e uma carta de indicação de professor ou artista. Apenas em 1890, após embates e solicitações insistentes, foi destinado a elas um ateliê exclusivo. As reações acaloradas por parte dos alunos, tem como justificativa “o medo da feminização da profissão, e sua correlata desvalorização social.” (SIMIONI, 2007, p. 94) Apesar do caso brasileiro ser, cronologicamente, mais favorável as mulheres artistas, já que puderam ingressar legalmente desde 1892 e na França em 1897, a instituição possuía as mais diversas carências para acolhê-las. Até 1896, as classes eram mistas. Simioni salienta que “é importante lembrar que o acesso ao corpo nu, embora facultado na lei, continuava a ser um grande tabu social e, nesse caso, os costumes podiam ser ainda mais decisivos para cercear as práticas femininas do que as prescrições jurídicas.” (2007, p.95) A respeito das escultoras Julieta de França e Nicolina Vaz de Assis, a autora destaca: (A escultura) compreendida como uma arte essencialmente masculina, pela exigência de força física e contato direto com a matéria, era vista como incompatível com o sexo frágil. Em uma época na qual se acreditava que o corpo feminino era naturalmente delicado e potencialmente doente, uma atividade calcada em esforço físico era considerada uma ameaça virtual. (p. 3) Julieta de França foi a primeira mulher no Brasil a ter aulas de nu. Logo de início, após vencer a seleção na qual foi a única candidata, foi para paris e inscreveu-se na Academie Julian. A artista foi alvo da dominação autoritária do diretor da escola, que
  • 38. Arte Comentada Capítulo 3 38 após embate direto deixou de participar dos salões oficiais. Como consequência de tal embate, “ele passou para a história da arte sendo nome conhecido por todos, e ela foi excluída, tornando-se pouco mais do que uma linha nos dicionários especializados.” (SIMIONI, 2008, p.4) Nicolina Vaz obteve uma carreira com projeção pública, recebendo encomendas importantes, tal como a fonte da Avenida São João em São Paulo, demonstrando o destaque da artista, já que o campo para a escultura era escasso, e o local escolhido para a encomenda era uma cidade considerada como próspera para o país. O caso das artistas demonstra, além dos aspectos referentes às artistas mulheres individualmente, a maneira como se estabelecia a academia brasileira. Apesar do baixo nível de institucionalização, houveram reflexos positivos que possibilitaram a notoriedade de duas importantes artistas brasileiras do período. O aspecto negativo se deu através da duramente estabelecida hierarquia dentro da instituição dominada essencialmente por homens, onde “uma mulher que ousasse desafiar a autoridade masculina estava fadada ao pior dos castigos: à exclusão absoluta do campo e da memória artística, ou seja, uma dupla morte.“(SIMIONI, 2008, p.5) O que se conclui, então, sobre o apagamento das mulheres artistas é o fato de que foram negligenciadas através das relações de poder estabelecidas por uma sociedade patriarcal, que tem por consequência, um ambiente propício à subordinação feminina, estando inseridas em uma sociedade em que cada um dos sexos tem sua posição e função sociais claramente definidas. Porque as mulheres não tiveram acesso direto à formação artística? Seria pretensão afirmar que foram vetadas do ambiente de ensino artístico por exclusivamente serem mulheres, mas sim pelos aspectos culturais negativos atribuídos a elas por grau de distinção de gênero. Houveram artistas mulheres em toda a real história da arte e a elas foi vetado o acesso à formação artística em um ambiente cujos membros atuantes e figuras de importância eram homens, que possibilitaram que essa falta de acesso fosse estabelecida. Se sabe, então, que a elas não faltou capacidade criativa, interesse ou um corpo forte o suficiente, mas sim, um campo de atuação com pressupostos de distinção de gênero e um pensamento coletivo acerca do papel da mulher distanciado do fazer artístico. Mesmo com os mais variados empecilhos, de gênero, econômico ou racial, algumas mulheres conseguiram atravessar a barreira construída socialmente para que não invadissem um espaço que não lhes pertencia, através de aspectos que envolviam diretamente os homens, como o casamento com artista célebre, que as tornaram atuantes no campo artístico, e que geraram, por detrás dos (possíveis) olhares pré-conceituosos, a percepção de que eram tão capazes quanto os homens de estarem dentro do ambiente da arte. Não apenas a consciência por parte dos homens de que eram capazes de maneira equivalente, mas também o receio, de que “tais mulheres usurpassem os ‘seus’ cargos, pois eventualmente receberiam prêmios e bolsas ‘no lugar dos’ homens.” (SIMIONI, 2007, p. 94)
  • 39. Arte Comentada Capítulo 3 39 Neste recorte, trazemos dois textos de Ângelo Guido referentes à artista Hilda Goltz, em dois momentos de sua produção, em duas exposições que traz a Porto Alegre, na Casa das Molduras, em 1942 e na Galeria de arte do estúdio Os Dois, em 1944. Professor Ângelo Guido ministra aula na Escola de Artes do Rio Grande do Sul Fonte: Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Atráves da leitura e análise dos textos publicados no jornal por Guido, as  críticas referentes à pintora Amélia Pastro Maristany – Notável Pintora Porto Alegrense, Diário de Notícias, 17.08.1938 p. 8 e ​ Amélia Pastro Maristany,  Notável pintora de flores, Diário de Notícias, 27.11.1938 p.4 – são colocadas em analogia com as do pintor e também seu marido, Luiz Maristany – Exposição  Luiz  Maristany,  Diário  de  Notícias,  08.06.1930,  p.  12.  Inicialmente é notado por Guido a ascendência das mulheres e maré as da arte, como a dança e a música, saudando­nas pelo maravilhoso trabalho. Ressalva porém, que infelizmente, na pintura não há destaque merecido à uma pintora até aquele momento, mas afirma sua existência e conta que ela é porto­alegrense e reside em Porto Alegre. Em seguida, conta do seu matrimônio com o esplêndido pintor Luiz Maristany e confirma que ela é uma pintora autônoma, já que não necessita de imitar o estilo do professor com quem estudou e reforça isto ao dizer que ela é uma artista de verdade com estilo plástico autêntico. As críticas referentes à Amélia, portam repetições feitas por Guido, que apesar de afirmar não julgar a capacidade de se expressar pictoriamente um privilégio de gênero, repete termos referente a pintora e a sua obra como; excessivamente feminina, deliciosamente feminino, delicado sentimento feminino, inegavelmente bem feminino e um gosto feminino que se denuncia. ​( GUIDO,​ 27.11.1938, p. 4)  (....) Há mesmo, em certa maneira que diria ingênua de compor alguns pequenos conjuntos e de tratar pequenas flores, um gosto feminino que se denuncia evidente. Entretanto, seu temperamento pictórico, que se manifesta, ás vezes, em audácias       incríveis, não tem nada de feminino. Não direi que é um temperamento masculino, porque não julgo que a capacidade de vibrar intensamente e de se expressar com
  • 40. Arte Comentada Capítulo 3 40 energia seja um privilégio dos homens. (GUIDO, 27.11.1938, p. 4)  No texto Amélia Pastro Maristany, Notável pintora de flores, Guido a coloca em comparação com o pintor Guiomar Fagundes, Georgina Albulquerque, Haidéa Santiago e outras artistas, que se destacam no gênero de natureza morta com técnicas mais academicistas, só que perdem em expressividade pictórica, coisa  que Amélia possui. Isto é ressaltado mais uma vez por Guido quando ele menciona  Pedro Alexandrino  e  seus  crisântemos,  que  em  suas  palavras:   “Talvez sejam esses crisântemos as mais belas flores pintadas até hoje no Brasil, num estilo quente e vigoroso que lembra naturezas­mortas do melhor período flamengo. (GUIDO​ ,  27.11.1938,  p.  4.)    Ainda que Pedro tenha os crisântemos extremamente bem pintados com memória do melhor período flamengo, o crítico ressalta a diferença com que Amélia traz sua pintura, que é mais instintiva do que intelectual, no sentido que a pintora interpreta as flores e não necessariamente as copia. Isto reforça um  estereótipo de gênero, no qual a mulher é o sentimento e o homem é a razão.  Já a crítica​ Exposição Luiz Maristany,​Guido não nos diz que Luiz é casado e não dá colocações que envolvam gênero, pelo contrário, por toda a crítica ele ressalta a expressividade natural de Luiz e sua capacidade de ter uma emoção estética e exprimir seu sentir, com poesia, na pintora; sem que isso seja excessivamente masculino, deliciosamente masculino, que tenha um delicado sentimento masculino e etc.    O valor do artista está precisamente em sentir que há uma poesia em coisas que para a maioria são inexpressivas. Não falta a Maristany essa sensibilidade, e a sua “mostra” de telas é uma bela demonstração de que ele sabe sentir que ha um poema, uma secreta estesia profunda em coisas que   aparentemente parecem nada revelar a sensibilidade.  (​ GUIDO​, 08.06.1930, p. 12)  Numa primeira análise é visível que Guido contribuiu com a repercussão  do trabalho de Amélia Pastro Maristany, entretanto, a forma como a faz – por mais que seja com as melhores intenções, ele reforça esteriótipos de gênero quando neutraliza características ditas femininas.  Guiomar Fagundes, Flores,Óleo sobre tela, 45 x 65 cm, S/Data
  • 41. Arte Comentada Capítulo 3 41 Amelia Pastro Maristany, Flores,Óleo sobre tela, 40 x 50 cm, S/Data Amelia Pastro Maristany, Flores,Óleo sobre tela, 50 x 45 cm, S/Data Pedro Alexandrino, Flores e Doces, 1899 REFERÊNCIAS CHADWICK, Whitney. ​Mujer, Arte y Sociedad​. 2ª ed. Barcelona: Destino.    1992. 
  • 42. Arte Comentada Capítulo 3 42 GUIDO, Angelo. A Exposição Hilda Goltz, Diário de Notícias, 1942, p.9. ______. Diário de Notícias, 1944, p.7. LOPONTE, Luciana Grupelli. ​Docência Artística: Arte, Estética de Si e Subjetividades Femininas. Tese. Programa de Pós-­Graduação em Educação. Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005.  PERROT, Michelle. ​Minha História das Mulheres​. São Paulo: Contexto, 2007.  SCOTT, Joan Wallach. ​Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2. jul./dez. 1995.  SILVA, Ursula Rosa. ​A Fundamentação Estética da Crítica de Arte em Ângelo Guido: A crítica de arte sob o enfoque de uma história das ideias.Tese. Curso de Pós­-Graduação em História. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2001.   SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. ​Profissão Artista: Pintoras e Escultoras                  Acadêmicas  Brasileiras​ . 1ª ed. São Paulo: EDUSP, 2008.  VARGAS, Rosane. ​Excluídas da Memória: Mulheres no Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul​. Monografia. Curso de Bacharelado em História da Arte. Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013.
  • 43. Arte Comentada Capítulo 4 43 CAPÍTULO 4 TANTO FAZ SE É PERFORMANCE OU NÃO Natasha de Albuquerque Universidade de Brasília, Departamento de Artes Visuais Brasília – Distrito Federal xb Maria Beatriz de Medeiros Universidade de Brasília, Departamento de Artes Visuais Brasília – Distrito Federal RESUMO: Este artigo expõe a necessidade da instabilidade nas definições de arte e propõe o termo: tanto faz se é performance ou não. Para tal, é relacionada a teoria de Arthur Danto às experiências da autora junto ao grupo Corpos Informáticos. Percebe-se que, quando é dado o nome de “performance” ou “arte” a uma situação de desvio, há a tendência da ação justificar-se e de não questionar-se. Essa tendência anestesia as tensões de quebra do status quo. Chega-se ao ponto central que é a própria dúvida. Meio à flutuação da arte é proposto um nado no nada pelo relato da “Oficina de Niilismo” - prática participativa, em espaço público, que permuta definições ao atravessar tanto o trivial quanto o artístico. PALAVRAS-CHAVE: Performance, cotidiano, dúvida, Corpos Informáticos. ABSTRACT: This article exposes the need to the instability when it concerns the definitions of art and brings out the term: “it doesn’t matter whether it os performance or not”. To do so, it relates the theory from Arthur Danto to this work’s author experience alongside with the group Corpos Informáticos. When the term “performance” or “art” is given to a situation of deviation, there is a tendency for action to justify itself and not to question itself. This tendency numbs the tensions of breaking the status quo. There’s a point of arrival that it is its own doubt. In the middle of the art’s floatation, it is proposed that we swim in the void, in portuguese: nadar no nada, through the Nihilism Workshop - participative practice, in public spaces, that change definitions once we cross the boundaries of both trivial and artistic. KEYWORDS: Performance, day life, doubt, Corpos Informáticos. 1 | INTRODUÇÃO Houve o caso, na exposição birutas (e) vento, realizada pelo grupo Corpos Informáticos naGaleriaEspaçoPiloto,emqueosfuncionários da limpeza da galeria pediram uma reunião conosco, para que o grupo definisse a eles o
  • 44. Arte Comentada Capítulo 4 44 que era arte e o que era lixo. Foi de certo uma boa pergunta. A partir disso, e rimos de nós mesmos por não saber muito bem como responder e decidimos na hora o que poderia ser “limpo”. Além de performances nos (E)ventos, esta exposição continha fotos, vídeos, objetos manipuláveis, instalações (figuras 1 e 2) -- quem sabe monumentais quem sabe nada artísticas. Havia trabalhos que correspondiam a linguagens artisticamente inteligíveis, como havia objetos que denunciavam processos ou que pareciam estar lá por questões aleatórias e espontâneas. Figura 1: Exposição birutas(E)vento com instalação “lance de dados”. Espaço Piloto, UnB. 2014. Figura 2: Exposição birutas(E)vento com “instalação sonora” e participação indefinida do público. Espaço Piloto, UnB. 2014. Somos cerca de dez integrantes no grupo, contaminados por corpos expandidos e transeuntes que mexem, deixam, levam. Sendo assim, o senso de decisão do
  • 45. Arte Comentada Capítulo 4 45 que é arte e o que deve ser excluído da exposição, se deixa para todos numa (im) predominância (sic) de sentenças. Em experiências de C.U. - Composição Urbana - (Albuquerque & Medeiros, 2013), lidamos diretamente com contextos que não correspondem ao meio artístico, que, portanto, facilmente desapropriam o trabalho da arte. O trabalho artístico na rua pode ser um desvio incisivo ou contraponto da normalidade ou C.U. ou arte que se mistura na banalidade do cotidiano. Tal mistura é provedora de um questionamento: isso é arte? 2 | A DÚVIDA As perguntas “se isso ou aquilo é arte”, “se é performance ou não” parecem um tanto comprometedoras. Nós, Corpos Informáticos, não costumamos responder tais perguntas aos transeuntes perplexos que acreditam, ou não, que nossas ações sejam arte. Deixamo-los soltos nas indefinições dos seus onze sentidos (Aquino & Medeiros, 2011). Nisso, escutamos destes mesmos questionadores não somente onze definições, onze sentidos para aquilo estar acontecendo, mas infinitas interpretações partindo de um único acontecimento.  A performance, por estabelecer um status de arte, pode-se manter distante do cotidianooudoquenãoéarte.Percebe-seque,quandoédadoonomede“performance” ou “arte” a uma situação de desvio, há a tendência da ação justificar-se e de não questionar-se. Essa tendência anestesia as tensões de quebra do status quo, perde espanto, como também gera um distanciamento da vida. A noção de distanciamento é para Arthur Danto (2005) uma dicotomia entre mundo imaginário e mundo real. Assim, quando a arte é provocada, é gerado um distanciamento por não a ver como realidade.   O trabalho fomenta e gera impacto independente dessa pergunta ser respondida. A questão é: se tal pergunta é tão recorrente, há mesmo necessidade de respondê-la? Nós, Corpos Informáticos, não nos vemos amarrados em definições de arte, transitamos na dúvida. Vemos necessidade de misturar as criações artísticas com qualquer banalidade. Por isso é possível responder: tanto faz se é performance ou não. No livro ATransfiguração do Lugar-Comum,Arthur Danto (2005) narra um episódio tangencial de uma exposição de sua curadoria, que consistia em obras de arte e coisas que não são arte. Todas as imagens eram equivalentes (retângulo ou quadrado vermelho pintado sobre uma superfície), mas Danto as descreveu com distinção. As diferenças estavam não só em suas significâncias, nos títulos, nas faltas de título, mas também na classificação de obras de arte e objetos que não correspondiam a esse status. Gera-se uma reflexão perturbadora. Arthur Danto pressupõe algumas formas de se definir um objeto como arte, analisando o hiato entre as “obras de arte” e as “meras coisas”, para assim observar
  • 46. Arte Comentada Capítulo 4 46 seus vazamentos. Nelas são feitas reflexões próprias e de filósofos para chegar a alguma formulação sobre arte e, em seguida, rebater cada uma destas teorias. Aqui, como em Danto, afirma-se para desconstruir. A definição de arte pode começar pelo título; intenção artística, expressão, símbolo, metáfora, representação, aparição, retórica, reflexão, convenção, filosofia da ação entre outras. Todas essas tentativas de definir arte - mencionadas a priori, na filosofia de Aristóteles, Platão e Sócrates – foram analisadas por Danto e, por conseguinte, vistas como insatisfatórias e assim detidas. O que não seria arte? (...) a distinção entre obras de arte e meras coisas reais é inescrutável. Portanto, nenhuma dessas teorias ajuda muito a estabelecer a linha divisória (...) pois ambos os objetos são descontínuos em relação a qualquer coisa preexistente. (Danto, 2005, p. 70) Em diversas discussões, a definição de arte é vista como resultado do negar o próprio ato de definir. Mergulhamos em contradição. O interessante nessa pesquisa não é a definição do que é arte (e o que não é), mas seus tropeços, seus saltos, seus labirintos. Desta maneira, um objeto ou uma ação entram em controvérsia, na impermanência entre a arte e uma coisa qualquer. Pode-se entender que as caixas Brillo (figura 3) copiadas por Andy Warhol são arte no momento que se encontram nas galerias e museus, e também entende-se que as caixas Brillo do supermercado não são arte. Essa definição e diferenciação é facilmente clara quando analisada em contextos distintos, quem sabe dicotômicos: entre instituição de arte e cotidiano. Esses objetos transfiguram seu lugar, porém conseguem se estabelecer em definições momentâneas a partir de seus contextos.  Figura 3: Andy Warhol. Brillo Box. Museum United.1964. Arthur Danto transgrediu a filosofia da arte para acompanhar a produção dos artistas daquele momento e localidade. Hoje, quarenta anos depois, nos encontramos
  • 47. Arte Comentada Capítulo 4 47 em um emaranhado muito mais complexo entre a arte e a vida. Não poderíamos acreditar que uma teoria de outro contexto nos seria suficiente. Com o embasamento do autor, poderíamos eleger objetos quaisquer como arte, mas não vemos necessidade de sublimação e hierarquia. Voltando à exposição birutas (e) vento, poderíamos jogar a arte no lixo ou falar para os funcionários da limpeza que era tudo lixo, não arte; ou quem sabe, encher a galeria de rastros nossos e do público – o que transmutaria o lixo em arte da mesma maneira por estar exposto em uma galeria de arte – mas não vem ao caso deixar a arte para tratar das “meras coisas”, ou transfigurá-las em arte. O que a teoria de Danto não discute são as osmoses que acontecem fora de espaços de convenção artística, as Composições Urbanas, as iterações do público dentro e fora das galerias, a mistura de todos os contextos, as redes que conectam, a internet, o esvaziamento do pensamento para uma prática artística. Chegamos a um ponto em que as fronteiras entre o imaginário e o real bambaleiam e andam bêbadas de mãos dadas, se contaminam uma na outra, criam um lance. Afinal “(...)como criar sem vida e como viver sem arte? ” (Mariana Brites, 2016, inédito). Fazemos arte no cotidiano, fazemos cotidiano na arte para que ambas se diluam por completo numa experiência caótica. Nesse entremeio, entendido como hiato ou lacuna, não há definições de caminhos a seguir. Boiamos em estado indeterminado flutuante. Podemos entender o mundo como um armazém repleto de tipos de coisas, onde não há um denominador comum. Esta ideia de armazém também é citada por Arthur Danto (2002) ao analisar o legado de Fluxus. A ironia da História desestabiliza a habilidade comum para distinguir as obras de arte do inventário do resto do mundo. Navegamos, pois nenhuma definição nos fará mais sábios. 3 | OFICINA DE NIILISMO Vamos a outro caso para reflexão. Durante o evento Performance Corpo Política de 2015 (http://performancecorpopolitica.net) realizado pelo Corpos Informáticos, distribuí boias aquáticas aos componentes do grupo e aos convidados do evento. Estávamos juntos para realizar um percurso de metrô até a Feira da Ceilândia: local onde seriam realizadas as performances do evento. (Figuras 4, 5, 6, 7 e 8) Já na distribuição e na tarefa de encher as boias, a sensação era de caos e bagunça por parte dos presentes. Não consegui explicar a todos que aquilo tratava de uma concepção niilista, titulada Oficina de Niilismo onde o nado era no nada e os entendimentos, as certezas, boiavam na paisagem.
  • 48. Arte Comentada Capítulo 4 48 Figura 4: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e corpos expandidos. Na foto: família Gunther, Matheus Opa, Luísa Gunther, Beatriz Provasi, Gustavo Silvamaral, Ary Coelho, João Quinto, Diego Azambuja, Bia Medeiros, Arthur Scovino, Natasha de Albuquerque, Zmário, Diego Torres, Vanderlei Costa, Ayla Gresta e Rômulo Barros. Fotografia: Matheus Carvalho Costa. Performance Corpo Política. Brasília, 2015. Queria e tentei organizar algo estético e artístico como uma coreografia de balé no qual as boias seriam tutus. Isso não se deu logisticamente e aconteceu de forma dessincronizada. Queria que todos inseridos estivessem entendendo a ideia do trabalho, que não era uma proposta gratuita por ter uma intenção inicial elaborada. Fracassada a comunicação uniforme sobre o assunto, partimos. Estes meus “quereres” foram bem contraditórios e incoerentes, uma vez que a concepção era o não saber. Estávamos entre artistas, todos no entendimento que fazíamos acontecer um evento de arte na rua, mas estávamos dispersos, baderneiros, sem uma linha condutora daquele instante e sem um acordo de que naquele percurso todos estariam fazendo performance, embora isso fosse um pouco óbvio já que estávamos fazendo performances nas ruas há dois dias. Alguns dançaram, outros nadaram no ar, também rolaram, outros nada fizeram, como outros dormiram. Houveram movimentos simbólicos (de intenção aquática, de balé, etc.), como também movimentos aleatórios que correspondiam ou nada correspondiam à ideia inicial ou, ainda, nada correspondiam a nada. Transeuntes aleatórios nos imitaram, vestiram boias, cantaram, fizeram cara feia, fingiram que não viram, filmaram, riram, reclamaram, perguntaram o que era aquilo, mas nem nós sabíamos ao certo.
  • 49. Arte Comentada Capítulo 4 49 Figura 5: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e corpos expandidos. Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015. Figura 6: Oficina de Niilismo.Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e corpos expandidos.Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015 Figura 7: Oficina de Niilismo. Proposta por Natasha de Albuquerque para Corpos Informáticos e corpos expandidos. Performance Corpo Política. Metrô. Brasília, 2015. Na Oficina de Niilismo ocorrem escapes de uma representação metafórica, ou melhor, demonstrações de particularidades das expressões mais comuns às desviatórias (Jacques, 2012) como práticas que escapam ao controle disciplinar através de ações singulares, plurais, multiformes, astuciosas e teimosas que contrariam e
  • 50. Arte Comentada Capítulo 4 50 sobrevivem a um sistema de conduta. São estas práticas: O cabelo alisado da mulher que passou, o bocejo, a cambalhota grupal, a dança altruísta, a artista no canto, o autista olhando, o senhor que sorriu e logo foi embora. É o que Arthur Danto define como estilos: aquilo que restou de uma representação. Já Corpos Informáticos, define toda essa bagunça em presentações, fuleragem e lance. Ainda que dissonantes, todos estes estilos se agrupam na Oficina de Niilismo mesmo sem vestir boias ou metaforizar um nado aquático ou decodificar o ocorrido. São inventadas na hora as diferentes modalidades da oficina: 1. Nado ou nada sincronizado: aglomeração de nadadores no nada. 2. Nádegas a declarar: nado onde as nádegas estão em evidência. 3. Balé de boias: as boias circulares são utilizadas como tutu de balé e os outros modelos como ajudantes da flutuação dos bailarinos. Esta modalidade também dialoga com a modalidade 1. 4. Tô de boias: relativo à estar de boas (gíria); não querer algo; ignorar algo sem causar um conflito; posição passiva de negação; fazer-se de desentendido. 5. Boiada: bando de gente nadando. 6. Nada com nada: Motivação ou solicitação aos nadadores permanecerem em colagem com o nada: “vai nadar lá com o nada”. 7. Nad(x): relativo ao gênero com falta de distinções do ato de boiar. As modalidades em branco correspondem ao que não foi inventado. Algumas explicações teóricas que não foram dadas: Tô boiando: gíria utilizada em momentos incompreensíveis, ou em momentos em que não se sabe o que está sendo dito e não há grandes esforços para entender. Bastante frequente em salas de aula. A sensação de estar boiando pode ser vista por terceiros como uma expressão de “cara de paisagem” em que se olha, mas não se vê. Método Scanning: modelo de apreensão visual proposto por Joseph Beuys. Consiste em sentir o próprio corpo em continuidade com a paisagem; estender suas linhas à linha infinita do horizonte. Muito utilizado por Beuys para requalificar a relação do humano com o espaço aberto e afagar as visões descontínuas e fragmentadas da cidade grande. Para esta oficina, o Método Scanning é sugerido para o deslizamento nas superfícies da paisagem (a paisagem como qualquer coisa em totalidade, imensidão. O ato de boiar também é proposto em ar e em olhar: corpo que boia no vento, olhar que não vê e se torna paisagem. Deriva: prática teorizada pelo situacionista Guy Debord que consiste em seguir um caminho não necessariamente óbvio, mas que se deixa levar pelo desejo e pelos sentidos. Guy Debord também teoriza a prática da Psicogeografia para análise do local. No caso, ficaremos com a parte de boas do Debord para contemplar o se perder e não necessariamente o saber. O que nos leva no acaso e descaso também faz parte
  • 51. Arte Comentada Capítulo 4 51 da deriva -não é necessário um destino. Figura 8: Oficina de Niilismo. Por José Mário Peixoto (Zmário) para transeuntes. Fotografia: Mateus Carvalho Costa. Performance Corpo Política. Brasília, 2015. Não estávamos em um espaço institucional de arte, a maioria era artista que não tinha certeza se estava performando porque isto não foi combinado nem descombinado, não foi declarado um começo da performance nem um final, nem que era performance, não foi dado um comando, apenas boias foram distribuídas. De fato, uma situação de desvio e uma performatividade coletiva aconteceram sem uma intenção incisiva. Estavam misturados: um evento de arte num lugar não instituído pela arte; artistas com e sem intenção de fazer arte misturados aos transeuntes que compuseram e decompuseram (DELEUZE, 2012); objetos estéticos elegidos para uma ação artística com a vulgaridade de lojas de atacado; a funcionalidade de uma boia para não se afogar com sua inutilidade no contexto não aquático, urbano ou metaforicamente líquido (BAUMAN, 2009); entre outras misturas retóricas. O que quero dizer é que neste acontecimento, intitulado como Oficina de Niilismo, não é possível delimitar o que faz parte do campo artístico e o que não faz parte, o que acontece como performance e o que é simplesmente vida cotidiana. As transfigurações entre arte e vida são instantâneas, se redobram, significam e designificam (sic) em questão de segundos. A própria ideia de “oficina” é um vazamento da titulação de uma obra de arte, que se diferencia da arte em si. Além disso, não houve pedagogia ou condução para este
  • 52. Arte Comentada Capítulo 4 52 acontecimento ser de fato uma oficina. Quero dizer que, a Oficina de Niilismo não é necessariamente uma oficina; nem obra de arte; nem uma expressão espontânea da vida, mas ela é todas estas juntas e emaranhadas. Rizoma. Não há necessidade de signos, metáforas correspondentes e significâncias para todo e qualquer objeto que colocamos na galeria ou para qualquer movimento feito no decorrer de uma performance. Não é necessário um título para que a criação aconteça, nem a convenção de uma instituição de arte. O que interessa é a integração, a mistura e a falta de diferenciações destes que desestabilizam o senso comum e normativo do status quo. Aqui, o ponto estratégico do trabalho é, portanto, a indefinição e a dúvida do status de arte. A arte e as coisas banais se engolem, se lambuzam e se misturam; causam perplexidade e dúvida; assim, potencializam-se mutuamente. Proponho o termo tanto faz se é performance ou não para diluir a seleção do que compõe e decompõe um trabalho de arte, como também para dissolver quaisquer definições se o ocorrido é necessariamente uma obra de arte: uma obra que duvida dela mesma. Digo que o trabalho não nega a arte como também não se firma nela, ele desliza em ambos sentidos como um estado flutuante e confuso intencionalmente. Busca-se nisso o estado de perplexidade, do não entender, de tratar do incoerente, de se confundir, transgredindo num caminho além-inesperado. Daí chegamos na multiplicidade, ou quem sabe, na complexidade de um rizoma. É interessante essa reviravolta de uma única coisa, definida como coisa, como arte, como nada, como inútil, transgressora, contemplativa, válida, inválida, inteligível, duvidosa, fracassada, imanente. Queremos obras transitórias de um único sentido. Queremos a liberdade de não se estagnar em um lugar e sair do entendimento exclusivo para o ambíguo, indeterminado, flutuante. AOficina de Niilismo tem continuidade por via dos transbordamentos de categorias e possibilidades. Está sempre recorrente quando as modalidades se apresentam na vida, num (e)vento, num olhar, num boiar e numa cara de paisagem. 4 | (IN)CONCLUSÃO Estamos em uma poética de atravessamento que não se resguarda em um único local, mas transmuta incessantemente e perde suas medidas. Tanto faz se é performance ou não. Tanto faz que façamos ações espontaneamente, tanto faz se o acontecimento é metrificado ou projetado anteriormente, tanto faz que isso signifique uma coisa muito importante para nós, tanto faz que tenha ou não sentido para existir. Nenhuma opção deixa de ser outra, todas as ambiguidades moram juntas e exercem seu lugar ao mesmo tempo. Que sejamos tudo e nada simultaneamente. Estamos em trânsito permanente. As definições de arte, assim como sua indefinição, são inevitavelmente
  • 53. Arte Comentada Capítulo 4 53 contraditórias. Quanto mais observamos as características da arte e do que não é arte, estamos diferindo uma da outra mesmo que a busca seja sua integração. Os conceitos parecem um anular o outro. A resposta para isto é chegar ao campo prático da experiência e não se estagnar nas dicotomias dos conceitos. As coisas podem ser criadas do nada, aniquiladas no nada, como também feitas para nada. Não seria transformar algo em nada, mas desvelar o visto, abandonar algo imposto e abrir espaço de indeterminações, flutuações ou novos começos. Considera- se o nada como um ponto de partida, o nado no lugar em que não se sabe e não se entende, a percepção vazia do espaço, o corpo que nasce em seu avesso e um perplexo que dá tilt nos entendimentos. O niilismo surge em contextos decadentes, de crise, enquanto a Oficina de Niilismo surge dos lugares abandonados, do vazio da cidade, do olhar obtuso e do entremeio não governado que supera as dicotomias rindo delas. Nos lançamos na falta de explicações. REFERÊNCIAS AQUINO, Fernando; MEDEIROS, Maria Beatriz de. Corpos Informáticos- performance, corpo, política. Brasília: Editora de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2011. ALBUQUERQUE, Natasha de; MEDEIROS, Maria Beatriz de. Composição Urbana: Surpreensão e Fuleragem. Revista Palco Giratório. Rio de Janeiro: SESC, 2013, p. 24 a 35. ALBUQUERQUE, Natasha. Manual Superficial de como as coisas advém do nada e outros conceitos (des)alfabéticos. Revista METAgraphias v. 1, n. 2 (1) antiARTE. p. 63-98, 2016. Bauman, Zygmunt. Vida Líquida. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.” Rio de Janeiro (2009). DANTO, Arthur C. A Transfiguração do Lugar Comum. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2005.              DANTO, Arthur C. Após o Fim da Arte- A Arte Contemporânea e os Limites da História. Tradução: Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.  DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é Filosofia? Tradução: Bento Prado Jr. E Alberto Alonso. Editora 34, São Paulo, 1992.        FUREGATTI, Sylvia. Contribuições de Joseph Beuys Para a Base Formativa da Arte Pública Atual. 09/2012, Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Online),Vol. 01, pp.686-701, Salvador, BA, Brasil, 2012 Internacional Situacionista: deriva psicogeografia e urbanismo unitário. Org: Erahsto Felício. Porto Alegre: Deriva, 2007.                                                                                                                         JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. EDUFBA, 2012.       O Que é Fluxux? O Que Não é! O Porque/What’s Fluxus? What’s Not! Why. J Hendricks, E Salles, AC Danto - 2002 - Centro Cultural Banco do Brasil.
  • 54. Arte Comentada Capítulo 4 54 https://natashadealbuquerque.hotglue.me/?toboiando http://performancecorpopolitica.net/
  • 55. Arte Comentada Capítulo 5 55 CAPÍTULO 5 ENTRE JANELAS E PESSOAS: EM BUSCA DE UMA ESCUTA CITADINA Thais Rodrigues Oliveira Doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Goiânia – GO. Sainy Coelho Borges Veloso Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB) com pós-doutorado em Cultura y Sociedad pela Universidad de San Martín, Buenos Aires. Orientadora da pesquisa e professora do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar Mestrado, Doutorado, em Performances Culturais da UFG. Goiânia – GO. RESUMO: A investigação aqui sistematizada procura circunscrever a problemática: os sons do cotidiano da cidade nos representam culturalmente? Há uma performance cultural, sonora, goianiense? Como ela se manifesta? Portanto, nosso objetivo primeiro foi identificar, coletar, registrar, sons em quatro lugares significativos para a cidade de Goiânia e, posteriormente, editá-los visando a realização de uma instalação sonora intitulada Janelas sonoras, a qual nos serve como investigação quanto à recepção dos sons selecionados. Para tanto, fundamentamos em autores teóricos como: Richard Schechner (1985; 2003; 2006), Lilian Campesato (2006; 2007), Bernd Schulz (1999), entre outros. Esperamos que essa experiência sensível, sonora, realizada como investigação poiética, contribua para a discussão dos sons como performance cultural sonora e nos permita entender a cultura local em sua diversidade. PALAVRAS-CHAVE: Performances Culturais; Performance Sonora; Instalação Sonora; Arte Sonora; Performance Urbana. ABSTRACT: This investigation seeks to circumscribe the issue outlined here: do the sounds of the city’s daily life represent us culturally? Is there a cultural, sonorous, performance of Goiânia? How does it manifest itself? Therefore our first goal was to identify, collect, record, sound in four places meaningful to the city of Goiânia and, posteriorly, to mix the sounds for the installation of a sound installation entitled Sound Windows, which serves as the investigation of the reception of the selected sounds. For this, we base theoretical authors as: Richard Schechner (1985; 2003; 2006), Lilian Campesato (2006; 2007), Bernd Schulz (1999), and others. We hope that this sensitive sound experience, performed as a poetic investigation, contributes to the discussion of sounds as a cultural sound performance and allows us to understand the local culture in its diversity. KEYWORDS: Cultural performances, Sound performance, Sound installation, Sound Art,
  • 56. Arte Comentada Capítulo 5 56 Urban Performance. 1 | INTRODUÇÃO Nesseartigodiscutimosumapropostaartísticadeinstalaçãosonoraaserrealizada na cidade de Goiânia, estado de Goiás. A produção artística é componente prático integrante da pesquisa em andamento, para doutorado no Programa Interdisciplinar em Performances Culturais, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (FSC/UFG). A investigação se intitula: “Performances sonoras: uma escuta do cotidiano goianiense” e tem como objetivo averiguar territórios mais expressivos sonoramente na cidade de Goiânia. Na primeira fase de pesquisa escutamos, coletamos, registramos e transcrevemos sonoridades mais expressivas da cidade, apontando repetições e sons específicos de Goiânia. Em um segundo momento, como indicado nesse artigo, vamos explorar essas sonoridades com a proposta de realização de uma instalação sonora. Interessa-nos, portanto, a linguagem artística a partir da sonoridade (o que alguns teóricos denominam como arte sonora), bem como a relação entre a obra artística e a percepção dos sons pelos habitantes da cidade. Ainstalação artística sonora complementa o estudo teórico, bem como o mesmo é basilar para a primeira. Para tanto, privilegiamos uma abordagem interdisciplinar, com diferentes autores e conceitos, característica do campo de estudos em Performances Culturais, um campo interdisciplinar. Estes estudos se propõem a construir um conhecimento aberto, múltiplo, no qual é possível respeitar cada um dos territórios particulares de conhecimento, analisando-os conjuntamente aos contextos históricos e culturais da sociedade. A partir do diálogo entre autores buscamos refletir nesse artigo a respeito da realização de uma experiência sonora que possibilite ao ouvinte a descoberta de várias sonoridades de seu meio cultural. Quando falamos de experiência referimo-nos à apreensão corporal em ação ao experimentar choques emocionais instantâneos, muitas vezes involuntários. Nesse processo, segundo Eduardo Duarte Gomes da Silva (2015, p. 73), “a memória toca a superfície da ação, pois precisa acionar um repertório de referências de reações imediatas em interação com o mundo”, uma vez que é formada pelas experiências emotivas. Dessa maneira, a memória, ainda segundo o autor, participa efetivamente e continuamente da relação do corpo com o mundo. A tríade experiência, emoção e memória compõem as circunstâncias históricas, contextuais e práticas dos fenômenos sociais. Impossível desconsiderar o rico imaginário que produzem em referências, em estruturas míticas, ideias, crenças e desejos, religando o mundo dos fenômenos práticos, experimentados pelos sentidos, com o mundo dos pensamentos cognitivos, capazes de escreverem o mundo (SILVA, 2015). Portanto, trata-se de uma experiência sensível, poiética. Assim, por meio da experiência sonora acreditamos apreender a
  • 57. Arte Comentada Capítulo 5 57 cultura, em sua diversidade, ao mesmo tempo em que a pensamos para a criação, pois como afirma Passeron (2004, p. 10), a poiética “é o pensamento possível para a criação”. Dessa forma, ambas – a investigação e a criação artística – têm o poder de se autoinfluenciarem nesse processo. 2 | PERFORMANCES CULTURAIS E ARTE SONORA: EM BUSCA DE UMA PERFORMANCE SONORA CULTURAL O que nos apresenta um som? Fisicamente, é o resultado de percepções de distúrbios das moléculas de um meio num certo intervalo de tempo, ou seja, o som é produzido quando alguma coisa faz o ar se mover e isso acontece por meio da compressão e rarefação do ar. Portanto, se o som se movimenta pelo ar, a nossa experiência no mundo é intimamente sonora, porque fisicamente o som nos atravessa. O som nos orienta no espaço físico e social. Localiza-nos em determinado tempo histórico. Ao escutar uma sonoridade podemos ser capazes de relembrar de pessoas especiais, momentos e situações cotidianas vividas no passado e também no presente de maneira individual ou coletiva. Ao reconhecer o som como um elemento capaz de gerar uma linguagem que remete a codificações diversas, ou seja, a vários símbolos e significados, é recorrente a utilização do termo sonoridade. Uma sonoridade pode ser composta por falas (combinação de sons da voz humana organizados em uma ordem lógica para o entendimento da palavra falada), música (composta de sons que se formam a partir de pressões acústicas cíclicas e do silêncio) e de ruído (que não possui ciclo definido e contém frequências distintas entre si). Assim, a sonoridade se constitui de situações sonoras, muitas vezes não perceptíveis por nós, uma vez automatizadas em nossas ações diárias. Elas são capazes de gerar informação e podem carregar um universo gigantesco de significados. A força imaginativa do som e sua relação com a identidade e memória de um povo reforçam a sua importância nas diversas práticas sociais. Destarte, podemos afirmar que ao produzir som estamos realizando uma performance sonora. O termo performance tem origem incerta e a nós interessa mais sua definição do que buscar o lugar comum de sua produção. O termo aqui utilizado se assemelha a uma espécie de atuação, no sentido psicanalítico do termo, em que a emoção real é simbolizada por um elemento da própria cultura, por exemplo, o som como forma de comunicação não-verbal. Isso significa que a coesão social se mantém permanente, todavia, evidencia um conflito; a agitação social preserva-se de certa forma inconsciente. Ela corresponde ao drama vivido pela cultura e, consequentemente, as emoções raramente são explicitadas e reconhecidas. O campo de Estudos das Performances Culturais elabora um conceito plural, que Sainy Veloso (2014) define como um campo de estudos configurado pela combinação interdisciplinar de distintas áreas do conhecimento, tendo como base estudos que
  • 58. Arte Comentada Capítulo 5 58 entrecruzam três matrizes: a sociológica, de Erving Goffman (2001; 2011; 2012); a antropológica, de Victor Turner (1974; 1985; 2008); e a teatral, desenvolvida pelo teatrólogo Richard Schechner (1985; 2003; 2006). Esse campo de estudos “engloba a experiência vivida, ou seja, os aspectos informais da vida cotidiana e do comportamento humano, indo muito além das artes do espetáculo ou da dicotomia entre arte e vida” (VELOSO, 2014, p. 195). Quando referimos à performance da vida, a cultural, estamos compondo as Performances Culturais, um conceito que deve ser citado no plural, como manifestações múltiplas, uma vez que performances culturais se constituem pela identificação, registro e análise de determinado fenômeno em suas múltiplas configurações, em seu processo contraditório de formação, de constituição e de movimento, de estrutura e de gênese, de ser e de vir a ser, na percepção deste fenômeno em diálogo com estruturas gerais das tradições e pelas transformações estabelecidas a partir de formas culturais contemporâneas. Performances Culturais, mais uma vez sempre no plural, são a busca da determinação do que foi, do que é e do que se pode tornar, não apenas um levantamento ou registro particular do “essencial” de determinada cultura, mas como uma forma em processo de diálogo. (CAMARGO, 2013, p. 10, grifo do autor). Complementa o conceito de Robson Camargo, acima mencionado, o de Richard Schechner (2006). Este autor acredita que as performances culturais consistem em comportamentos duplamente exercidos, codificados e transmissíveis, definindo que as performances culturais “marcam identidades, modificam e redimensionam o tempo, enfeitam e remodelam o corpo, contam histórias, permitem que se jogue com condutas repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas, apresentadas e representadas tais condutas” (SCHECHNER, 2006, p. 13). Os estudos das Performances Culturais buscam, portanto, o estudo da performance da cultura, comparando as múltiplas civilizações e suas representações, as práticas sociais, buscando o “entendimento das culturas através de seus produtos ‘culturais’ em sua profusa diversidade, ou seja, como o homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe” (CAMARGO, 2013, p. 1). Nesse sentido, as sonoridades urbanas são produtos culturais fabricados pelos habitantes da cidade que representam essa cultura em forma de som. A arte sonora também está circunscrita em um campo interdisciplinar. Localizada entre a música e algumas formas de expressões artísticas, a discussão sobre o lugar que o som ocupa nas artes é motivo de pesquisas e indagações, sendo debatida por diversos estudiosos a partir de seus diferentes pontos de vista. Dan Lander (1990) reforça, por exemplo, a dificuldade que alguns artistas sonoros encontram na definição de suas obras, pois desde o seu surgimento, a arte sonora foi considerada como um movimento à margem da linguagem musical. Lilian Campesato (2007) esclarece que Luigi Russolo, com a criação do manifesto de 1913 em que classifica os tipos de ruídos sonoros, foi um dos primeiros artistas a incluírem o som na arte, ao utilizar som/ ruído em contraste com a tradição clássica da música.
  • 59. Arte Comentada Capítulo 5 59 Em sua pesquisa a respeito de um conjunto de obras determinadas como “obras de arte sonora”, Lilian Campesato (2007, p. 63) define o termo como “uma reunião de manifestações artísticas que estão na fronteira entre a música e outras artes, em que o som é um material de referência dentro de um conceito expandido de composição, gerando um processo de hibridação entre som, imagem, espaço e tempo”. Para Campesato e Iazetta (2006), o surgimento do termo específico para esse campo tem alicerce em trabalhos de artistas como as performances do grupo Fluxus e John Cage, trabalhos audiovisuais de Nam June Paik, Norman Mclaren, Oskar Fischinger entre outros. Esses artistas auxiliaram na consolidação do termo e sua divulgação enquanto forma de arte. A respeito da arte sonora a autora afirma que na arte sonora o espaço real em que a obra se apresenta é parte da própria obra. E não são apenas os elementos “acústicos” do espaço que entram em jogo, mas sim a totalidade de sentidos que o espaço gera: dimensão, cor, textura, imagem, superfície, forma, projeção, etc. Cada um desses elementos pode adquirir um significado especial dentro da obra. (CAMPESATO, 2007, p. 134, grifo do autor). De forma interdisciplinar “a arte define-se como um lugar de importação de métodos e conceitos, uma zona de hibridações” (BOURRIAUD, 2009, p. 143). Sons também são produtos de ambientes sonoros culturais, percebidos e interpretados por uma audiência que recebe informações audíveis e as interpreta, dando a elas um caráter sígnico ou simbólico, segundo sua experiência cultural audível. A arte sonora tem, portanto, um caráter híbrido. As paisagens sonoras são constituídas por práticas sociais inscritas em espaços urbanos que configuram modos de sentir e de fazer comunidade. Mas como seriam recebidos e assimilados os ruídos que estão a nossa volta, na cidade de Goiânia? Na tentativa de esclarecer esse questionamento estamos consideramos o ruído sonoro como fonte de dados sociais em que “necessitamos registrar e transcrever o evento sonoro para fins de análise” (BAUER, 2002, p. 366). Sons próprios e simbólicos pertencentes à paisagem da cidade caracterizam o que chamamos de performance sonora cultural. Combinando estudos das sonoridades e do campo de estudos das performances culturais esperamos obter características que auxiliem em uma escuta citadina por parte dos habitantes goianienses no que diz respeito a sua performance sonora cultural.Assim, tomamos como performance sonora cultural a manifestação de uma ação sonora expressiva do indivíduo no ambiente em que está inserido, espontânea ou não. 3 | A CIDADE DE GOIÂNIA E SUA PERFORMANCE SONORA CULTURAL: A DEFINIÇÃO DOS LOCAIS PARA GRAVAÇÃO DE SONS A cidade como campo de pesquisa possibilita diferentes abordagens a respeito das representações que formam a identidade local. José Guilherme Cantor Magnani (2016), um dos grandes pesquisadores em antropologia urbana do país, afirma que
  • 60. Arte Comentada Capítulo 5 60 para a realização da pesquisa etnográfica urbana, é importante que o pesquisador busque por um olhar “de perto e de dentro”. O autor usa essa proposta de análise, em contraste com o que ele categoriza como “de fora e de longe”, para reforçar que a etnografia pode cooperar no conhecimento da dinâmica urbana em sua diversidade. Magnani (2016) considera que um olhar “de longe e de fora” prioriza uma análise sobre a cidade de maneira mais genérica, com um ponto de vista “macro” (vai buscar para análise dados das grandes variáveis da cidade: demografia, ordem econômica, entre outros), recorrente em alguns estudos da geografia. Um olhar “de perto e de dentro” seria mais detalhista que, com base no olhar etnográfico, busca entender a cidade a partir do modo de vida de seus atores sociais. A perspectiva “de perto e de dentro” é uma proposta que inicia, segundo o autor, uma “apreensão dos padrões de comportamento ̶ não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre, por meio dos seus criativos arranjos, na paisagem da cidade e em diálogo com seus equipamentos” (MAGNANI, 2016, p. 185). Os ruídos emitidos por pessoas que habitam a cidade e produzem sons cotidianos ao falar, andar, dirigir seus carros, pegar ônibus, fazer compras, comer e tudo o que se trata de atividades que realizam no contexto social, constituem uma performance cultural goiana a medida em que gestos, falas, modos e maneiras de agir e reagir, objetos e uso de máquinas fazem parte de um modo cultural de cada povo, de cada cultura. Goiânia completou 84 anos de existência no ano de 2017, abrindo uma nova fronteira de imigração para o estado de Goiás e se tornou símbolo de modernidade urbanística na década de 30 para o Brasil. A cidade foi projetada na década de 1930, para pouco mais de 50 mil habitantes, e hoje possui cerca de 1.466.105 habitantes (segundo dados do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - coletados em 2017. Já a região metropolitana possui 2.458.504 habitantes). Erguida sob o discurso da modernidade, Goiânia teve o estilo arquitetônico art déco predominante em sua construção. O termo art déco refere-se a um estilo decorativo, luxuoso, destinado à burguesia enriquecida do pós-guerra, que se afirma na arquitetura europeia no período que vai de 1925 até 1939. Segundo dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, on-line), a cidade de Goiânia possui atualmente o maior acervo arquitetônico de art déco do Brasil. Uma cidade como Goiânia está carregada por diversas representações sociais (MOSCOVICI, 2003) que marcam sua história e definem sua paisagem. Como toda grande cidade é carregada acusticamente por ruídos sonoros: os carros que passam na rua, as pessoas falando, o celular que apita com uma nova mensagem de Whatsapp, o caminhão de coleta seletiva, o vendedor de pamonha, entre outros. Na tentativa de recolher e capturar alguns sons característicos da cidade, elegemos quatro pontos públicos da cidade de Goiânia – alguns de maior frequência de seus habitantes e outros pontos históricos. Os quatro locais selecionados para captação de sons foram:
  • 61. Arte Comentada Capítulo 5 61 a Feira Hippie, a região da pecuária de Goiânia, o estádio de futebol Serra Dourada e o bairro central da cidade. Uma das práticas sociais mais frequentes na cidade de Goiânia tem relação com as feiras de roupas e artesanato que acontecem diariamente em vários bairros diferentes. Goiânia é conhecida como grande polo confecção e recebe turistas de todo o país que vem para a cidade na intenção de comprar produtos mais baratos para revenda em outras localidades brasileiras. Elegemos para a pesquisa a feira mais conhecida da cidade que tem o nome de Feira Hippie. A feira Hippie de Goiânia é a maior feira aberta ao ar livre do Brasil e da América Latina (com mais de seis mil expositores, conforme reportagem de O Popular em 2013). Acontece todo final de semana na cidade e está localizada na Praça do Trabalhador – Setor Norte Ferroviário, com um horário de funcionamento que começa no sábado à tarde e termina domingo às 15 horas. A festa agropecuária de Goiânia foi fundada no ano de 1941 e permanece como uma das festas mais tradicionais da cidade. Ocorre em uma região central da cidade e ocasiona tumulto no tráfego de carros durante o período em que acontece. A festa se realiza anualmente nos meses de maio, tendo em média a duração de trinta dias. São expostos animais do campo, máquinas agropecuárias, shows com artistas famosos, torneios de laço e rodeio são executados. Escolhemos a festa agropecuária de Goiânia para a captura de sons, pois a atividade agropecuária tem grande destaque no estado de Goiás. Além disso, essa festa popular reúne até quarenta mil pessoas por ano, e aos sábados, a região comporta uma feira livre conhecida como Feira da Marreta, onde é possível a troca de produtos diversos (novos e usados) entre os consumidores. Outro local escolhido foi o estádio de futebol Serra Dourada, inaugurado na cidade de Goiânia no dia 09 de março de 1975. Na data de sua inauguração o estádio contava com uma capacidade máxima de lotação para oitenta mil pessoas. Com o fechamento da parte denominada de “acesso geral”, o estádio tem atualmente capacidade para cinquenta mil pessoas.Apesar dos times de futebol da cidade de Goiânia não possuírem tanta fama nacional na mídia televisiva, os jogos dos times goianos tem um público ativo e volumoso, além de torcidas organizadas bem estruturadas e articuladas na cidade. O espaço do estádio Serra Dourada também comporta diversos shows entre eles um dos maiores festivais de música sertaneja do Brasil: o Villa Mix Festival. A Região Central de Goiânia foi erguida na época da fundação da capital, juntamente com a inauguração de sua pedra fundamental no dia 24 de outubro de 1933. Arquitetada em pleno Cerrado goiano, o projeto inicial de toda a cidade que previa as três avenidas (Avenidas Goiás, Tocantins e Araguaia), convergindo para o palácio do governo (Praça Cívica), atualmente delineia e compõe o bairro central da cidade, escolhido para a pesquisa, portanto, por ser o primeiro bairro fundado na cidade. Segundo Bauer (2002, p. 386), “os materiais sonoros são um campo ainda virgem, esperando seu emprego metodológico nas ciências sociais”. Para o autor, o som
  • 62. Arte Comentada Capítulo 5 62 precisa ser considerado como um meio de representação simbólica, fonte útil de dados sociais. Ele compreende que a pesquisa qualitativa com som deve ser feita de maneira que possam ser registrados sons para que seja possível obter algum traço material. Tais sons devem ser transcritos para que possa ser possível identificar repetições ou características especificas correspondentes aos eventos vinculados a esses sons. Por fim, “esses eventos sonoros tem lugar no contexto de um sistema social, cujas operações nós queremos compreender, através do exame de sua produção e recepção sonoras” (BAUER, 2002, p.367). O autor propõe um “passeio de escuta” que consiste em realizar um passeio no ambiente em que os sons serão analisados. Ao mesmo tempo, escutar conscientemente os ruídos que seriam esquecidos em outra atividade. Após a realização do “passeio de escuta”, o autor recomenda que seja realizado um “diário de sons” que consiste em “uma técnica [...] na qual tomamos uma amostra de tempo por dia, ou um período mais longo, para registrar e/ou descrever, em intervalos predeterminados, por exemplo, a cada 30 minutos, os ruídos que são audíveis naquele momento (BAUER, 2002, p. 375). De tal maneira, com um diário de campo em mãos e um gravador de sons ligado comecei a realizar a observação e escuta dos ruídos nos quatro ambientes selecionados para essa pesquisa. Anotei todas as impressões, meu trajeto nos espaços, os minutos de observação, dias e intervalos de tempo escutados. Os aparelhos utilizados para gravação de sons nessa pesquisa são de fundamental importância, pois a partir deles que são feitos os registros materiais das sonoridades escutadas. Foram utilizados dois gravadores de som: o primeiro, um gravador de áudio TASCAM HD P2 (gravador digital de áudio de alta resolução), que é maior e chama a atenção de quem o vê. Pensando nisso, em algumas situações utilizei o segundo gravador, o M AUDIO Microtrack II, mini gravador digital de áudio que, por ser pequeno e do tamanho de um celular, torna a gravação mais acessível em lugares muito cheios sem chamar muito a atenção. De acordo com a ocasião, por conta do ambiente no momento da gravação, foram utilizados também os seguintes microfones: Shotgun Sennheiser ME 66 (microfone ultradirecional, que tem a potencialidade de direcionar o foco da gravação de sons, sendo um microfone capaz de capturar sons a longas distâncias); o microfone Behringer B2 (microfone que grava todos os sons a sua volta com o mesmo volume) e o microfone lapela Sennheiser Lapela EW 100 G2 (que pode ficar escondido na roupa e capta sons próximos ao local em que foi fixado). Estes equipamentos auxiliam na captura em alta qualidade das sonoridades escutadas, assemelhando-se ao som que o ouvido humano é capaz de escutar, possibilitando uma análise mais próxima da sonoridade cotidiana existente a nossa volta na cidade de Goiânia. Durante o período de um ano de meio foram coletados ruídos sonoros nas quatro regiões acima mencionadas, totalizando mais de trinta horas de som gravadas em alta qualidade. A partir dessas gravações, selecionamos e editamos os sons, uma vez que muitos deles eram iguais, mesclados a outros diferentes. São esses sons que comporão a instalação artística.
  • 63. Arte Comentada Capítulo 5 63 4 | O PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA: AS JANELAS SONORAS A arte sonora tem grande campo de exploração. Esperamos que a partir da sonoridade e de uma performance artística, seja possível refletir e problematizar sobre o modo pelo qual ocorrem os processos de recepção dos sons cotidianos. Mas como reproduzir em uma instalação sonora essa provocação de significados? Como localizar o ouvinte na cidade de Goiânia a partir da instalação sonora? A escuta é artifício fundamental na realização da pesquisa de doutorado em questão. O primeiro processo de escuta foi feito pelas pesquisadoras durante a escuta das sonoridades nas quatro regiões escolhidas para a pesquisa. A instalação sonora propõe um segundo processo de escuta, a ser vivenciado pelas pesquisadoras e pelos transeuntes da via pública que presenciarem a reprodução dos sons no momento da execução da instalação sonora. Roland Barthes (1990) define uma diferença básica entre ouvir e escutar. Para o autor, ouvir dependeria somente do ato físico do ouvido em receber sons, enquanto a escuta depende da atenção, da memória, da seleção de sons. Escutar implica uma atenção minuciosa para as vibrações sonoras. Escutar não é uma ação inconsciente, mas uma ação em que forçamos a percepção seletiva dos sons que nos rodeiam. O ato de escutar contribui para a descoberta de novas possibilidades que nos escapam durante a rotina cotidiana. O termo instalação artística surge com uma proposta de explorar o espaço tridimensional: “o artista realiza seu trabalho no próprio espaço, juntamente com outros possíveis elementos presentes neste” (BOCHIO; CASTELLANI, 2011, p. 3), e ainda: esta modalidade artística se insere na arte de participação, já que sua fruição depende de deslocamentos corporais e situações a serem vividas naquele tempo e espaço por processos de inclusão e/ou de interação. As descobertas do espaço proposto pela instalação desencadeiam-se através de um sistema relacional, que opera através da conexão das várias partes que compõem a instalação. (BOCHIO; CASTELLANI, 2011, p. 4). Como mencionam os autores na citação acima, a instalação implica na presença de público no espaço em que a obra vai acontecer. Uma vez localizadas as definições que circundam o termo instalação artística, nos propomos à realização da nossa obra artística, em forma de instalação sonora. A artista e pesquisadora Raquel Stolf coloca que: “proposições sonoras apresentam-se como planos de partida e podem solicitar uma participação do corpo, de ações físicas, como podem solicitar atos mentais, esperas e outras situações como modulações de escuta” (STOLF, 2008, p. 54). Considerando que o ato de criação resulta de uma recriação inspirada em diversos autores e artistas, para a concepção dessa instalação sonora, baseamos em dois artistas conhecidos mundialmente: Luigi Russolo (1885-1947) e John Cage (1912-1992). Luigi Russolo (artista futurista italiano), pois o seu manifesto publicado em 1913, “L´Arte dei Rumori” (Arte de Ruídos), já indicava que era preciso dedicar atenção à escuta dos ruídos a nossa volta. John Cage (compositor e artista), porque
  • 64. Arte Comentada Capítulo 5 64 foi um grande investigador das questões que envolvem o som e a escuta. Mas existe também inspiração em trabalhos de dois artistas brasileiros: Raquel Stolf e Floriano Romano. Raquel Stolf com as pesquisas: “assonâncias de silêncios [sala de escuta]”, 2008-2010, “sou toda ouvidos” (2007-2010), “céu da boca” (2009-2010). Floriano Romano com instalações sonoras e pesquisas como: “a cidade sonora” (2012), “falante” (2007), “sapatos sonoros” (2009), “lugares e instantes” (2008). Destacamos que os dois pesquisadores estudam e investigam as situações de escuta. Apresentar a cidade sonoramente aos seus habitantes foi o que nos instigou à pesquisa. Pensar e produzir artisticamente uma investigação que possibilite a provocação de significados a partir das sonoridades em determinado público poderá se tornar um suporte para entendimento dos processos de escuta dos indivíduos na sociedade goianiense. Esperamos que com isso, “a obra de arte torne-se um experimento de percepção, em que o ouvinte/espectador rastreie experiências que o próprio artista teve, através da obra” (SCHULZ 1999, p. 25), além de suas próprias experiências sonoras. Atenta às colocações de Schulz (1999) e na busca pela escuta citadina, surgiu a proposta de instalação artística: Janelas Sonoras. Para a realização dessa instalação escolhemos um prédio antigo da capital, pela sua importância arquitetônica e cultural para a cidade. O prédio, conhecido como Grande Hotel, foi o primeiro hotel da cidade, construído na época da fundação de Goiânia, ao estilo art déco. O edifício fica localizado em um cruzamento de ruas bem movimentadas da região central: Avenida Goiás e Rua 03, conforme podemos ver na Figura 1. Figura 1 – Fotografia Panorâmica da Fachada do Grande Hotel em Goiânia Fonte: Thais Oliveira (2017). Campesato e Iazetta (2006, p. 777) afirmam que uma instalação sonora ocorre quanto “som é o elemento unificador da obra, seja pela ressonância dos espaços e objetos, seja pelo aspecto conceitual em que o som se insere”. Para a proposta de execução da instalação sonora discutida nesse artigo, pretendemos posicionar uma caixa de som para cada janela do Grande Hotel. Com as caixas de som posicionadas em
  • 65. Arte Comentada Capítulo 5 65 cada janela, reproduziremos alguns dos sons já coletados na pesquisa de doutorado, formando assim, janelas sonoras no centro da cidade de Goiânia. Cada janela vai reproduzir um som diferente. Serão, portanto, simultaneamente, 41 sons diferentes reproduzidos ao mesmo tempo. Raymond Murray Schafer (2011, p. 189) afirma que as sonoridades podem ser classificadas “de acordo com suas características físicas (acústica) ou com o modo como são percebidos (psicoacústica); de acordo com sua função e significado (semiótica e semântica); ou de acordo com suas qualidades emocionais ou afetivas (estética)”. Do mesmo modo, Martin W. Bauer (2002) sugere um tipo de catalogação dos sons em que devem ser considerados: a quantidade de ciclos (quantas vezes são reproduzidos), as sonoridades (quem ou o que as produz) e o tipo de som (alta ou baixa fidelidade, grave, médio ou agudo). Por esse viés, seguiu nossa metodologia, atentando-nos aos ensinamentos dos autores: coletar, registrar, transcrever e associar a sonoridade, bem como registrar observações de maneira detalhada em diário de campo – ao grupo social que a produz. Tais recomendações coexistem com os ensinamentos da interação social do método etnográfico, no que se refere à produção de conhecimento sobre a “realidade”. Como dito anteriormente, essa instalação sonora nasce do próprio processo de escuta da pesquisadora e sua apreensão sobre os sons da cidade de Goiânia nas regiões escolhidas para a pesquisa. Os sons escolhidos para a reprodução na instalação sonora foram sons que se repetiram nos quatro ambientes selecionados e outros sons que são característicos da cidade de Goiânia, destacando-se como marcas sonoras. Uma marca sonora faz referência a um som único que possui “determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado pelo povo daquele lugar” (SCHAFER, 2011, p. 27). Dentre os sons repetidos destacam-se: o som do caminhão de coleta seletiva de lixo da cidade, som de vários periquitos cantando em árvore no fim da tarde, som de passos dos caminhantes da cidade, som de fogos de artifício lançados para o céu, som de cascos de cavalo andando pela cidade, som de do galo cocoricando, som de carrocinhas de reciclagem, som de buzinas som de ônibus de bairros, som de carros, som de motocicleta. Já entre os sons caracterizados como marcas sonoras podemos destacar: o som de um caminhante na Avenida Anhanguera gritando “Vilaaaaaa” em referência a um time de futebol da capital, som dos transportadores de carga na Feira Hippie, som de fritura de pastel, o som do vendedor de pamonha que anuncia a venda de seu produto em uma bicicleta, som de ambulantes vendendo chip para celulares. Há também o som de ambulantes à procura de compradores de ouro, som do vendedor de picolé, som do vendedor de bosta em formato de argila na Feira Hippie, som de trechos de show da Pecuária, som de trechos de show do festival Villa Mix, som de torcida organizada de futebol, som de vendedor de roupa e de vendedora de comida na Feira Hippie. No centro da cidade escutamos o som de vendedor de sitpass (bilhete
  • 66. Arte Comentada Capítulo 5 66 eletrônico adquirido por passageiros de ônibus para que possam utilizar os serviços prestados pelas companhias de ônibus que circulam na cidade de Goiânia), em outra região escolhida o som do estádio de futebol vazio, som de amendoim sendo comido por torcedores no estádio, som de bola de futebol no estádio Serra Dourada, som de vaca mugindo, som de crianças brincando no parque de exposição agropecuária de Goiânia. A intenção da proposta da instalação sonora é dar “voz” para esse prédio histórico da cidade, que metaforicamente a partir das janelas estaria “falando” ruídos sonoros, ou seja, dando de certa forma visibilidade aos ruídos sonoros que geralmente, no cotidiano, passam despercebidos por nós. Pela instalação sonora buscamos propor uma escuta memorialística, “de perto e de dentro” da cidade de Goiânia, fazendo referência à proposta de estudo em ambientes urbanos realizado por José Guilherme Cantor Magnani (2016), mencionado neste artigo. Com um volume amplificado de forma semelhante à emissão dos ruídos do cotidiano, esperamos que os sons selecionados e reproduzidos na instalação sonora se misturem aos sons do ambiente, no caso em questão, na fachada do Grande Hotel. A instalação sonora acontecerá durante um dia inteiro, das 9h às 19h na cidade de Goiânia, Goiás. A cada hora cheia serão reproduzidos durante cinco minutos e de forma simultânea, os ruídos sonoros coletados na primeira fase da pesquisa de doutorado. Durante a reprodução dos sons, estaremos com uma equipe de pesquisadores voluntários posicionados na fachada do Grande Hotel, para auxiliar na divulgação da performance artística e recolher respostas de passantes da via pública a respeito da sonoridade escutada. A participação dos transeuntes na pesquisa é voluntária. Para tanto, utilizaremos como instrumento de sondagem um questionário para coleta das percepções desses ouvintes, transeuntes, em relação a esses sons, seus reconhecimentos e significações. As perguntas básicas versarão sobre: o que é som para você? O que é ruído sonoro? Você se reconhece nesses sons? Por quê? Qual é o som do seu cotidiano? O que lhe agrada e o que lhe incomoda nos sons de seu cotidiano? Tal estudo objetiva verificar como esses sons são recebidos e interpretados pelos transeuntes. As entrevistas serão gravadas e, posteriormente, discutidas e analisadas para a sistematização do conteúdo e produção textual. 5 | CONSIDERAÇÕES Pensamos que as manifestações sonoras dos indivíduos no ambiente urbano expõem e criam vínculos afetivos resultantes do conflito individual, mas permeados por questões relativas a conflitos coletivos. Tais vínculos e conflitos são percebidos através dos sons da cidade, conferindo-lhe uma textura sonora única frente à cultura local, o que denominamos como performance sonora cultural. Ao propor uma compreensão das representações sociais, do imaginário e dos conflitos, a partir da sonoridade local, esperamos apreender alguns referentes culturais que
  • 67. Arte Comentada Capítulo 5 67 delineiam a paisagem da cidade de Goiânia. A pesquisa, nesse sentido, efetivará nossas percepções e possíveis entendimentos do que pressupomos como performance sonora, paisagem sonora citadina e performance cultural sonora. Desse modo, estaremos contribuindo com a memória sonora e, consequentemente cultural da cidade de Goiânia, por meio de uma investigação poiética, bem como de sua recepção. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: ensaios críticos III. São Paulo: Nova Fronteira, 1990. BAUER, Martin W. Análise de ruído e música como dados sociais. In: ______; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução Pedrinho A. Guareschi. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. BOCHIO, Alessandra Lucia ; CASTELLANI, Felipe Merker. Espaços entre o sonoro: uma abordagem sobre as instalações artísticas e as noções de interatividade e desmaterialização. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE MÚSICA E ARTE SONORA, 2011, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora, MG: UFJF, 2011. Disponível em:< http://www.ufjf.br/anais_eimas/files/2012/02/ Espa%C3%A7os-entre-o-sonoro-uma-abordagem-sobre-as-instala%C3%A7%C3%A3o- art%C3%ADsticas-e-as-no%C3%A7%C3%B5es-de-interatividade-e-desmaterializa%- C3%A7%C3%A3o-Felipe-Merker-Castellani-Alessandra-Lucia-Bochio.pdf >. Acesso em: 9 dez. 2016. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as Performances Culturais: um conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise. Karpa 6, Los Angeles, 2013. Disponível em:< http:// www.calstatela.edu/sites/default/files/users/u1801/robsonpdf.pdf >. Acesso em: 02 jul. 2017. CAMPESATO, Lílian. Arte Sonora: uma metamorfose das musas. 2007. 179 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ______; IAZETTA, Fernando. Som, espaço e tempo na arte sonora. In: XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (ANPPOM), 2006, Brasília. Anais... Brasília: UnB, 2006. p.775-780. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução Maria Célia Santos Raposo. 13. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. ______. Manicômios, prisões e conventos. Tradução Dante Moreira Leite. 7. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. ______. Ritual de Interação. Ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis/RJ: Vozes, 2012. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. População. Disponível em< https://cidades.ibge. gov.br/brasil/go/goiania/panorama>. Acesso em: 10 set. 2017. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Goiânia (GO). [on-line]. Disponível em:<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/361/>. Acesso em: 10 set. 2017. LANDER, Dan. Introduction to Sound by Artists. In: ______; LEXIER, Micah (Ed.). Sound by
  • 68. Arte Comentada Capítulo 5 68 Artists. Toronto: Art Metropole/ Phillips Gallery, 1990. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Antropologia Urbana: desafios e perspectivas. Revista Antropologia, São Paulo, v. 59, n. 3, p. 174-203, 2016. ______. De perto e de dentro: um novo olhar sobre a cidade. GV-executivo, v. 12, n. 2, jul./dez. 2013. MELONI, Juan. É dia de feira, e de suas delícias. O Popular. Magazine. 28 ago. 2013. Disponível em:< https://www.opopular.com.br/editorias/magazine/%C3%A9-dia-de-feira-e-de-suas- del%C3%ADcias-1.384979>. Acesso em: 28 nov. 2016. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. PASSERON, Rene. A poiética em questão. Revista Porto Arte, Porto Alegre, v. 1, n.21, jul./nov. 2004. SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto de nosso ambiente: a paisagem sonora. 2. ed. Tradução Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora Unesp, 2011. SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985. ______. O que é performance? O Percevejo, ano 11, n. 12, p. 25-50, 2003. ______. What is performance? In: ______. Performance studies: an introduccion. 2. ed. New York/ London: Routledge, 2006. p. 28-51. SCHULZ, B. (Ed.). Robin Minard: Silent music – between sound art and acoustic design. Heidelberg: Kehrer Verlag, 1999. SILVA, Eduardo Gomes da. Para além de toda forma de ciência, a experiência sensível. Revista Líbero, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 65-76, jan./jun. 2015. STOLF, Maria Raquel da Silva. Assonâncias de silêncios: entre a palavra pênsil e a escuta porosa. Informática na educação: teoria e prática, Porto Alegre, v.11, n. 2, p. 56-66, jul./dez. 2008. TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas. Niterói, RJ: Eduff, 2008. ______. Foreword. In: SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of Philadelphia Press, 1985. p. xi-xii. ______.O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974. VELOSO, Sainy. Entre tablados e arenas: performances culturais. Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 2 n. 23, dez. 2014, 2014.
  • 69. Arte Comentada Capítulo 6 69 CAPÍTULO 6 A ARTE DO CORPO PERFORMÁTICO MEDIADO PELA TELA DO CINEMA DOCUMENTAL: AS FORMAS- FENDAS DO OLHAR NA(DA) DANÇA Cristiane Wosniak Universidade Estadual do Paraná - campus de Curitiba II/Faculdade de Artes do Paraná / Universidade Federal do Paraná Curitiba - Paraná RESUMO: Este artigo estrutura-se a partir da releitura de dois trabalhos acadêmicos, anteriormente publicados pela autora em anais de congressos nacionais, e que se dedicam à reflexão e à análise do pensamento teórico que alicerça a práxis cinematográfica do documentarista brasileiro Evaldo Mocarzel. O artigo ‘As Formas-Fendas do Olhar sobre o Corpo em um Documentário de Dança’ foi apresentado no VI Seminário Nacional Cinema em Perspectiva (2017), enquanto que ‘A Mise-En-Scène do Risco e do Inesperado no Cinema Documental Dançante de Evaldo Mocarzel’, foi apresentado no 41° Congresso Nacional de Ciências da Comunicação (2018). A motivação para a atualização reflexiva no presente trabalho é a indagação: de que forma e com que meios a iconicidade do gesto em uma performance de dança pode se (trans) formar em uma fenda subjetiva de experiência e alteridade em um documentário de dança? O ponto de partida para empreender uma análise do discurso cinematográfico, calcada em questões referentes aos sujeitos/corpos performáticos documentados, é a leitura da Carta de Montagem de Mocarzel, enviada ao cineasta/montador Marcelo Moraes (15/10/2008) e sobre o ato cinematográfico daí resultante, o documentário Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010). O recorte do objeto empírico da investigação recai sobre dois excertos do documentário em que os atores sociais – bailarinos/performers – se utilizam de extensões tecnológicas – body-cam e Go-Pro – e, a partir daí, criam uma espécie de forma-fenda cinética na narrativa documental. O pensamento e a práxis cinematográfica de Mocarzel são também cotejados em relação às teorias do ensaísta e cineasta francês Jean- Louis Comolli em uma tentativa de traçar alguns balizamentos conceituais no que concerne aos objetos empíricos da investigação. PALAVRAS-CHAVE: arte; corpo; cinema documental; dança; performance. ABSTRACT: This article is based on the re- reading of two academic papers, previously published by the author in annals of national congresses, which are dedicated to the reflection and analysis of theoretical thinking that underlies the cinematographic praxis of Brazilian documentarian Evaldo Mocarzel. The article ‘As Formas-Fendas do Olhar sobre o Corpo em um Documentário de Dança’ was presented at the VI Seminário Nacional Cinema
  • 70. Arte Comentada Capítulo 6 70 em Perspectiva (2017) while ‘A Mise-En-Scène do Risco e do Inesperado no Cinema Documental Dançante de Evaldo Mocarzel’, was presented at the 41° Congresso Nacional de Ciências da Comunicação (2018). The guiding question for the reflexive updating of the present work is the question: in what form and by what means can the iconicity of the gesture in a dance performance be (trans) form in a subjective rift of experience and alterity in a dance documentary? The starting point to undertake an analysis of the cinematographic discourse, based on questions related to the subjects/ documented performative bodies, is the reading of the Mocarzel Assembly Letter, sent to the filmmaker/editor Marcelo Moraes (10/15/2008) and the resulting cinematographic act, the documentary Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010). The cut of the empirical object of the investigation rests on two excerpts from the documentary in which social actors - dancers/performers - use technological extensions - body-cam and Go-Pro - and, from there, create a kind of slit-form in the documentary narrative. Mocarzel’s thought and cinematographic praxis are also compared to the theories of French essayist and filmmaker Jean-Louis Comolli in an attempt to draw some conceptual markings on the empirical objects of inquiry. KEYWORDS: art; body; documentary film; dance; performance. 1 | INTRODUÇÃO Ao alinhar os estudos investigativos sobre o universo documental do cineasta brasileiro Evaldo Mocarzel, a partir de variadas fontes primárias, incluindo aqui a análise de excertos de seu filme Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010), também me coloco em relação interpretativa direta com a produção teórico- prática do referido documentarista e, neste momento, converto-me em uma espécie de mediadora de fontes diversas na proposição de comentar analiticamente a sua obra artística. Esta premissa sobre a produção do conhecimento, conjunta, pode ser corroborada a partir das premissas da abordagem de pesquisa calcada na Teoria dos Cineastas que assevera ser esta dinâmica composta por uma “constante interação entre o cineasta que se refere à sua própria obra enquanto criador e enquanto espectador e o investigador que não sendo apenas espectador é, também, um criador já que na sua relação com uma obra, também colabora com sua construção.” (BAGGIO; GRAÇA; PENAFRIA, 2015, p. 22). A perspectiva teórica dos cineastas, na reunião de seus textos escritos, reflexões, entrevistas, depoimentos, rascunhos, cartas de montagem, entre outras fontes primárias e em cotejamento direto com a análise de seus atos fílmicos, é o caminho metodológico proposto pela referida abordagem. Esta linha investigativa, aqui adotada, é proposta pelo GT Teoria dos Cineastas, da AIM (Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento), que se constitui em um grupo permanente de estudos, desde 2014, mesmo ano em que passou a
  • 71. Arte Comentada Capítulo 6 71 integrar um dos Simpósios da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos do Cinema e Audiovisual). O grupo, em Portugal, é composto pelos pesquisadores: Manuela Penafria (Universidade da Beira Interior/Labcom.IFP), André Rui Graça (Universidade de Coimbra) e Eduardo Tulio Baggio (Universidade Estadual do Paraná-campus de Curitiba II/FAP). Uma exposição sintética acerca dos principais argumentos sobre a Teoria dos Cineastas pode ser encontrada no artigo Teoria dos cineastas: uma abordagem para a teoria do cinema (BAGGIO; GRAÇA, PENAFRIA, 2015). No corpo do artigo, os autores mencionam que outras abordagens destacam o papel de produção de conhecimento teórico/verbal advindo dos cineastas e vêm sendo propostas há algum tempo, como se pode observar em textos de Jacques Aumont: Pode um filme ser um ato de teoria? (2008) e As Teorias dos Cineastas (2004), além das antologias organizadas por Ismail Xavier, em A Experiência do Cinema (1983). Destaco que Robert Stam, embora embasado pelo viés da Teoria do Autor, também se detém sobre o importante papel reflexivo e teórico que os cineastas/ diretores desempenham na produção de conhecimento cinematográfico. Em seu artigo O culto ao autor (2003), Stam destaca a relativa importância que os Cahiers du Cinéma tiveram, a partir da década de 1950, para a propagação de uma teoria do autorismo, que percebia na “figura do diretor um pensar/fazer, ou seja, aquele responsável, em última instância, pela estética e pela mise-en-scène de um filme” (STAM, 2003, p. 104). A mise-en-scène é uma expressão idiomática francesa que se relaciona com encenação oucomoposicionamentodeumacenae,muitasvezes,comadireção ou a produção de um filme ou peça de teatro. Aplicada à linguagem cinematográfica, considera-se, portanto, que da mise-en-scène fazem parte todos os elementos que aparecem no enquadramento, como por exemplo: atores/atrizes, posicionamentos coreográficos/trajetórias, iluminação, decoração/cenografia, adereços da cena, figurino, etc. Segundo David Bordwell e Kristin Thompson (2013), a mise-en-scène, surge como um termo aplicado às artes cênicas, mas quando estendida para a arte cinematográfica, passa a expressar a atitude, as escolhas e a identidade do ‘autor/ diretor’ sobre todas as questões do que aparece no quadro/tela. Como seria esperado mise-en-scène inclui os aspectos do cinema que coincidem com a arte do teatro: cenário, iluminação, figurino e comportamento das personagens. No controle da mise-en-scène, o diretor encena o evento para a câmera. A mise-en-scène geralmente envolve algum planejamento, mas o cineasta pode também estar aberto a eventos não planejados [grifo meu] (BORDWELL, 2014, p. 2015). Desta forma, pretendo refletir e analisar a experiência documental mocarzeliana – sempre aberta a eventos não planejados –, subjetivada pelo olhar de atrizes e atores sociais/bailarinos que se movem/depõem/dançam enquanto movem e fazem dançar a própria câmera acoplada a seus corpos, e, neste arco narrativo inusitado – irrupção do
  • 72. Arte Comentada Capítulo 6 72 risco, do acaso, do improviso, dos interstícios imagéticos – acabam por celebrar, em alguns momentos do documentário, uma espécie de mise-en-scène subjetivada de si mesmos. Aexperiência cinematográfica subjetivada pelo olhar de bailarinos que se movem/ dançam enquanto movem/fazem dançar a própria câmera acoplada a seus corpos, é o que motiva a perspectiva da análise de dois excertos do documentário Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010), de Evaldo Mocarzel. Criada em janeiro de 2008 pelo Governo do Estado de São Paulo, a São Paulo Companhia de Dança (SPCD), gerida pela Associação Pró-Dança, é dirigida por Inês Bogéa e se caracteriza como sendo uma companhia de repertório, que realiza montagens de trabalhos dos séculos XIX, XX e XXI, de grandes peças clássicas e modernas a obras contemporâneas especialmente criadas por coreógrafos nacionais e internacionais. O inusitado olhar do ‘entre-imagens’ provocado pela ideia de um casamento linguístico entre o cinema e a dança, provoca, neste breve instante em que os performers de si mesmos executam um giro sobre si mesmos, o extravasamento de possíveis presenças ou copresenças ativas do olhar para si a partir do olhar do(a) outro(a) e vice-versa. O percurso da investigação trata de comentar a arte e recortar, no documentário, a mise-en-scène das formas-fendas nestes breves instantes sem roteirização prévia e que se abrem a incontáveis redes de significação e(m) experiência cinestésica: o discurso e a voz subjetiva de corpos em movimento dançante exponenciados pelas fissuras do olhar da câmera cinematográfica que registra a experiência. É preciso frisar que nos documentários contemporâneos a voz do saber, em sua nova modalidade, perde sua autoridade exclusiva; torna-se diluída entre as demais vozes dialógicas. Na concepção de Fernão Ramos (2008), estes documentários se caracterizam “como a narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo ou de si” (RAMOS, 2008, p. 24). Parte-se do princípio, aqui, de que a ‘voz’ no documentário é uma maneira de expressar um argumento. Esse argumento se manifesta a partir de uma lógica informacional calcada na experiência e na subjetividade do criador/diretor. A partir dessa decorrência, assume-se que a voz diz respeito ao ‘como’ o argumento ou o ponto de vista é transmitido na organização do texto documental. 2 | EVALDO MOCARZEL E O DOCUMENTÁRIO DANÇANTE Evaldo Vinagre Mocarzel nasceu em 1960 em Niterói-RJ. Formou-se em Cinema na Universidade Federal Fluminense e trabalhou como jornalista/editor do Caderno 2, do jornal O Estado de São Paulo, durante oito anos. Cursou Cinema na New York Film Academy e fez parte do Círculo de Dramaturgia do diretor Antunes Filho, no Centro de
  • 73. Arte Comentada Capítulo 6 73 Pesquisa Teatral (CPT-SESC-SP). Em 2018, tornou-se Doutor em Artes Cênicas pela ECA-USP. Em seu repertório cinematográfico constam curtas e longas-metragens com ênfase em cinema documental. De seu repertório cinematográfico, fazem parte curtas e longas-metragens com ênfase em cinema documental. Sendo um ‘apaixonado’ pela linguagem da Dança, Mocarzel dirigiu/criou os seguintes documentários dançantes: São Paulo Companhia de Dança (2010); Lia Rodrigues: Canteiro de Obras (2010); São Paulo Companhia de Dança - Ensaio sobre o Movimento (2012) e Buracos no Céu (2013). Em depoimento escrito à autora, via email, o cineasta declara: meugrandeobjetivocomacriaçãodedocumentáriosde/sobredançaéocasamento linguístico da dança com o cinema e vice-versa, sem que uma linguagem fique subserviente à outra: respeitar as especificidades linguísticas das duas artes e colocá-las ludicamente para namorar, trocar sem palavras, unidas pelo movimento (MOCARZEL, 2016). Essa é a ‘voz documental’proferida pelo diretor/cineasta e reiterada na publicação de seu ensaio intitulado Cinema e dança: diálogos linguísticos em casamentos artísticos marcados pelo movimento (2016). Neste momento da investigação cabe salientar que, embora as mensagens que circulam por intermédio do correio eletrônico tenham caráter informal, interpessoal e efêmero, ainda assim, são reconhecidas como interessantes coletas acerca do pensamento, raciocínio e acesso às teorias dos sujeitos investigados, como o presente caso da abordagem metodológica da Teoria dos Cineastas e, portanto, se revestem de informação de fonte primária. Para preservar o material, enquanto fonte científica/ técnica de pesquisa, todas as correspondências efetivadas por meio deste recurso online, foram impressas e catalogadas (por data) pela autora da pesquisa. Desta forma, a voz do cineasta também se faz presente neste estudo analítico, por meio deste material coletado de forma alternativa. Bill Nichols em Introdução ao documentário (2012), afirma que “a voz do documentário fala por intermédio de todos os meios disponíveis para o criador” (NICHOLS, 2012, p. 76). a partir desta premissa, é possível comentar que Mocarzel, ao realizar seu texto documental, traduz audiovisualmente o seu ponto de vista sobre o universo histórico-referencial com o qual irá trabalhar, e também deixa impresso em sua obra a sua forma de envolvimento com o assunto tematizado: o corpo em ação dançante. Em sua Carta de Montagem, Mocarzel expõe ao cineasta/montador Marcelo Moraes, de forma reiterada, o seu ponto de vista, a intenção de tentar uma espécie de comunhão artística e linguística entre a dança e o cinema por meio do procedimento da montagem cinematográfica. É preciso mencionar que a referida Carta de Montagem foi escrita pelo diretor e encaminhada ao cineasta Marcelo Moraes, em sua versão final, em 15 de outubro de 2008. O documento digitado, contendo nove páginas, não foi ainda publicado. Uma
  • 74. Arte Comentada Capítulo 6 74 versão da Carta foi cedida à autora da investigação, em correspondência eletrônica, para uso exclusivo neste trabalho. E, neste documento, que se constitui em uma fonte primária de investigação, uma das questões destacadas pelo diretor refere-se à alteridade, à filmagem do(a) outro(a) pelo olhar do(a) outro(a), abrindo-se a possibilidades inusitadas. Mocarzel relata: Depois dos ensaios, fiz experimentos com alguns bailarinos e bailarinas que podem e devem ser usados na montagem. Experimentos que foram improvisações e que talvez possam ser usados nos momentos em que você vai explorar os estudos cinematográficos que fiz sobre o movimento no chão, nas vidraças, no espelho e no chão de linóleo coberto de riscos. Usei uma micro-câmera em várias partes do corpo dos bailarinos e bailarinas: na palma da mão, no pulso, na perna, no tórax, enfim, em muitos lugares inusitados do corpo, e isso gerou imagens muito interessantes [...] São solos, às vezes duos, com menos frequência, mas são improvisações, experimentos lúdicos com gestos a partir da utilização dessa micro-câmera [...]Na mesma linha de experimentação lúdica, também depois dos ensaios, criamos improvisações com uma espécie de ‘espartilho’, que, na verdade, é um ‘body-cam’ grudado no corpo do bailarino e ele então contracena com a câmera... (MOCARZEL, 2008, p. 6). Estes experimentos improvisados constituem-se em uma mise-en-scène do risco e do inesperado e consiste no olhar da câmera sobre o corpo dançante, inserindo, desta maneira, uma diferente perspectiva sobre o gesto, o olhar do corpo movente em relação ao espaço em uma espécie de coreografia cinematográfica propiciada pelo acoplamento tecnológico: o dispositivo body-cam. Sobre esta possibilidade, comenta o cineasta: “com a utilização do ‘body-cam’, o ponto de vista do bailarino é incorporado à imagem. Se a bailarina gira, o mundo gira, e a câmera logicamente também vai girar, pois está acoplada ao seu corpo” (MOCARZEL, 2008, p. 6). O documentário mocarzeliano, longe de se assemelhar a um ‘teatro filmado’ com câmeras frontais e praticamente imóveis a capturar a trajetória do corpo em movimento coreográfico deslocando-se de um lado a outro do enquadramento, em plano sequência, reveste-se de uma acentuada (des)ordem sequencial, sobretudo nos arranjos dos planos com suturas em falsos-raccords. A figura ou técnica de montagem cinematográfica denominada raccord, pode ser caracterizada como a passagem de um plano para o outro, garantindo a coerência entre eles; trata-se das ligações verossímeis entre os planos, por meio de efeitos visuais, sonoros ou de linguagem, dando continuidade à narrativa fílmica. O falso-raccord, por sua vez, é uma mudança de plano (intencional) que foge da lógica transparente da continuidade, que procura transcender esta mesma lógica de sentido. Esse tipo de procedimento procura mostrar variados pontos de vista e perspectivas da imagem. Admite-se que é falso pois explora uma outra possibilidade não convencional de montage cinematográfica. Nestes casos de falsos-raccords, espaço e tempo colidem frequentemente e abrem-se a incontáveis possibilidades de ressignificação de mise-en-scène. O cineasta e teórico Jean-Louis Comolli no ensaio ‘Sob o Risco do Real’ (2008),
  • 75. Arte Comentada Capítulo 6 75 faz-se uma pergunta: “o que acontece com aqueles que filmamos, homens ou mulheres, que se tornam, assim, personagens de filme?” (COMOLLI, 2008, p. 175). Indo mais além, Comolli reflete sobre o tempo suspenso da filmagem atentando para o fato de que ele interrompe o curso normal/real das ações dos personagens fixando-os, em uma mise-en-scène nem sempre programada. Mocarzel, por sua vez, responde temporariamente, a partir de sua práxis cinematográfica, como resultaria a voz/corpo de personagens documentados como atores sociais de uma companhia de dança, quando solicitados a se mover/filmar enquanto se filmam ao dançar. As pistas deste desejo cinematográfico podem ser evidenciadas também em outro texto escrito e autoral: a Carta de Montagem encaminhada à cineasta Guta Pacheco (27/09/2012), para a realização de outro documentário, onde Mocarzel afirma enfaticamente: Essa é uma ideia que me persegue como documentarista e que me fascina: perspectivar o ponto de vista de quem dança com a câmera acoplada aos corpos dos intérpretes, e ainda imprimir na imagem, dentro do quadro, a cadência, o balanço, o ritmo do movimento de quem dança. Em determinados momentos, a própria bailarina ou o próprio bailarino vira uma espécie de fotógrafo de si mesmo, o que também me interessa muito como documentarista, pois trata-se de passar a bola para a alteridade, para o ‘outro’ se autodocumentar. Como já comentei com você, para mim, documentário é sempre fruto do atrito entre linguagem e alteridade (MOCARZEL, 2012, p. 11). Segundo Comolli, reter as ‘alteridades’ em um documentário, significa “estar às voltas com a desordem das vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do documentário” (COMOLLI, 2008, p. 176). Portanto, se o atrito entre a linguagem e a alteridade são motes recorrentes na obra documental de Mocarzel, este princípio ecoa também nas palavras de Comolli para o qual filmar pessoas/personagens na(da) vida real significa estar atento e aberto às imprevisibilidades dos acontecimentos em processo de filmagens. 3 | A CÂMERA NO CORPO DE QUEM DANÇA E SE FILMA NO PROCESSO Além da documentação observacional do processo de criação da primeira coreografia da São Paulo Companhia de Dança, Mocarzel afirma que utilizou propositalmente “duas traquitanas capazes de levar a câmera para o corpo de quem dança, para a pele suarenta de quem labuta diariamente essa fascinante linguagem de gestos, ainda tentando imprimir movimentos na imagem.” (MOCARZEL, 2016a, p. 42). Noinício[00:31a01:47]dodocumentárioCanteirodeObras:SãoPauloCompanhia de Dança (2010), observa-se, uma clara intenção alusiva à tridimensionalidade inerente da dança: um dançarino performa seguidos giros sobre si mesmo e, neste
  • 76. Arte Comentada Capítulo 6 76 mover simbólico, usa microcâmeras acopladas em seu corpo: na palma da mão, no pulso e no tórax (figura 1). Figura 1 : Sequencia de imagens com o dançarino que se move acoplado a câmeras/ body-cam Fonte: (frames de Canteiro de Obras-São Paulo Companhia de Dança - 2010) O resultado deste experimento inusitado são imagens lacunares e borradas, transbordamentos de limites espaciais demarcados, subjetividades em movimento e, acima de tudo, a experiência do mover-se enquanto se move a câmera que registra o fugaz instante. Mocarzel inclui em seu documentário sobre a São Paulo Companhia de Dança, – especificamente sobre o processo de criação da obra Polígono, do coreógrafo italiano Aléssio Silvestrim –, as imagens do ator social/dançarino já na abertura de seu filme. As formas imagéticas que deixam traços cinéticos provenientes do corpo-câmera do dançarino – ação cinematográfica e dançante simultânea – trazem dados inéditos ao olhar do documentarista. Mocarzel acaba por recriar, cinematograficamente, alguns instantes fotográficos da obra coreográfica. Segundo o autor/diretor, com o body-cam, em determinados ângulos, podia perceber, com o monitor da câmera voltado para o rosto de quem dançava, “um radical exercício de alteridade: a própria bailarina ou o próprio bailarino se filmavam,
  • 77. Arte Comentada Capítulo 6 77 enquadravam a sala de ensaio, o palco, os próprios gestos, os desenhos e rastros das frases coreográficas que estavam dançando.” (MOCARZEL, 2016a, p. 43). Exercitava- se a mise-en-scène do inesperado: do risco calculado. Formas-fendas dançantes somavam-se à narrativa documental mocarzeliana. Em outro momento da narrativa documental, especificamente no excerto [43:34 a 44:25], um novo sistema de escrita documental colaborativa tem início. Destarte, uma dançarina improvisa giros e gestos com seus braços e mãos, enquanto tem, acoplada ao seu corpo, uma determinada ‘traquitana’ cinematográfica. Foi por sua própria sugestão que uma microcâmera foi acoplada ao seu corpo e gerau raras e poéticas atmosferas imagéticas. Explica o diretor: Com essa segunda traquitana, uma rápida explicação técnica: como a microcâmera filma, mas não grava, pois não tem suporte de captação, nós criamos um segundo dispositivo na traquitana que era um vídeo-concha, com uma fita mini-dv, envolto em elástico, preso com velcro e também grudado ao corpo de quem dança/filma. O sinal de captação da diminuta câmera era então enviado para a fita mini-dv do vídeo-concha. No processo de montagem, a permanente busca pelo casamento artístico da dança com o cinema, e vice-versa (MOCARZEL, 2016a, p. 43). Neste momento se esbarram no espaço e no tempo de representação os estilhaçamentos de movimentos capturados pelo olhar da câmera do diretor, associados ao olhar do corpo-câmera da bailarina (figura 2). Figura 2 Sequência de Ícones Cinéticos no documentário Fonte: (frames de Canteiro de Obras-São Paulo Companhia de Dança - 2010) Em depoimento à autora (2016b), o documentarista afirma que havia, sim,
  • 78. Arte Comentada Capítulo 6 78 recriado por meio da montagem, a obra coreográfica pelo viés do estilhaçamento do movimento, “da linguagem do cinema e com o dom da ubiquidade da câmera” (MOCARZEL, 2016b, p. 1). A partir desta assertiva é possível depreender que a narrativa documental do processo de criação de uma obra coreográfica – Polígono – para a companhia não se interrompe em seu desenrolar documental, mas o que acontece neste excerto é um esgarçamento da narrativa pela inserção de material advindo de uma dupla perspectiva: a ubiquidade da câmera e a alteridade do olhar conjugada pela mise-en- scène de si mesma. ParaComolli,“omovimentodomundonãoseinterrompeparaqueodocumentarista possa lapidar seu sistema de escrita. As formas colocadas em ação são desarranjadas pela própria forma que elas tentam abarcar” (COMOLLI, 2008, p. 177). E Comolli ainda destaca a precariedade, a instabilidade e a fragilidade dos ‘dispositivos documentais’ ao afirmar que os dispositivos “são úteis apenas para permitir a exploração do que ainda não é de todo conhecido” (COMOLLI, 2008, p. 177). Neste sentido, a aposta mocarzeliana em um dispositivo documental calcado na alteridade e na voz/olhar (com)partilhados promove um encontro, ou melhor, um casamento linguístico e artístico entre a dança e o cinema (MOCARZEL, 2016a). Na exploração de novas possibilidades do movimento existir, enquanto dança documentada, Mocarzel descreve, em um depoimento à autora, mediante correspondência eletrônica (2017), que nos filmes que realizou sobre o universo da dança a bússola sempre foi a comunhão linguística entre estas duas formas de arte. Outro ponto de contato/atrito entre as linguagens era a “possibilidade de prescindir de palavras” (MOCARZEL, 2017, p. 3). Nichols admite que o documentário, em si, é o que poderíamos chamar de “conceito vago” (NICHOLS, 2012, p. 48). E continua o autor: “os documentários não adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de apenas um conjunto de questões, não apresentam apenas um conjunto de formas e estilos” (NICHOLS, 2012, p. 78). Aparentemente existem tensões entre as expectativas instituídas no que se concerne ao ‘gênero’ filme documentário e as abordagens individualizadas e constantes, alargando, desta forma, os limites entre filme documental e filme ficcional. Segundo Nichols, “a montagem em continuidade, por exemplo, que opera para tornar invisíveis os cortes entre as tomadas [...] tem menos prioridade [...]. Portanto, o documentário apoia-se muito menos na continuidade para dar credibilidade ao mundo a que se refere do que o filme de ficção” (NICHOLS, 2012, p. 55-56). Ao se afirmar que os documentários não apenas se abrem para o mundo, para a captura do que imaginamos como mundo, mas “são atravessados, furados, transportados pelo mundo” (COMOLLI, 2008, p. 170), é possível deduzir, portanto, que ocorre um esgarçamento de possibilidades de registros quando a realidade – real/ referente – é capturada pelo olho da câmera. Neste breve instante é o ícone cinético que vem à cena enquanto traços de
  • 79. Arte Comentada Capítulo 6 79 movimentos aleatórios, improvisados e capturados com o auxílio de traquitanas acopladas ao próprio corpo/medium da bailarina. Em seu processo de criação da mise-en-scène de si mesmos, enquanto performam movimentos aleatórios, os atores sociais atuam na primeiridade – quali- signo – e os movimentos daí decorrentes e observados no documentário mocarzeliano na categoria de ícone cinético, surgem como uma qualidade de sentimento, buscando configurar uma ideia simples e, ao mesmo tempo, complexa de movimentos, mas sem ainda a intenção de formatar algo concreto. Nesta temporalidade momentânea, enquanto traços, sombras, riscos, formas do rosto distorcidas, mãos e geometrias espaciais do ambiente ao redor o próprio corpo dos dançarinos, girando, entretecem o espaço de construção e concretização do sentido motor em dança: o corpo-câmera entra em diálogo e conexões permanentes com o meio em que desenvolve a sua mise-en-scène. O corpo-câmera em movimento dançante encontra, portanto, o seu sentido documental quando se percebe um ícone cinético. Décio Pignatari em seus estudos sobre a aplicabilidade da Teoria Geral do Signos de Charles Sanders Peirce (1839-1914), nos campos da Comunicação e das Artes, reconhece que “algumas características do ícone peirceano revelam os aspectos profundos da natureza da linguagem em geral e da linguagem artística em particular” (PIGNATARI, 1979, p. 32-33). Para Pignatari, as signagens artísticas constituem-se em um sistema aberto de signos que não são subordinados uns aos outros e, desta forma, atuam em um agrupamento em rede/rizomático e sem hierarquias. Cabe mencionar que o termo/neologismo ‘signagem’, foi cunhado por Pignatari (1984), ao se referir aos fenômenos não-verbais, como os sistemas de signos nas(das) diferentes formas de Arte. Nas palavras do autor: Eu sei que o uso já consagrou expressões como ‘linguagem musical’, ‘linguagem arquitetônica’, ‘linguagem televisual’, etc. Mas, na era da semiótica, ou teoria geral dos signos, essa invasão do verbal pra cima do não-verbal, dos códigos verbais em relação ao códigos icônicos ou dos códigos audiovisuais pode induzir distorções. Por essa razão, utilizo signagem em lugar de linguagem (PIGNATARI, 1984, p. 8). Para Pignatari, as signagens artísticas constituem-se em um sistema aberto de signos que não são subordinados uns aos outros e, desta forma, atuam em um agrupamento em rede/rizomático e sem hierarquias. Cabe destacar que um signo sempre ‘representa’ algo, ou seja, o seu objeto. Para a (de)codificação dos possíveis e abertos significados dos movimentos visualizados no documentário mocarzeliano, a partir da body-cam acoplada ao corpo da bailarina movente, torna-se necessária a mediação do signo a partir do processo infinito da semiose em busca de possíveis significados. Desta forma, o conteúdo ou busca ‘infinita’ por aparentes e flexíveis significados
  • 80. Arte Comentada Capítulo 6 80 a partir dos traços cinéticos que se apresentam no documentário de Mocarzel podem ser apreendidas unicamente pelo processo de semiose. Enquanto significado, um signo ou um ícone cinético – como o material audiovisual apresentado nos excertos em questão – contém múltiplas concepções e, dependendo do contexto, do repertório dos sujeitos envolvidos na leitura, recepção e produção de sentido por meio da relação entre os sistemas de signos, a somatória das experiências e análise do meio, constituirá a concepção geral da mensagem e do próprio significado da experiência cinética subjetiva. Fenomenologicamente, o sentido se desenvolve na experiência e é gerado pela integração entre experiências subjetivas do presente e do passado. A experiência/fenômeno traçada pelo corpo-câmera em movimentos icônicos cinéticos torna-se, portanto, o próprio contexto da signagem híbrida: cinema documentário-dança. O conceito de hibridação adotado nesta investigação é proveniente da proposição de Raymond Bellour, como a mistura de meios e de formas de representações ou signagens, tais como gravura, cinema, fotografia, vídeo, música, dança, entre outras. O autor, em sua obra Entre-Imagens: foto, cinema, vídeo (1997), articula esta ideia à denominação entre-imagens, por entender a hibridação – a mescla de meios – como um espaço-tempo de passagem, de intervalo em potencial ampliando as redes de criação, pelas fissuras ou esgarçamento de fronteiras limítrofes entre os diferentes tipos de signagens. O corpo-câmera da performer ao dançar e filmar simultaneamente seus gestos, amplifica o espaço de construção e concretização do sentido na(em) dança. É pelo processo de (des)construção na/pela montagem cinematográfica mocarzeliana que estas imagens icônicas, elaboradas na primeiridade, esgarçam territórios entre as linguagens e entre o próprio espaço-tempo de representação cinematográfica. E isto se reveste de um pensamento autoral. Mocarzel coloca em práxis cinematográfica um conceito/pensamento que permeia suas crenças artísticas. Esta premissa pode ser verificada a partir do seguinte depoimento do diretor: Pensamento autoral? Sim, acho que esta busca pela imagem do corpo, as miríades de movimentos, a obsessão dos raccords na montagem, minimalismo do digital desnudando o corpo como um mosaico, um universo de pontos de vista, tudo isso é movido pelo mesmo conceito, pelo mesmo pensamento autoral: respeitar a dança como linguagem misteriosa e promover um casamento artístico do cinema com a dança sem que uma linguagem seja subserviente à outra. Procuro colocar no papel em forma de argumento cinematográfico os conceitos que quero experimentar, filmo e aí escrevo cartas de montagem para contaminar os montadores para tudo o que experimentei e que ainda quero experimentar, além de contextualizar a natureza específica daquele projeto e ainda tentando esboçar uma primeira estrutura dramatúrgica para a narrativa do filme a ser construído. Mas está tudo ligado: a pesquisa, os textos prévios sempre com alguma teoria, as filmagens e as cartas de montagem, a hora da ‘verdade’ da teoria-prática experimentados nos dispositivos cinematográficos-coreográficos que tentei experimentar. Uma coisa vai retroalimentando a outra... (MOCARZEL, 2017, p. 3).
  • 81. Arte Comentada Capítulo 6 81 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do pensamento teórico que alicerça o ato criativo dos cineastas – abordagem metodológica da Teoria dos Cineastas –, foi possível determinar algumas possibilidades e procedimentos estilísticos, por meio dos quais a iconicidade dos gestos dos dançarinos/performers, tendo acopladas aos seus corpos diferentes traquitanas/ microcâmeras, transformaram a narrativa documental mocarzeliana em uma mise- en-scène do risco e do inesperado repleta de experiências cinéticas e cinestésicas subjetivadas pelos alicerces da alteridade e da ubiquidade da câmera documental. O percurso reflexivo desta investigação apresentou uma possível leitura, um possível comentário analítico para a arte documental audiovisual Canteiro de Obras: São Paulo Companhia de Dança (2010), de Evaldo Mocarzel. A comunicação das possíveis mensagens dos corpos performáticos, atuando a partir das formas-fendas cinematográficas, encontrou, em suas semioses infinitas, porosidades significativas. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas-SP: Papirus, 2004. AUMONT, Jacques. Pode um filme ser um ato de teoria? In: Revista Educação e Realidade. V. 33(1): jan-jun, 2008. (p. 21-34). Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/educaçãoe realidade/article/ view/6684/3997>. Acesso em: 28 mai. 2018, 18h00. BAGGIO, Eduardo Tulio; GRAÇA, André Rui; PENAFRIA, Manuela. Teoria dos cineastas: uma abordagem para a teoria do cinema. In: BAGGIO, Eduardo; TASSI, Rafael; MARTINS, Zeloi (Orgs.). Revista Científica/FAP - Dossiê Cinema: criação e reflexão. No . 12, jan-jun, 2015. Disponível em:<http://periódicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/issue/view/ 109>. Acesso em: 14 jun. 2018, 12h00. BELLOUR, Raymond. Entre-Imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas, SP: Papirus, 1997. BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Editora da USP, 2013. CANTEIRO DE OBRAS - São Paulo Companhia de Dança. Diretor Evaldo Mocarzel. DVD. Casa Azul, 2010. COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: _______. Ver e poder – a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. (p. 169-178). MOCARZEL, Evaldo. Carta de montagem endereçada a Marcelo Moraes. Curitiba, 15 de outubro, 2008 [não publicada]. _______. Carta de montagem endereçada a Guta Pacheco. Curitiba, 27 de setembro, 2012. _______. Cinema e dança: diálogos linguísticos em casamentos artísticos marcados pelo movimento. In: LESNOVSKI, Ana; WOSNIAK, Cristiane. (Orgs.). Olhares: audiovisualidades contemporâneas brasileiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2016a (p. 33-54).
  • 82. Arte Comentada Capítulo 6 82 _______. Notícias - Correspondência via email [mensagem pessoal] - Mensagem recebida por <cristiane_wosniak@yahoo.com.br> em 07 de nov. 2016b (0:57). _______. Questões - Correspondência via email [mensagem pessoal] - Mensagem recebida por <cristiane_wosniak@yahoo.com.br> em 22 de mai. 2017 (18:34). NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas-SP: Papirus, 2012. PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura: icônico e verbal, Oriente e Ocidente. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. _______. Signagem da televisão. São Paulo: Brasiliense, 1984. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas, afinal... O que é mesmo, documentário? São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. SÃO PAULO Companhia de Dança. Disponível em: <http://www.spcd.com.br/historico.php>. Acesso em: 04 mai. 2018. STAM, Robert. O culto ao autor. In: ______. Introdução à teoria dos cineastas. Campinas-SP: Papirus, 2003. (p. 102-107). XAVIER, Ismail. (Org). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
  • 83. Arte Comentada Capítulo 7 83 CAPÍTULO 7 MEMÓRIA EM DIÁRIOS DE VIDEOGRAMAS – UM DIÁLOGO ENTRE A RETOMADA DE IMAGENS DE ARQUIVO PROPOSTA POR JONAS MEKAS E HARUN FAROCKI Guilherme Bento de Faria Lima UFF – Universidade Federal Fluminense – Professor Assistente, Comunicação Social- Publicidade / PUC-Rio – Doutorando – PPGCOM (Comunicação Social) Rio de Janeiro – RJ Monica Rodrigues Klemz UNESA – Universidade Estácio de Sá – Graduada em Cinema e Audiovisual Rio de Janeiro – RJ RESUMO: Este trabalho representa uma das reflexões da pesquisa desenvolvida no Projeto de Pesquisa - “Mostra de filmes de arquivo – ensaio, compilação, família e found footage”, desenvolvido na UNESA, no campus João Uchôa, a partir de um Cineclube, cuja premissa específica é a exibição de filmes que utilizam imagens de arquivo, objetiva estimular o desenvolvimento de uma reflexão crítica, através da análise das imagens e dos múltiplos processos de montagem. A proposta é articular, problematizar e comparar as perspectivas estéticas de dois diretores, Jonas Mekas e Harun Farocki, a partir da avaliação entre os quatro filmes exibidos, dois de cada um dos autores; Reminiscences of a Journey to Lithuania e Scenes from the life of Andy Warhol, de Mekas e Videogramas de uma Revolução e Trabalhadores saindo da fábrica, de Farocki. PALAVRAS-CHAVE: Cineclube; Montagem; Imagem-arquivo; Filme-ensaio; Estética. ABSTRACT: This work represents one of the reflections of the research developed in the Research Project - “Mostra de filmes de arquivo – ensaio, compilação, família e found footage”, developed at UNESA, at the João Uchôa campus, starting from a Cineclube, whose specific premise is the exhibition of films that use archival images, aims to stimulate the development of a critical reflection, through the analysis of the images and the multiple montage processes. The proposal is to articulate, to problematize and to compare the aesthetic perspectives of two directors, Jonas Mekas and Harun Farocki, from the evaluation between the four films shown, two of each one of the authors; Reminiscences of a Journey to Lithuania and Andy Warhol’s Scenes from the Life of Mekas and Videograms of a Revolution and Workers leaving the factory, from Farocki. KEYWORDS: Cineclube; Montage; Archive- image; Film essay; Aesthetics 1 | INTRODUÇÃO No início de 2015, iniciou-se no campus João Uchoa da Universidade Estácio de Sá o Projeto de Pesquisa intitulado; “Mostra de filmes de arquivo – ensaio, compilação, família e
  • 84. Arte Comentada Capítulo 7 84 found footage”. Ao longo do primeiro semestre foram exibidos vinte filmes. As sessões eram abertas para toda a comunidade e aconteciam todas as 2ª feiras às 11h, sempre seguidas de debate e trocas de experiências e impressões, tanto orais, como escritas, de forma qualitativa e quantitativa. A premissa da pesquisa possibilitou o contato com diferentes obras cinematográficas, elaboradas a partir das imagens de arquivo, estimulando a reflexão crítica e a percepção aguçada através do exercício da visualização das imagens de arquivo e seus possíveis diálogos, proporcionado por um local, como o cineclube. Além disso, gerou também um questionamento central acerca dos inúmeros procedimentos de montagem possíveis, ou seja, os múltiplos arranjos que poderiam ser executados e, por conseguinte, as consequências destas escolhas estéticas. Com o cinema, a obra de arte adquiriu um atributo decisivo, que os gregos ou não aceitariam ou considerariam o menos essencial de todos: a perfectibilidade. O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha – imagens, aliás, que poderiam, desde o início da filmagem, ter sido corrigidas, sem qualquer restrição. (BENJAMIN, 1996, p.175). A perfectibilidade, apontada por Walter Benjamin, deve ser investigada nas obras elaboradas com imagens de arquivo, uma vez que estas imagens foram capturadas para cumprir uma primeira finalidade. Todavia, em sua retomada, passaram por um processo de pesquisa, uma etapa de seleção, um burilamento. O montador exerce suas atribuições de maneira determinante, num trabalho contínuo de apropriação e construção de sentido, mediante a articulação de fragmentos marcados pelo tempo e pela memória. Ou seja, um árduo processo de correção, no sentido benjaminiano. Uma busca incessante pela perfectibilidade, mediante a lapidação das imagens de arquivo, na procura dos seus rastros. Neste sentido, selecionou-se filmes, com as maiores variações possíveis, com diferentes temáticas, períodos históricos, qualidade imagética, utilização do som, enfim, uma ampla gama de elementos audiovisuais distintos, que viabilizassem discussões e debates sobre o fazer cinematográfico. 2 | METODOLOGIA Como recorte para o presente artigo, que visa ilustrar a multiplicidade mencionada acima, optou-se por uma análise comparativa entre a proposta estética de dois diretores em duas de suas obras. Harun Farocki, considerado o diretor alemão desconhecido mais famoso e Jonas Mekas, um diretor de nacionalidade lituana, que reside nos Estados Unidos desde o final de 1949. Juntamente com esta perspectiva de análise de imagens, há uma combinação entre uma metodologia quantitativa e outra qualitativa organizadas através de questionários coletados no final das sessões, bem como a filmagem das impressões e reflexões acerca das obras cinematográficas visualizadas. Sendo assim, é importante
  • 85. Arte Comentada Capítulo 7 85 mencionar algumas informações sobre as condições de exibição de cada um dos quatro filmes que serão aqui analisados. Oprimeirodelesfoi“VideogramasdeumRevolução”,apresentadoem16/03/2015. Haviam vinte pessoas presentes na sessão, a maioria estudantes de Cinema (três do curso de Fisioterapia). Entretanto, nenhum dos presentes, com exceção do professor, tinhaassistidoofilmeatéentão.UmdosalunosdeCinemaregistrou:“Acheiinteressante a temática revolucionária por meio de registros independentes que unidos ilustram como foi o acontecimento, e também como ele faz refletir sobre as manifestações no nosso país” (resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre o filme exibido nesta sessão?”) Cabe ressaltar, que na véspera da exibição do filme de Harun Farocki, no dia 15/03/2015, houve manifestações populares contrárias ao governo Dilma espalhadas pelo país. Outro aluno, este de Fisioterapia, afirmou: “O filme sobre a revolução romena, faz-nos pensar na situação caótica do governo brasileiro, com inúmeros casos de corrupção, desvio de dinheiro para com a população” (resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre o filme exibido nesta sessão?”). Desta forma, é possível apontar que a observação de imagens de arquivo possibilita a reflexão política, traz à tona debates que tangenciam nossa realidade e estimulam a troca de opiniões e o exercício da cidadania. A visualização das imagens de arquivo selecionadas pelo diretor alemão parecem suscitar questionamentos em torno da conjuntura política-econômica na qual o Brasil se encontrava em 2015. Ou pelo menos a forma como as imagens são registradas evidenciam um estética comum ao retratar uma mobilização popular. Na sequência, o segundo filme exibido foi “Scenes from the life of Andy Warhol”, em 06/04/2015. Nesta sessão havia metade das presenças da sessão anterior. Todos os presentes eram do curso de Cinema, mas além dos alunos e do professor coordenador do projeto havia outro professor do curso que potencializou o debate e a análise do filme de Jonas Mekas. No questionário proposto o professor declarou: “Ótima possibilidade de compreender o found footage e sua incompletude: A relação entre dois artistas”(resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre o filme exibido nesta sessão?”), ou seja, a utilização da imagem de arquivo como uma possibilidade de avaliação e comparação estética. O diálogo entre o fazer artístico de duas personalidades que somadas transbordam e deixam brechas para interpretações a partir da subjetividade, de cada espectador. As características das imagens, em 8mm, que se impõem e que, inevitavelmente, são alvo de inúmeras reflexões e análises, tanto através do ritmo construído na montagem, quanto da própria textura da imagem. O terceiro filme apresentado foi “Reminiscences of a Journey to Lithuania”. Nesta
  • 86. Arte Comentada Capítulo 7 86 sessão estiveram presentes doze pessoas, sendo que duas delas eram estudantes de Publicidade da Universidade Federal Fluminense (UFF), duas do curso de Fisioterapia e oito do curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Houve uma dificuldade coletiva, devido ao fato do filme ter sido exibido sem legenda, apenas com áudio original em inglês. Vários foram os comentários salientando a dificuldade de compreensão. Ao mesmotempo,houvetambémmuitoselogiosàmontagemorganizadaporJonasMekas. “Achei interessante a edição e montagem. Muitos recortes com uma preocupação em contar história” (resposta observada no questionário aplicado no final de cada uma das sessões. Referente a única pergunta aberta do questionário: “Qual sua opinião sobre o filme exibido nesta sessão?”). Esta foi a sétima sessão do Cineclube e foi curioso observar, analisando as respostas dos questionários, que os alunos que retornavam estavam mais atentos às estratégias de montagem. Por fim, o quarto filme selecionado para ser analisado no presente artigo “Trabalhadores saindo da fábrica”, foi exibido em 15/06/2015. Nesta sessão, infelizmente, apenas os dois autores deste texto estavam presentes. O período de avaliações na instituição pode explicar, em certa parte, a ausência de alunos durante a exibição do filme. Um filme incrível que retoma a primeira imagem da história do cinema, produzida pelos irmãos Lumière e busca refletir acerca de um código imagético. Através do recurso da repetição, da paragem da imagem e da pesquisa de imagens com conteúdo semelhante, Farocki costura sua reflexão em torno do operariado e da luta de classes. HarumFarockieJonasMekas,nosseusfilmesensaísticos,abriramapossibilidade de discussão das ideias apresentadas, de forma transgressora, reestruturando a ordem do pensamento. As similitudes entre os dois autores está no uso da transtextualidade como forma de amplificação dos seus ensaios e o que os diferenciará será a forma de composição desses ensaios. 3 | VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO Nesta obra, datada de 1992, Harun Farocki apresenta, através da combinação das imagens da transmissão da televisão com imagens de cinegrafistas amadores, a queda da ditadura comunista de Nicolau Ceausescu que vigorava por mais de quatro décadas na Romênia. O diretor alemão consegue reconstruir, a partir do vasto material coletado, a tensão existente naquele instante de transição de poder. A narrativa evoca reflexões sobre a relação entre mídia e poder. Mais que isso, os questionamentos em narração off, diante das imagens, elaborados pelo diretor alemão, conduzem o olhar do espectador sobre o que pode ser filmado e as orientações pré-existentes sobre a forma como um evento político deveria ser filmado naquela conjuntura. Um exemplo, sobre o procedimento adotado por Farocki, pode ser observado no momento em que a transmissão televisiva sai do ar. Neste instante, é possível
  • 87. Arte Comentada Capítulo 7 87 ouvir a voz de Nicolau Ceausescu gritando, na tentativa de ser ouvido pela massa. Em cena, visualizamos uma imagem inusitada que apresentava algumas informações importantes: a direção para a qual o cinegrafista é orientado a apontar sua câmera (lado oposto ao palanque no qual encontra-se o ditador) e um quadrado menor ao lado esquerdo da tela, completamente vermelho, que apresenta o que estava sendo televisionado naquele momento. Todavia, a investigação, proposta pelo diretor, não se detêm nesta primeira confrontação da liberdade de expressão da mídia. Um pouco mais adiante no filme, através da retomada, ou seja, da observação daquele mesmo instante a partir de uma outra câmera, somos informados do que realmente havia acontecido e que não estava sendo noticiado; a população havia rompido a barreira de segurança e tentava forçar a entrada do comitê central. É interessante salientar que estas imagens são apresentadas em silêncio apenas com algumas poucas legendas, uma espécie de tentativa de deixar a imagem de arquivo falar por si, uma estratégia de convocar o espectador a prestar mais atenção e pensar, a partir de imagens de arquivo, de maneira crítica. Outro fator que também merece observação é a qualidade da imagem, fica nítida a diferença de granulação da imagem, evidente que se trata de uma outra câmera, de um outro dispositivo tecnológico, operada por outro cinegrafista, que de alguma forma resiste ao modelo estético imposto. A resistência fica evidente nas imagens em silêncio que funcionam como prova histórica, como um grito contido na garganta de um povo oprimido por longos anos. Farocki compreende, desta forma, potencialidades existentes e pouco desenvolvidas na maneira de conduzir o próprio olhar e de investigar as imagens. Propõe uma nova utilização das imagens já existentes, posiciona-se diante das imagens como um arqueólogo em busca de pistas que possibilitem novas interpretações. Thomas Elsaesser (2004) avalia seu trabalho como sendo de um artista-artesão que trabalha com realidades já constituídas; mostrando várias vezes uma mesma imagem em busca de pequenas diferenças de modo que alguma coisa a mais se torne visível na repetição, nas lacunas, através da duplicação. Outro momento do filme que merece destaque é o momento em que o primeiro- ministro declara a renúncia do governo. Farocki faz questão de apresentar este incidente através de três câmeras diferentes, repete consecutivamente o procedimento. Entretanto, o gesto político precisa ser repetido, pois a renúncia não havia sido televisionada. Uma situação cômica que evidencia, por um lado a obrigatoriedade de legitimar o movimento popular, por outro a incompetência para se apropriar do dispositivo midiático e de seus procedimentos técnicos. A euforia daqueles líderes populares fica inscrita nas imagens e transborda para que o espectador possa completar o sentido. Harun Farocki defende o ineditismo da reapropriação de imagens. “Convidam o espectador a imaginar seu fora de campo, evocam a história complexa dos olhares que se colocaram sobre elas, esclarecem a evolução do contexto de leitura e interpretação.”
  • 88. Arte Comentada Capítulo 7 88 (LINDEPERG, 2010, p. 330). Sugere e desenvolve uma estratégia política de trabalho que se baseia numa lógica antagônica à prática telejornalística formal e cinematográfica clássica. Desempenha um trabalho de investigação em busca de rastros deixados nas imagens e que, num primeiro olhar, não foram apreendidos ou explorados. É capaz de extrair, do previamente conhecido, algo novo e extraordinário. Thomas Elsaesser define o cineasta e escritor alemão como um “arquivista- alegorista”. Para ele, Farocki é um observador das mudanças tecnológicas, aponta-o como um cronista de como as mídias eletrônicas transformaram a sociedade. O autor declara, também, que o cinema tem muitas histórias e que algumas pertencem aos próprios filmes. Portanto, é necessário um artista arqueólogo, mais que um historiador, para detectar, documentar e reconstruí-las. “A prática cinematográfica, assim, obrigou Farocki a ser um teórico, fazendo dele um tipo especial de testemunha, um cuidadoso leitor das imagens, e um exegeta exorcista das fantasmagorias das ‘ilusões óticas.’” (ELSAESSER, 2004, p. 13). Neste sentido, Farocki torna-se um leitor mais atento das imagens encontradas. Justamente, por isso, observar e analisar as obras cinematográficas deste diretor alemão é um contínuo exercício de aprendizagem, uma tarefa essencial ao aluno de Cinema que pretende estimular a percepção e o olhar do outro. As estratégias e os artifícios aplicados por Farocki, neste filme, apontam a necessidade de se debruçar diante das imagens de arquivo em busca de novas possíveis informações que possam surgir no diálogo construído na montagem. Parece fundamental, como aponta Thomas Elsaesser, uma postura mais antenada diante de filmes que utilizam imagens de arquivo como principal fonte de transmissão de conhecimento e informação. Acompanhar o raciocínio proposto pelo diretor que opera a partir de ressignificações demanda uma predisposição maior do espectador para exercer o pensamento. Exige mais do que apenas uma postura de fruição e enlevo diante das imagens. Requer como sugerido pelo próprio Farocki, estar sintonizado na frequência correta para que não haja ruídos. 4 | SCENES FROM THE LIFE OF ANDY WARHOL A proposta apresentada por Jonas Mekas é completamente diferente da metodologia observada no trabalho de Harun Farocki. Em seus diários fílmicos o cineasta lituano trabalha com imagens pessoais e particulares de tal forma que consegue construir a partir delas sentidos abertos com os quais o espectador pode se identificar. Desenvolve uma metodologia particular de trabalho na qual faz da câmera uma extensão de seu próprio corpo. Mergulha profundamente no passado e ao revisitar suas experiências pessoais, apresenta obras singulares, potentes em possibilidades de reutilização das imagens de arquivo. No caso da obra Scenes from the life of Andy
  • 89. Arte Comentada Capítulo 7 89 Warhol, Mekas reúne uma quantidade significativa de imagens do cotidiano do ícone da Pop Art. Imagens inusitadas que revelam traços inesperados da intimidade e das relações interpessoais do artista. Mekas partilhava com Andy Warhol e principalmente com o Fluxus a aspiração de uma arte indistinta da vida e para a qual é necessário a completa abolição e anarquização dos meios e suportes específicos de criação. O manifesto Fluxus é claro naquilo que defende: uma “arte-diversão”, “simples, divertida, voltada para insignificâncias, e sem necessidade de qualquer habilidade ou ensaio”. (MOURÃO, 2013, p. 24). Esta diversão parece estar inscrita nas expressões faciais daqueles que aparecem em cena, mas, sobretudo, na montagem do filme. A estética das câmeras de 8mm é uma das marcas do trabalho de Mekas, a granulação das imagens que parecem aceleradas e, principalmente, a utilização de jump cuts. A estrutura fragmentada que se organiza através de uma lógica que busca evidenciar os pequenos gestos e as interações, os olhares compartilhados com o dispositivo. Registros que não parecem ter significância e, justamente, por isso evidenciam a proposta estética do diretor lituano. Cabe enfatizar também a importância dada ao próprio aparato cinematográfico. Em diferentes cenas da obra é possível visualizar algum dos personagens segurando sua câmera e brincando, interagindo de maneira orgânica com as situações que o cercam. Mekas apresenta Warhol em seu trabalho no estúdio produzindo polaroides, a curiosidade do sobrinho no primeiro contato como uma câmera de vídeo e a família reunida, todos com suas respectivas câmeras super 8. Ou seja, a produção de imagens como premissa criativa, tanto em momentos de descontração familiar, quanto em ensaios fotográficos profissionais realizados em estúdio. Outro elemento que merece atenção é o som; uma trilha musical intermitente que começa sendo reproduzida de maneira distorcida e que em diálogo com as imagens de 8mm e os jump cuts provocam inquietação no espectador. Esta estratégia parece corroborar com a ausência de necessidade de um design sonoro elaborado e, neste sentido, reforça o posicionamento anárquico. Mais adiante, com o desenrolar das cenas da vida de Andy Warhol é possível constatar uma polifonia de sons e ruídos dissonantes que provocam desconforto, mas ao mesmo tempo, evocam a atenção do espectador, de forma intermitente. Jonas Mekas afirma que não filmava de acordo com um planejamento, capturava imagens, sem o prévio conhecimento do que iria acontecer diante de sua câmera. Não havia, assim, um roteiro ou premissa narrativa que norteasse o trabalho do diretor, sua única preocupação era registrar as situações que estava vivenciando. Somente após a solicitação do Centre Pompidou, durante uma retrospectiva de Andy Warhol, foi que Mekas revisitou o material de arquivo que possuía e organizou sua montagem vertiginosa e provocativa. Ou seja, sua obra só foi concluída após uma demanda específica pela visualização de um material até então inédito. Imagens que revelam
  • 90. Arte Comentada Capítulo 7 90 aspectos da personalidade de Warhol, que potencializam momentos singulares de sua vida e ficam disponíveis para que o espectador possa visualizar instantes e situações com as quais pode se identificar e ao mesmo tempo se surpreender. 5 | REMINISCENSES OF A JOURNEY TO LITHUANIA Jonas Mekas, nascido na Lituânia em 1922, possui sua trajetória marcada pelos trágicos acontecimentos da Segunda Grande Guerra. Portador de uma bolsa de estudos, parte, na sua adolescência, para a Áustria, tendo seu trem interceptado pelos nazistas. É encaminhado para o campo de concentração, com o seu irmão. Refugia- se nos Estados Unidos, no pós-guerra, sendo apresentado ao cinema underground através do cineclube Cinema 16, curadoria de Amos Vogel. Adquire uma técnica fílmica pessoal de desenvolver seus ensaios, utilizando para esse filme, material autobiográfico coletado entre 1950 e 1971, parte mostrando os imigrantes no Brooklin, entre 1950 e 1953, parte na Lituânia (1971) e parte no campo de concentração e Áustria. Utiliza, para os seus diários ensaísticos, uma câmera Bolex, que funciona também como elemento agregador, de um homem que se sente estrangeiro de sua própria história. Procura extrair do passado, o sentimento de pertencimento que se faz no instante mesmo do processo de rememoração. Sua escrita fílmica permite ao observador atento imaginar a singularidade da existência, através de uma crônica de costumes, instituídos a partir do espelhamento do seu eu lírico. Dissertará sobre a sua experiência ao montar os fragmentos constitutivos do seu olhar sobre a vida: Ao ver aquele material antigo, notei que havia várias conexões nele. As sequências que considerava totalmente desconectadas de súbito começaram a parecer um caderno de notas com muitos fios unificadores, mesmo naquela forma desorganizada. Percebi que havia coisas nesse material que voltavam de novo e de novo. Pensava que cada vez que filmava algo diferente, eu filmava outra coisa. Mas não era assim. Não era sempre “outra coisa”. Eu voltava aos mesmos assuntos, às mesmas imagens ou fontes de imagens. (MEKAS, 2013, p. 217). Mas do que uma reação à realidade, Mekas, no seu filme-diário reflete suas impressões memorialísticas, tomando de empréstimo as imagens que constituem também, ausência e esquecimento, para delinear os contornos destruídos pela guerra. Longe da cultura atual dos selfies, onde a imagem vale mais do que o acontecimento, do que a vivência, Mekas utiliza-se desse material como parte reconstitutiva de um sobrevivente a um sistema de poder que solapou um período de sua história. Mais do que um filme autobiográfico, se apresenta como um filme de resistência, uma possibilidade subversiva de recontar a história da humanidade, a partir da sua própria, expondo sua subjetividade. Utiliza-se de uma câmera para desalojar a consciência da submissão a um regime fascista, aos campos de concentração que alienam, que fazem desaparecer individualidades.
  • 91. Arte Comentada Capítulo 7 91 Aponta para reminiscências dos hábitos, dos costumes e das relações interpessoais que permanecem nas entrelinhas das imagens e indicam caminhos a serem percorridos pelo espectador. A memória como elemento estruturante do discurso, uma memória seletiva que deixa escapar elementos e, simultaneamente, se detém em detalhes simbólicos que, de certa forma, estruturam o próprio diretor lituano. Diferente da montagem vertiginosa observada no filme com as cenas da vida de Andy Warhol, nesta jornada ao local de pertencimento, há momentos nos quais é possível verificar uma tentativa de mascarar ou atenuar o corte, movimentos que se perpetuam de uma imagem para outra, raccords que ligam e organizam o pensamento. Outro elemento que merece atenção dentro desta obra de Mekas é o intertítulo. Utilizado como uma opção constituinte da linearidade da narrativa, os números são apresentados de forma sequencial, como uma espécie de capítulos ou fases da vida que merecem ser relembradas. 6 | TRABALHADORES SAINDO DA FÁBRICA Farocki utiliza o filme-ensaio Trabalhadores saindo da fábrica, 1995, como um corpo editorial, mostrando a sua perplexidade diante da alienação de trabalhadores, frente a produção em massa. Faz uso de fragmentos de documentários, de filmes sobre indústrias, noticiários e filmes ficcionais. Inicia com a primeira película exibida, em 1895, pelos irmãos Lumiére, atravessa um século de história, para sugerir que, através dos sistemas de controle e vigilância, instituído nas fábricas, os trabalhadores funcionam como autômatos, robotizados, catalogados, de acordo com suas funções operativas. Estes arquivos, assim agrupados, ativam a memória e a imaginação que acabam por reconfigurar o presente e possibilitar um olhar crítico sobre a sociedade de trabalho. Através da reconstituição das cenas triviais de entrada e saída das fábricas, o filme promove um diálogo, entre diversas áreas do conhecimento, quer sejam a sociologia, economia ou filosofia, deslocando a percepção do lugar-comum. Em 1995, na revista Meteor, Harun Farocki explicará a relevância desse filme, na questão memorialística: A primeira câmera da história do cinema focalizou uma fábrica, mas, depois de cem anos, pode-se dizer que a fábrica como tal atraiu pouco o cinema; mais exatamente, a sensação que causou foi de repulsa. O cinema sobre o trabalho ou o trabalhador não se constituiu em um gênero central, e o espaço diante da fábrica ficou relegado a um lugar secundário. A maioria dos filmes narra aquela parte da vida que se dá depois do trabalho. Tudo o que constitui uma vantagem do modo de produção industrial diante de outros: a divisão de trabalho em etapas mínimas, a repetição constante, um grau de organização que quase não requer tomadas de decisão individuais e concede ao indivíduo um campo de ação mínimo, tudo isso dificulta a aparição de fatores inesperados para a construção de um relato. Quase tudo o que ocorreu na fábrica nos últimos cem anos, palavras, olhares ou gestos, escapou à representação cinematográfica. (FAROCKI, 2015, p. 213).
  • 92. Arte Comentada Capítulo 7 92 Farocki, através da pesquisa e elaboração dos fragmentos de uma história “indesejada”, concebe o seu cinema como uma forma arrojada de encontro com o real, com o social, atravessado por sua ideologia e visão política de mundo. Através desse movimento diário de massa de trabalhadores, não individualizados, o autor explica a dinâmica do trabalho, no mundo moderno. Vai ainda sugerir, os muros e os portões como uma terra de fronteiras, entre emprego/desemprego, liberdade/prisão, coletividade/individualidade, luta/submissão, onde o capital norteia a dinâmica social e sujeita o individual à câmeras de vigilância e sensores de movimento. Ao reconhecer e chamar a atenção do observador, durante trinte e sete minutos, sobre a ação e reação do coletivo, preso a uma estrutura de trabalho alienante, suscita uma apreensão da sua ideia, do seu ponto de vista e permite, ao observador, um encontro de consciências, através do questionamento sobre as práticas repetitivas, ao longo da história. Os fragmentos escolhidos pelo autor, nos autorizam a imprimir significado, e a traçar um enfoque para interpretação dos símbolos estrategicamente ordenados na montagem, num olhar próprio de entender o mundo, não a coisa em si, mas a sua representação. Essa abordagem vai de encontro ao que se define como filme-ensaio editorial, nas palavras de Timothy Corrigan, no seu livro O filme-ensaio: (...), os filmes-ensaio editoriais revelam e analisam não apenas as realidades e os fatos que são documentados, mas também as agências subjetivas (emaranhadas nos filmes e em sua recepção) dessas realidades e desses fatos. Na condição de relatos sobre acontecimentos diários, esses filmes-ensaio, como outros tipos de editoriais, destacam a interação necessária de subjetividades consciente e decisivamente móveis dentro desses relatos; relatos não apenas a respeito de fatos, realidades, pessoas e lugares descobertos e revelados, mas também a respeito da possibilidade da própria agência em um estado de coisas atual que já não é transparente nem facilmente acessível. (CORRIGAN, 2015. p. 154-155). Assume as fábricas como um panóptico foucaultiano alienante e com força persuasiva, bem demonstrado pelos hinos entoados quando da entrada na indústria, Farocki convida o espectador à subjetividade, dentro do ritmo em que se organiza o movimento, na potência que carrega o olhar, na permanência memorialística que subverte o espaço-tempo, no exercício de novas percepções e reações em relação ao que é exposto, nos indícios pressupostos, numa desconstrução da mímesis aristotélica. 7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho de pesquisa desenvolvido na Universidade Estácio de Sá, como um dos desdobramento da dissertação de Mestrado (Publicada como livro em 2016 sob o título; Imagens de arquivo: montagem e ressignificação no documentário ônibus 174) defendida em 2012 na PUC-Rio, evidencia as potencialidades das imagens de arquivo e as múltiplas possibilidade de montagem. Os vários filmes exibidos, no Cineclube, formam um panorama que permite ao estudante, especialmente do curso de Cinema,
  • 93. Arte Comentada Capítulo 7 93 desenvolver novas habilidades audiovisuais, bem como ampliar seu repertório de referências cinematográficas e aprimorar seu olhar e pensamento intuitivo. Através dos resultados observados a partir da tabulação dos questionários aplicados é possível afirmar que o Cineclube é um espaço democrático que viabiliza o encontro e a troca de experiências entre estudantes de diferentes cursos e instituições de ensino. Todavia, ainda precisa ser apropriado e valorizado de maneira mais intensa pelo corpo discente. O espaço do Cineclube tem potencial para fomentar inúmeras atividades relacionadas ao campo cinematográfico, mas o engajamento e o compromisso com o projeto precisa ser sempre coletivo. A análise de imagens e dos procedimentos desenvolvidos pelos dois diretores selecionados no presente artigo evidenciaram elementos específicos, tanto do filme- ensaio, quanto do found footage. A potência do arquivo e sua característica lacunar que demanda um trabalho de articulação, um distanciamento que acarreta novas compreensões através de um exercício de sintonia sensível, um trabalho do olhar. REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. Obras Escolhidas vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1996. CORRIGAN. T. O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. São Paulo: Papirus, 2015. ELSAESSER, T. Harun Farocki – Working on the Sightlines. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2004. FAROCKI, H. Trabalhadores saindo da fábrica. In: LABAKI, A. (org.). A verdade de cada um São Paulo: Cosac Naify, 2015. LINDEPERG, S. Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. IN FORUMDOC.BH.2010. http:// www.forumdoc.org.br/2010/?page_id=731 MOURÃO, P. Jonas Mekas. São Paulo: CCBB, 2013.
  • 94. Arte Comentada Capítulo 8 94 CAPÍTULO 8 “SOMBRAS DO PASSADO”: O PERDÃO EM BUSCA PELA VERDADE E RECONCILIAÇÃO Alessandro Galletti Mestre em Direito (UNIVEM - Marília/SP). Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UNIVEM - Marília/SP). Professor do Instituto Superior de Tecnologia do UNIVEM – Marília/SP. Advogado. E-mail: galletti@univem.edu.br Ricardo Vilariço Ferreira Pinto Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário “Eurípides Soares da Rocha”, de Marília/SP. Especialista em Direito do Estado pelo PROJURIS. Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Ourinhos/SP-FIO. Professor titular de Direito Penal e Tributário na Universidade Brasil – Faculdade de Ibaiti (PR). Professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica na Universidade Brasil – Faculdade de Ibaiti (PR). Advogado. E-mail: ricardo.ferreira@adv.oabsp. org.br. RESUMO: O presente trabalho compreende a analise do filme Sombras do Passado (Red Dust), cuja essência concentra-se no período de transição da ditadura para um regime democrático, na África, tendo as Comissões de Verdade de Reconciliação como marco nesse novo período. A obra cinematográfica relata os trabalhos da Comissão Reconciliação, ao analisar a possibilidade de conceder anistia com relação aos crimes cometidos durante o período, mas sob a condição do agente expor a verdade sobre o ocorrido para obter tal perdão. A ideia da comissão era contar os fatos para que a nação tivesse conhecimento da gravidade e unisse para evitar outro banho de sangue e de sofrimento. Diante das cicatrizes contraídas nesse tempo, o instituto do perdão através da anistia, propor uma possível cura ao expor à verdade sobre os fatos, como uma reconciliação no tempo entre o presente e o passado para livra-se desta passagem e recomeçar. O perdão mostra-se como mecanismo que concilia a lembrança e o esquecimento de forma a possibilitar que o passado seja desligado e que a promessa de um novo futuro se torne a saída dessas feridas. PALAVRACHAVE: Anistia. Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR). Perdão. ABSTRACT: The present work includes the analysis of the film Red Dust, whose essence focuses on the period of transition from dictatorship to a democratic regime in Africa, with the Truth Commissions of Reconciliation as a milestone in this new period. The cinematographic work reports on the work of the Reconciliation Commission, when analyzing the possibility of granting amnesty in relation to the crimes committed during the period, but under
  • 95. Arte Comentada Capítulo 8 95 the condition of the agent exposing the truth about what happened to obtain such forgiveness. The commission’s idea was to tell the facts so that the nation would have knowledge of gravity and unite to avoid another bloodbath and suffering. Before the scars contracted at that time, the institute of forgiveness through amnesty, propose a possible cure by exposing the truth about the facts, as a reconciliation in the time between the present and the past to get rid of this passage and start over. Forgiveness shows itself as a mechanism that reconciles remembrance and forgetfulness so that the past is turned off and the promise of a new future becomes the way out of these wounds. KEYWORDS: Amnesty. Truth and Reconciliation Commission (TRC). Forgiveness. INTRODUÇÃO Em princípio, todo Estado tem a prerrogativa, normalmente definida em sua constituição, de perdoar aquele que ofende suas leis. Na Constituição Federal brasileira de 1988, a anistia consta como competência da União1 e do Congresso2 . Quando é proclamado para todo um segmento social, o perdão se denomina anistia, palavra que geralmente vem associada aos direitos humanos. Perdão e anistia têm sido utilizados há muito tempo na história da humanidade, às vezes, por benevolência (aplicada àqueles que já sofreram alguma punição por seus crimes), por motivos políticos (para pôr fim às guerras civis ou insurreições), por legalidade (absolvendo pessoas que apelam por sua inocência) e em eventos festivos (para celebrar alguma data importante). As constituições de cada Estado procuram determinar quais são as condições ou limites para a aplicação do perdão individual ou coletivo. Novamente citamos o exemplo da Constituição Federal brasileira, em seu art.5.º, XLIII, que dispõe sobre os limites da anistia, vedar que os crimes de tortura, tráfico e terrorismo não poderão ser anistiados. O uso mais frequente da anistia no Ocidente tem sido para pôr fim aos conflitos civis ou revoluções, como uma medida militar de interrupção de hostilidades (caso da Guerra Civil americana). Mas também tem sido usada para conter conflitos políticos e restaurar a ‘tranquilidade’ da vida social e política de uma nação. A aplicação da anistia para tornar inimputáveis membros de governos acusados de corrupção ou de violação aos direitos humanos tem sido um lugar-comum. Há que se notar que a anistia concedida a perseguidos políticos de regimes de exceção visa exatamente o contrário, ou seja, encerrar uma injustiça cometida no passado, em geral pelo Estado, e restituir a cidadania ao indivíduo atingido. O perdão pode ser útil para as transições políticas, mas deixam muito a desejar no que diz respeito à obrigação de processar e punir os responsáveis pelas violações 1 Art. 21. Compete à União: [...]; XVII - conceder anistia. 2 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, coma sanção do Presidente da República, [...] dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...] VIII - concessão de anistia.
  • 96. Arte Comentada Capítulo 8 96 aos direitos humanos. Uma comissão de verdade pode servir ao valioso propósito de justiça desde que seja organizada de forma independente do governo e das instituições políticas, coletando evidências para subsequentes julgamentos mostrando a verdade dos fatos apurados. A reconciliação política sob o ângulo da anistia é analisada para os riscos deste instituto que visa recobrar a paz civil, na transição para um regime em geral democrático, após graves acontecimentos de desestabilização social. A reconciliação política com estas finalidades pragmáticas, todavia, tem seus próprios fundamentos e pressupostos, mas anistiar crimes e criminosos leva certamente às indagações sobre o imperdoável e a ocasião para o perdão propriamente dito. Assinala o filme “Sobras do Passado”, a história de uma advogada (Hilary Swank), que retorna à África do Sul, seu país de origem, para acompanhar um processo de anistia envolvendo um amigo, ativista dos direitos humanos, Alex Mpondo (Chiwetel Ejiofor) que durante o apartheid foi duramente torturado sob as ordens de um oficial da policia, Dirk Hendricks (Jamie Bartlett). A história concentra-se na audiência da Comissão de Reconciliação e Verdade sobre o pedido de anistia do oficial Dirk Hendricks. Destaca-se que, no filme a lei de anistia baseava-se exclusivamente na apuração sobre a verdade dos fatos, conforme os depoimentos e eventuais provas apresentadas, ou seja, o perdão estava condicionado em troca da verdade, como um tribunal penal inverso, cujo autor dos fatos não era punido, desde que, apresenta-se cabalmente a verdade sobre os crimes praticados. O aludido conjunto normativo procurou trazer a verdade a tona e amenizar as vítimas dos conflitos. A intenção do governo africano era buscar a verdade dos crimes praticados nesse período, sob a condição de anistiar os crimes praticados, como mecanismo de reconciliação e restauração civil. Como se depreende, a anistia dá ensejo a muitas críticas, no seu uso, especialmente para fatos graves. Assim, pode-se falar numa verdadeira anistia institucional, em determinadas situações, sob o peso de que o evento não tivesse ocorrido. O preço pelo esquecimento das ações lesivas cometidas, pelo não–saber, pelo fingir não saber, é pesado. Todas as más ações estão contidas nesta pretensão inacreditável de apagar os traços das discórdias públicas. Para perdoar é preciso ter inteiro conhecimento dos fatos. O perdão tem vínculo com a verdade, independentemente da circunstância ou eventual punição (judicial ou extrajudicial), como apurado pelas Comissões de Verdade e Reconciliação, através da narrativa em que a memória é trazida à linguagem, a possibilidade da história ser contada de outra maneira, do ponto de vista dos participantes diretos e indiretos. A verdade passa por um crivo de reconhecimento do que se passou.
  • 97. Arte Comentada Capítulo 8 97 1 | O PERDÃO COMO FORMA DE BUSCAR A VERDADE O engajamento cultural e político na luta contra apartheid na África do Sul, evocou em grandes linhas, a experiência da Comissão Verdade e Re­conciliação (CVR), sob um modelo de troca (anistia individual condicionada à confissão dos crimes e à revelação detalhada da verdade) e de reescrever a história. Denominou o trabalho da Comissão, em favor de toda uma população ferida, como as irrupções de bondade e de inocência no tempo (2004). Diante do excesso do mal, da proporção dos crimes contra a hu­manidade, da introdução da criminalidade no domínio público, com os Estados criminosos, a própria atuação do direito encontra limites para a retribuição penal e civil, pois é difícil imaginar qual a medida para punir proporcionalmente estes crimes ou saldar esta dívida irreparável. Assim, questionam-se os crimes aos quais não se pode punir adequadamente e nem perdoar, por transcenderem todas as categorias morais e explodirem todos os padrões de jurisdição – e que impuseram aprender e rediscutir as lições aprendidas na tradição, e que seriam ensinadas de novo, tanto dentro como fora dos tribunais. É diante deste imperdoável, que se coloca então a prova central do perdão (RICOEUR, 2007). Nesse contexto, a anistia opera como elemento de prescrição seletiva e pontual que deixa fora de seu campo certas categorias de delinquentes, quer dizer, um esquecimento institucional. Posto isso, a figura da amnésia pode se confundir com a anistia, quando imposto sobre uma condição ou uma recusa da memória. Na verdade, a anistia tem por finalidade a reconciliação entre cidadãos inimigos, ou seja, propõe a paz civil. Trata-se de um esquecimento jurídico limitado, mas de vasto porte, na medida em que os encerramentos dos processos judiciais se equivalem a apagar a memória na sua expressão como testemunha e, finalmente, dizer que nada se passou. Se uma forma de esquecimento poderá então ser evocada isto não será um dever de calar o mal, mas de dizê-lo de um modo apaziguado, sem cólera. Isto não será nem um comando, nem uma ordem, mas um voto de vontade. Entretanto, a única forma que possuímos para tornar a memória presente é buscando o passado, rememorando a verdade dos acontecimentos. No momento do esquecimento dos rastros, dos vestígios, do testemunho, não há passado, este não existe, foi transposto, esquecido, é o indizível. Não se está aqui chegando ao momento do perdão, mas do esquecimento puro e vazio. Na medida em que há a recordação, a reiteração do passado, visando o perdão futuro e o possível esquecimento. Para esquecer o trauma é também necessário lembrar os acontecimentos. Será a partir da narrativa que ocorrerá a reconstrução da memória da ditadura e tambémdamemóriadaLeidaAnistia,narrativaestaessencialmentecrítica,quedesvela as verdades impostas e abre espaço para as verdades construídas, denunciando uma
  • 98. Arte Comentada Capítulo 8 98 amnésia vestida de esquecimento. Esta amnésia consiste no simples exercício de fechar os olhos para o passado e tampá-lo em um local onde este não possa ser mais discutido e desmascarado, diferente do esquecimento, que se alcança com o perdão. É exatamente por essa razão que anistia e perdão no Brasil sempre foram conceitos tão distintos, para não dizer antitéticos. A anistia consistiu num apagamento que foi bem além da execução das penas. Incluiu, outrossim, a proibição de ações em juízo, ou seja, proibição de todo e qualquer processo movido a criminosos e também a proibição de mencionar os próprios fatos com sua qualificação criminal. Dessa forma, Ricoeur (2007), tratar a anistia como uma verdadeira amnésia institucional que nos faz agir como se o fato não tivesse ocorrido. Para o autor, todos os delitos do esquecimento estão contidos nessa incrível, para não dizer ‘mágica’, pretensão, de apagar os vestígios das discórdias públicas e, é nesse sentido que a anistia é o contrário do perdão, pois este exige memória. Enquanto amnésia comandada, a anistia dissimula um passado declarado proibido, entretanto, não tem o condão de provocar o seu total esquecimento. Se assim o fosse, a memória individual e coletiva seria privada da fundamental crise de identidade que possibilita uma volta ao passado e de sua carga traumática. Inclusive o que ocorre é justamente o oposto: cada vez que o sujeito ou o Estado tentam submeter as lembranças a um processo de amnésia forçada, estas voltam com mais força, uma vez que elas passam a se constituírem como trauma para o indivíduo ou para a sociedade (TELES, 2005). O problema que emerge é que justamente uma lembrança mal resolvida pode acarretar o risco da repetição também na esfera pública. A ditadura se insere aqui, no sentido em que quanto mais se resiste ao exercício de transbordar nossa memória compartilhada, mais a ferida aumenta. Portanto, não lembrar não significa esquecer a dívida, a dor, o trauma e caminhar diante de um futuro que se abre aos cidadãos. Mas permanecer religado a um passado que atormenta e que pode vir a se repetir na história. Quanto a questão do filme, pode-se trazer os ensinamentos de Ricoeur sobre o perdão como uma questão polêmica e divergente, a exemplo de sua posição a respeito do mal, que veio reelaborando constantemente. Para o filosofo, a problemática específica do perdão é a culpabilidade e da reconciliação é o passado (MIGLIORI, 2009). Nessa guisa, faz a convergência entre a origem do mal. O mal não é apenas um problema teórico, mas sim: [...] exige convergência de pensamento, ação e uma transformação espiritual de sentimentos através do que denomina imaginação ética, este poder de abrir novas possibilidades, de olhar as coisas de outro modo. Nesta matéria, propõe uma mudança de interpelação que leve a pensar mais e de forma diferente, pois, segundo ele, não se trata de procurar a origem do mal, que é inescrutável, um dos maiores desafios reconhecidos da filosofia e da teologia, mas, tornando esta aporia produtiva, no plano das exigências da ação, e sob o ângulo do futuro, considerá-lo como aquilo que deve ser combatido (MIGLIORI, 2009, p. 249).
  • 99. Arte Comentada Capítulo 8 99 Acentuando-se a luta prática contra o mal, a vantagem é não se perder de vista o sofrimento. Ao contrário, todo mal cometido por um ser humano, é um mal sofrido por outro. Fazer mal é fazer alguém sofrer. A violência não para de refazer a unidade entre mal moral e sofrimento. A partir disso, toda ação política ou ética que diminua a quantidade de violência exercida pelos homens uns contra os outros diminui a taxa de sofrimento no mundo. A capacidade de um ser que age e sofre, na sua fragilidade e vulnerabilidade, é necessariamente uma capacidade reencontrada ou reconquistada. A tensão entre a espessura do mal e a potência de si atravessa todo o filme. É, depois de uma situação efetiva de culpabilidade ou de sofrimento que o sujeito pode esperar reconquistar a capacidade de agir. Trata-se da passagem de uma vontade culpada a uma vontade regenerada. No epílogo, enfrenta-se o que denomina o “enigma do perdão”. Indaga-se, se o perdão existe e se tem um sentido. É neste contexto que se baseia o trabalho. Ensina então que o perdão constitui o horizonte comum dos três temas desenvolvidos na obra: a memória, a história e o esquecimento. Os seus efeitos se entrelaçam com todas as operações constitutivas destes três campos. Existe, pois, uma espécie de dívida para designar uma relação de crédito e débito, que vincula vítimas e ofensores – a ser saldada nos campos jurídico, político, ético, religioso, em especial na tradição judaico-cristã, no caso do perdão, mediante às condições da confissão, arrependimento, expiação e novas promessas. Essa dívida é, no entanto, ambígua. Por um lado, em geral, uma impossibilidade de se restituir as coisas ao estado anterior às perdas e ofensas, como a dívida das vítimas, dos mortos, ou seja, poderá ocorrer uma desproporção na reparação em face do perdão. Ademais, no caso do perdão, este deve sempre ser individual (vítima e ofensor), segundo Ricoeur (2009). Assim, no primeiro plano o perdão enfrenta não somente os pecados privados, mas o mal na esfera global e pública, o que obrigou, após a Segunda Guerra, a se repensar sobre questões políticas, jurídicas e principalmente éticas ante os crimes massivos praticados. Estes acontecimentos motivaram a criação da ONU (Organização das Nações Unidas), da Declaração dos Direitos Humanos de1948, com tipificação de crimes contra a humanidade e Tribunais competentes para julgar esses casos, como forma de resposta, como paralelamente, as convenções e as recomendações para ampliar os direitos do homem e sua proteção universal. Ressalte-se que, para grande maioria poderia servir como alento as atrocidades cometidas por estes sujeitos. No entanto, para Ricoeur (2009), somente a vítima pode perdoar, em termos jurídicos, perdão personalíssimo. Ou seja, o instituto do perdão é pessoal e excepcional. Esses pedidos de desculpa podem ser considerados uma espécie de reparação simbólica, através do reconhecimento do erro cometido ao longo da história, ao lado das penas e das indenizações materiais. A reconciliação política sob o ângulo da
  • 100. Arte Comentada Capítulo 8 100 anistia visa recobrar a paz civil, na transição do regime militar para o democrático, após graves acontecimentos de desestabilização social. A reconciliação política com estas finalidades pragmáticas, todavia, tem seus próprios fundamentos e pressupostos, mas anistiar crimes e criminosos leva certamente às indagações sobre o imperdoável e a ocasião para o perdão propriamente dito. Apesar das aparências, a anistia não conduz, de modo nenhum, à justa compreensão da ideia do perdão e em alguns aspectos constitui sua antítese, como a interdição de toda perseguição, julgamento e punição dos criminosos. A anistia de fato, dá ensejo a muitas críticas, no seu uso e abuso para fatos graves (MIGLIORI, 2011). Segundo a definição utilizada por Ricoeur, dar é “abandonar” alguma coisa a alguém sem nada a receber de volta. O perdão representaria mais uma parada, um estancamento, um ponto final, para poder partir do zero (2007). As questões que se apresentam na temática interdisciplinar e transversal do perdão atravessam o campo vizinho do direito e interpelam. Aclama-se uma apuração de como é aplicada a justiça, de quais são as suas propostas diante dos crimes e de sua irradiação na sociedade. Toda essa crise do direito nos leva a repensar as formas de justiça: menos violentas. Para Ricoeur, a sanção deve ter um futuro. Este futuro é dado, segundo o filósofo, sob as formas da reabilitação e perdão, e neste par o reconhecimento é fundamental (2007). A reabilitação, na verdade, operando como uma medida que acompanha a execução da pena, visando restaurar a capacidade da pessoa, ou seja, a reinserção como cidadão de corpo inteiro, no fim de sua pena. Com efeito, a ideia que a preside é o restabelecimento de direitos da ser humano, da sua capacidade, do estado jurídico que tinha perdido. Apagar as incapacidades, restabelecer os direitos. Este restabelecimento da capacidade do sujeito é uma das ideias-chave da equação do perdão. Na verdade, a concepção da reconciliação e restauração supera-se a questão punitiva corporal ou patrimonial de reparação, o processo restaurativo não se cerca somente dessas reparações material como único objetivo, mas em busca de respostas e verdades sobre os fatos ocorridos. As partes (autor e vítima) devem estar prontos para o dialogo para encerrar aquela macula do passado e definir os novos rumos de suas vidas, sem que a impunidade e inverdade reine à sociedade o que contraria todo o senso de justiça e verdade. Nesse sentido: o diálogo entre as partes não se estabelece para atribuir culpa e mensurar danos, mas, para expor as razões que levaram cada participante ao processo e compreender o significado individual de cada ser humano que ali se encontra; uma exposição da vida, das dificuldades, das problemáticas e da forma como se enfrenta; uma oportunidade de falar sobre o criem e como ele afetou o cotidiano da vítima, com sua sensação de dano e insegurança; o arrependimento e a conscientização da ofensa. (SALIBA, 2009, p. 179). A reconciliação não se torna um ato esquecimento do ocorrido, mas sim uma verdadeira solução para tal problemática. As partes devem estar cientes e conscientes
  • 101. Arte Comentada Capítulo 8 101 da participação ativa para consecução do problema, estando disposto a reconciliar-se e perdoar. No paradigma de justiça contido no que se denomina atualmente, justiça restaurativa. O objetivo desta justiça é o de restabelecer os laços sociais do autor e da vítima, por meio da responsabilização e da reparação do dano, mas tendo as partes uma participação ativa, na busca pela reconciliação. Nesta linha, o perdão pode ser colocado como horizonte (punição, reabilitação e perdão) e, segundo o filósofo, constitui uma lembrança permanente de que a justiça é apenas a justiça dos homens e não poderá erigir-se em juízo último. Reconhece como nascidas do perdão para a justiça, todas as manifestações de compaixão e benevolência, no interior da própria administração da justiça, como se ela, tocada pela graça ou dádiva, visasse, na sua esfera própria, a este extremo, um meio termo, seguindo os legados de Aristóteles (2001). A punição restabelece, talvez, a ordem, ela não dá a vida (MIGLIORI, 2011). A possibilidade de desligar o agente do seu ato é a proposta na qual desemboca o ensaio do perdão. O culpado capaz de recomeçar será a figura do desligamento que comanda todas as outras. Este desligamento ou separação seria possível, provável. A resposta ao arrependimento, esta sim, chega no tempo, quer ela seja repentina, ou progressiva, à prova de uma vida inteira. Com fundamento em Kant, entende então o pensador que o mal, por mais radical que seja não é originário. Diante disso, sob o signo do perdão, o culpado teria restituído a sua capacidade de agir, e com isso, aquela de continuar, de começar. É desta capacidade restaurada que decorreria a promessa que projeta a ação em direção ao futuro (MIGLIORI, 2011). Em sequência, entra-se na questão do perdão interno, ou seja, o qual ninguém pode perdoar a si próprio. O perdão necessita que o outro veja os defeitos e os perdoe, visto que, o homem jamais conseguiria enxergar dentro do seu narcisismo, seus erros. Dentro desse contexto, Arendt também distingue o perdão da compreensão. Afirma-se que a compressão é interminável, não podendo produzir efeitos e por um fim ao ciclo, já que existe uma constante evolução e a lidar com essa realidade, isto é, compreender e aceitar a nossa vida. Quanto ao perdão, eleva-se como uma das grandes capacidades humanas, uma das mais ousadas ações do homem “[...] desfazer o que já foi feito – e tem êxito em instaurar um novo começo onde tudo parece ter chegado ao fim” (2009,p.118), finalizando-se, consumindo em uma ação unissubsistente. Nesse contexto, pode se afirmar que: “o perdão significa que embora, ferio você opta por se magoar e sofrer menos. O perdão significa que se torne ponte da solução. O perdão é para você e mais ninguém” (FREDERIC, 2007, p. 95). Destaca-se que, o filme é audacioso ao passar o perdão como uma forma de atingir a paz interior, que emerge quando assume o sofrimento ocorrido, bem como da responsabilidade sentir e encarar, sob outra perspectiva, não mais como vítima. Desta forma, o perdão mostra-se não sendo fácil, necessitando de meditação e
  • 102. Arte Comentada Capítulo 8 102 reflexão a todo o momento e principalmente, força e atitude para tal. Assim, o perdão a outro ser humano é uma dádiva do próprio homem, como um ser supremo aos olhos de Deus, podendo minimizar indesejáveis sofrimentos. Assim, o filme deixa um legado ao questionar a busca pela verdade como elemento ético, moral e principalmente como mecanismo de transformação do ser humano. 2 | A LEI DE ANISTIA É O VERDADEIRO PERDÃO? A Comissão de Verdade e Reconciliação (CRV) da África do Sul surgiu com a intenção de investigar os atos cometidos de março de 1960 até maio de 1994. Seu objetivo era investigar e divulgar os atos criminosos praticados contra a população no regime apartheid. Criada pela Lei de Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional de 1995 tinha como função estabelecer e registrar os casos mais graves de violação de direitos humanos ocorridos entre 1960-1994. Instituída pelo Presidente Nelson Mandela, prisioneiro político de 1963/64 a 1990, e presidido pelo arcebispo anglicano da Cidade do Cabo, Desmond Tutu, o qual o ganhou o Prêmio da Paz em 1984. Foram três anos de trabalhos (1995-1998), no qual foram examinados e narrados os relatos das vítimas e dos criminosos, para tornar públicos os crimes praticados durante o período apartheid. A Comissão Verdade e Reconciliação, além de ser um acontecimento político representou uma reflexão não somente filosófica, mas também política, antropológica, jurídica e ética: [...] foi um acontecimento cujas dimensões excedem as duas justificativas políticas (ruptura com o regime apartheid respeitando os termos do acordo que não objetivava “caça às bruxas”, técnicas (encerrar o antigo regime e organizar a sucessão), psicológicas (as vítimas pediam para serem publicamente reconhecidas) e que, ainda hoje, assados anos do encerramento dos trabalhos e da entrega de seu relatório (1998), tem sido objeto de reiteradas e renovadas análises, sob diferentes ângulos, tal a riqueza dos sentidos e tensões de sua experiência sem precedentes e de seus efeitos (MIGLIORI, 2009, p. 223). Utilizaram-se quatro conceitos de verdade na Comissão: a verdade forense (anistia); verdade pessoal (as audiências e os relatos das vítimas, dos criminosos); verdade social (ligada ao processo de partilha entre ofensores e as vítimas) e a verdade que cura (justiça restaurativa), na busca de uma verdade eficaz: Assim, na perspectiva da verdade dos fatos (ou forense), apresentam-se as questões da anistia e suas relações com a problemática do perdão; na da verdade pessoal e narrativa e na da verdade social (temas tratados em parte no Capítulo 4, Terceira Parte, no tocante ao trabalho de luto e lembrança); na verdade que cura (bealing) apresentam-se os princípios da justiça restaurativa empregada pela nova unidade africana (MIGLIORI, 2009, p. 226) A Comissão era norteada não pela justiça criminal, mas sim pela justiça restauradora. Foi a primeira e a única Comissão com a prerrogativa de anistiar os
  • 103. Arte Comentada Capítulo 8 103 criminosos da época. Buscava-se uma justiça social com bases no ouvir, no reparar e restabelecer a dignidade as vítimas. Foram mais de 22 (vinte e dois mil) vítimas e 07 (sete mil) perpetradores do apartheid ouvidos e que deram seus testemunhos perante a CVR. As audiências eram públicas e com ampla transmissão nos meios sociais: O primeiro e segundo parágrafos do Epílogo constituem uma retomada em perspectiva do processo de democrático. O segundo parágrafo evoca, pela primeira vez, a ideia de reconciliação e reconstrução da sociedade. As referências a esses objetivos são apenas declaratórios. Nada se diz sobre no que consistem a reconciliação e reconstrução. O terceiro parágrafo é o coração da matéria, explicando o papel assinalado à Constituição nesse processo. [...] Esse parágrafo refere-se, de maneira mais direta, a critérios jurídicos precisos/; a violação dos direitos do homem e os princípios de direito humanitário. [...] O quarto parágrafo contempla a filosofia do mecanismo que será utilizado. [...] O parágrafo quinto do Epílogo, que trata da anistia, reconhece que a promoção da reconciliação e da reconstrução passa por uma concessão da anistia para os atos, ações, abstenções e infrações cometidas com a finalidade política durante os anos de conflito. [...] O parágrafo sexto, por fim, aparece como uma conclusão do conjunto do processo constitucional. Declarando que, com essa Constituição e seus compromissos, um novo capítulo da história da África do Sul se abre, os constituintes o reconhecem como um conjunto (2009, p. 229-231). Pretendeu-se assim com o reconhecimento dos crimes praticados e a devida reparação das vítimas e que os excessos o período sangrento não seja esquecido pela concessão da anistia. Evidencia-se que impôs ao legislador a obrigação da promoção da reconciliação através. A constitucionalização visava o conhecimento e o reconhecimento e não o esquecimento. Assim, a principal função da CVR baseava-se em: “reconciliar um país inteiro, realizar, a todo custo, o sonho de uma nação unificada” (2009, p. 232). O filme discute o processo de reconciliação a partir do diálogo, fazendo com que houvesse uma transição pacífica do regime do apartheid para a democracia. Ressalte- se que para que houvesse a anistia, haveria um preço: a confissão. Portanto, a anistia era individual e condicionada. Assim, os agentes deveriam se submeter a todas as exigências e critérios para então o Comitê pudesse avaliar o pedido de anistia. A referida normativa pretendia-se com isto, a verdade como cura e a reparação. A anistia era somente um meio para que se concretizasse. Indiretamenteaconcessãodaanistiaestavaligadanareconciliaçãoereconstrução da harmonia entre os homens, da capacidade do homem de compreender e aceitar o outro, dos desafios do novo regime político e da união entre à população. Assim, o perdão mascarado pela anistia, configura-se pela generosidade, solidariedade, fraternidade, amor, união, e o bem comum. Isto demonstra que para alcançar a paz era preciso a manifestação do amor e não de represálias, ódio e mais vingança. Composta por 29 membros a Comissão contava ainda com a ajuda de trezentos pesquisadores, juristas, arquivistas, secretárias, entre outros. A Comissão dividia-se em três comitês: o Comitê de Violação dos Direitos do Homem, o Comitê de Reparação
  • 104. Arte Comentada Capítulo 8 104 e de Indenização, o Comitê de Anistia. Cada um com funções autônomas, mas com um objetivo: alcançar a reconciliação e a reconstrução da unidade nacional. Os perpetradores relatavam com a confiança que eles seriam anistiados. E as vítimas davam seus testemunhos com a confiança de reparação. Entretanto, esta reparação era difícil pela falta de recursos do Estado. Todavia, para o filosofo Derrida, quem está pedindo perdão não são as pessoas e sim as entidades, descaracterizando o perdão. Ao discorrer tendo em vista “quem deve perdoar?”, Derrida menciona o caso da mulher da África do Sul que foi convidada a escutar o relato de seus assassinos. Ao perguntar se ela está pronta para perdoar, ela responde: “Nenhum governo pode perdoar (silêncio). Nenhuma comissão pode perdoar (silêncio). E eu não estou pronta para perdoar” (2009, p. 266). Dessa forma, isto demonstra que o Estado ou a instituição pública não pode perdoar. Isto significa que o perdão nada tem a ver com a justiça judiciária, ou seja, o perdão não pode ser institucionalizado. Vimos que na África do Sul, pós-apartheid, foi instaurado a Comissão de Verdade e Reconciliação, onde seu trabalho foi tornar públicos os crimes cometidos durante o período do aparheid. Traçando esta linha, pode-se mencionar a anistia no Brasil, cujo próprio governo militar promulgou, em 1979, a Lei de Anistia. O país estava fragmentado pelas disputas de poder, então, o Presidente da República, João Batista Figueiredo, numa busca de restabelecer a união nacional, promulgou a Lei de Anistia. Sua função era impor o esquecimento dos crimes de tortura dos agentes do Estado, numa época de transição democrática que o Brasil estava vivenciando. Em 2006, a discussão da revisão dessa lei ganhou nova expressão quando a família Teles moveu ação cível contra o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra. Tratava-se de uma ação de natureza declaratória, onde o pedido principal era o reconhecimento das práticas de tortura às quais foram submetidos os membros dessa família. O coronel Ustra era o diretor do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI‑CODI) em São Paulo entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, período durante o qual houve 502 denúncias de tortura e 49 mortes nas dependências do DOI‑CODI. O juiz do caso, Gustavo Santini Teodoro aceitou julgar o coronel, na justificativa que a Lei de Anistia não impedia ações na área cível em que se tratava de violação de direitos humanos. Houve críticas na época. Mas, esta iniciativa foi importante para reabrir discussão acerca da Lei de Anistia, de 1979, que perdoou os crimes políticos ou conexos no período de 1961-1979. “Ao contrário do que fizeram os argentinos, a sociedade brasileira costuma deixar barato o resgate de grandes injustiças da história para não manchar sua reputação de povo cordial e feliz. Mas pagamos um alto preço por essa suposta felicidade” (2009, p. 294). Por fim, o pensamento de Tronca no sentido de Foucault:
  • 105. Arte Comentada Capítulo 8 105 [...] a história como lugar de apagamento da memória, capaz de evocar a memória/ reconhecimento em detrimento da memória involuntário. O caráter instituinte da linguagem e do imaginário coletivo acaba por converter a memória do passado em narrativas históricas, marcando o presente e projetando o futuro dos grandes males da história da humanidade (2009, p. 296). Assim para não alimentar o ressentimento, o autor trabalha a memória que deve ser capaz de escrever como se fosse o pensamento de Foucault. Ricoeur ao escrever sobre a anistia entende ser ela um “esquecimento institucional”, como se fosse um esquecimento comandado, forçado: Não é possível tratar os fatos históricos dolorosos como algo que nunca aconteceu. Isso não funciona. As sociedades não esquecem. A degeneração (tal como os terapeutas a chamam) em nome da conciliação nacional. Tal como ocorreu com a Lei de Anistia no Brasil, pode ter um efeito terapêutico, mas é suspeita do ponto de vista da verdade e da justiça (2009, p. 299). Para Ricoeur, a anistia é contrária ao perdão. O perdão, em suas palavras, manifesta-se por meio da lembrança, exigindo a memória viva dos fatos. Já, na anistia, isto não ocorre, posto que se exige um esquecimento forçado, uma “amnésia comandada” (2009, p. 298), em nome da paz social. É exatamente por essa razão que anistia e perdão, no Brasil, há tempos são conceitos tão distintos. A anistia consistiu num apagamento que foi bem além da execução das penas. Incluiu, outrossim, a proibição de ações em juízo (ou seja, proibição de todo e qualquer processo movido a criminosos e também a proibição de mencionar os próprios fatos com sua qualificação criminal). Dessa forma, trata-se a anistia de uma verdadeira amnésia institucional que nos convida a agir como se o fato não tivesse ocorrido. Para o legislador, todos os delitos do esquecimento estão contidos nessa incrível, para não dizer “mágica”, pretensão, de apagar os vestígios das discórdias públicas e, é nesse sentido que a anistia é o contrário do perdão, pois este exige memória (MIGLIORI, 2009, p. 259). Enquanto amnésia comandada, a anistia dissimula um passado declarado proibido, entretanto, não tem o condão de provocar o seu total esquecimento. Se assim o fosse, a memória individual e coletiva seria privada da fundamental crise de identidade que possibilita uma volta do passado e de sua carga traumática. O que ocorre é justamente o oposto, contudo: cada vez que o sujeito ou o Estado tentam submeter as lembranças a um processo de amnésia forçada, estas voltam com mais força, uma vez que elas passam a se constituir como trauma para o indivíduo ou para a sociedade (TELES, 2005, p. 322). Portanto, “não lembrar” não significa esquecer a dívida, a dor, o trauma, mas, do contrário, o retorno a um passado que atormenta e que pode vir a se repetir na história brasileira. Por tal motivo, entende-se que somente o perdão pode ser visto como elemento de reconciliação nacional. Um perdão que não olhe para quem “mais sofreu” ou “mais
  • 106. Arte Comentada Capítulo 8 106 impôs sofrimento”, mas que apenas atenta à sua estrita finalidade de fornecer ao passado (e quem com ele sofre) uma boa dose de tranquilidade e paz. Caso a Lei da Anistia brasileira venha a ser revista em um futuro próximo, modestamente se entende que o caminho do punitivismo puro e simples não é o mais adequado, tendo em vista que somente promoverá mais ódio, rancor e o risco de um futuro incerto para o povo brasileiro. Que a anistia brasileira seja, pois, condicionada à “verdade”: somente através dela é que conseguirão os infratores (independentemente do lado que estejam) o perdão da sociedade brasileira, da história, e de suas próprias consciências. Essa é a verdadeira essência de uma justiça que restaure os laços de paz do Brasil. Essa é a correta forma de utilizar a justiça de transição como elemento da justiça restaurativa. CONLUSÃO O perdão encontra-se num jogo de temporalidades. Diferentemente da memória, não se opera olhando unicamente para trás, ele consiste num caminhar em direção ao amanhã, ou melhor, caminhar para o horizonte de liberdade. Mas, para isso, é necessário também perpassar pela representação do passado, buscando nela um outro horizonte possível: o da superação. É um lembrar para se esquecer, que se opera com os olhos de uma memória crítica e feliz, porque reconhece a dívida passada, mas ainda assim é capaz de domina-la. A lembrança é aqui meio para recriar os laços com o passado a partir do acoplamento com uma sempre nova promessa. Por outro lado, o que nos parece, é que as tentativas de apagamento dos rastros, dos documentos e dos crimes da ditadura na África do Sul e no Brasil caminham num sentido bem diferente daquele preconizado pela cura indicada pelo perdão. A memória é, nesse sentido, impedida por um esquecimento de fuga, instituindo uma relação patológica com o passado traumático. Possibilitar o julgamento dos agentes públicos que cometeram delitos na época de repressão não é simplesmente mexer em feridas ou fomentar o ódio, mas permitir trilhe seu caminho em direção à busca pelo perdão. Isso implica reconhecer o papel terapêutico da construção de uma memória que busque a verdade dos fatos e a narração das vítimas, conforme a Comissão Verdade buscou na África do Sul e no filme. Operdão,nessalógica,éinterrompimento,masnãoéimpunidade;éesquecimento da dívida, mas não dos fatos; é generosidade. Assim, deve reconhecer os atos praticados durantes esse período sangrento, recontar essa história e reconhecer as próprias potencialidades de um “homem capaz” de recontar a sua história e de se responsabilizar pelas suas faltas como única forma de seguir em frente. Dessa maneira, o perdão significa afirmar que o homem não se reduz a suas faltas e a negatividade pelos delitos praticados. Mas é justamente, por isso, que ele também está suscetível a ser imputado dentro de uma esfera jurídica, que lhe assegure também o momento da sua narração. A partir do devido processo, o individuo encontra-
  • 107. Arte Comentada Capítulo 8 107 se na posição de ser perdoado pela vítima e de ter restabelecida a sua dignidade. Todavia, há algo no perdão que extrapola todo o cálculo do direito que é a sua generosidade incondicional. Ele é sublime demais para ser unicamente jurídico, mas nem por isso encontra-se totalmente desligado do papel a ser desempenhado pelo processo judicial. O perdão encontra, sim, no direito a capacidade de estabelecer- se no mundo dos homens que é sempre contingente, indicando caminhos para a superação das doenças da memória e da relação obsessiva que instituímos com o nosso passado.   REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001. FREDERIC, Luskin. O poder do perdão. Tradução de Carlos Szlak. SP: Francis, 2007. MIGLIORI, Maria Luci Buff. Horizontes do perdão: reflexões a partir de Paul Ricoeur e Jacques Derrida. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2009. ________. In: DE PAULA, A; SPERBER, S. (Orgs.). Teoria literária e hermenêutica ricoeuriana: um diálogo possível. Dourados, MS: UFGD, 2011. p. 247-269. TELES, Edson Luiz de Almeida. A anistia e os crimes contra humanidade. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, número 55, jul-ago 2005, ano 13, p. 315-337. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François et. Al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009. SOMBRAS do Passado (RED DUST). Direção: Tom Hooper. Produção BBC Films e Distant Horizon. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, 2004, 110min. Son, Color, 1DVD.
  • 108. Arte Comentada Capítulo 9 108 CAPÍTULO 9 DISPOSITIVO E COLETIVOS ARTÍSTICOS: UMA METODOLOGIA DE NARRAR O ENCONTRO Lara Lima Satler Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, Goiânia, Goiás Lisandro Magalhães Nogueira Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós- Graduação em Performances Culturais, Goiânia, Goiás RESUMO:NestetextoinvestigaremosaGarapa, especificamente na realização do projeto de sua autoria intitulado Correspondências. Objetivamos analisar as metodologias adotadas para realização audiovisual neste projeto. Neste sentido, quais as estratégias narrativas da produção audiovisual realizada por quem se afirma coletivo artístico? A metodologia utilizada para a construção desta reflexão foi a pesquisa bibliográfica, a entrevista em profundidade e análise de imagens em movimento. Como resultados,pretendemoscontribuircomodebate sobre o fenômeno contemporâneo de realizar audiovisual em agrupamentos que, devido aos seus modos de fazer, se autodenominam coletivos. PALAVRAS-CHAVE: coletivismo, dispositivo, metodologia ABSTRACT: In this text we will investigate the Garapa,specificallyintherealizationoftheproject of his authorship entitled Correspondence. We aim to analyze the methodologies adopted for audiovisual realization in this project. In this sense, what are the narrative strategies of the audiovisual production performed by those who claim artistic collective? The methodology used to construct this reflection was the bibliographical research, the in-depth interview and the analysis of moving images. As a result, we intend to contribute to the debate about the contemporary phenomenon of performing audiovisual in groups that, due to their ways of doing, call themselves collective. KEYWORDS: collectivism, strategies, methodology 1 | INTRODUÇÃO Neste texto, investigaremos a Garapa, especificamente na realização do projeto de sua autoria intitulado Correspondências (GARAPA, 2013b, 2013c, 2013d, 2013f). Objetivamos analisar as metodologias adotadas para realização documental neste projeto. Neste sentido, quais as estratégias narrativas da produção de um grupo que se afirma coletivo artístico? Ametodologia utilizada para a construção desta reflexão foi a pesquisa bibliográfica (STUMPF, 2005), a entrevista em profundidade
  • 109. Arte Comentada Capítulo 9 109 (DUARTE, 2005), análise de imagens em movimento (ROSE, 2002), bem como normatização do texto (ISKANDAR, 2010). A fim de compreender sobre o fenômeno contemporâneo de realização audiovisual em coletivo, buscamos compreender sobre como se constituem, como se organizam e a partir de quais motivações. Como resultados, pretendemos contribuir com o debate sobre o fenômeno contemporâneo de realizar audiovisual em agrupamentos que, devido aos seus modos de fazer, se autodenominam coletivos. 2 | COLETIVISMO ARTÍSTICO EM DESTAQUE Crusco (2013, p. 94) ao fazer uma retrospectiva sobre o debate público brasileiro em 2013 argumenta que os coletivos, “grupos de pessoas que se unem em prol de um objetivo comum, seja ele político, artístico ou puramente profissional”, se destacam. Apresenta ainda que conceitos como horizontalidade das relações, trabalho coletivo, ambiente compartilhado, autogestão, descentralização das decisões, flexibilidade, mobilidade, nomadismo são utilizados com alguma recorrência por grupos que se autodenominam coletivos. Em termos históricos, Stimson e Sholette (2007, p. 3) alertam para o fato de que a coletivização na arte não é uma novidade, mas “é apenas o renascimento intenso, o ressurgimento dos fantasmas do passado, uma retomada de oportunidades e velhas batalhas”. Os organizadores do livro Collectivism after Modernism – The Art of Social Imagination After 1945 (2007), contudo, propõem uma periodização histórica que serviria para analisar os coletivos atuais de acordo com suas diferentes ambições em relação ao coletivismo anterior à Segunda Guerra Mundial. Se nesta época as formas de voz coletivas falavam em nome de uma nação ou classe ou ainda da humanidade, os coletivos posteriores a ela renascem sob um diferente fetiche: a virada cultural. Os autores argumentam que a virada cultural é originária de um período de guerra não declarada oficialmente entre capitalismo e socialismo, ou seja, entre o fim da Segunda Guerra Mundial, 1945, e a queda do Muro de Berlim, representando o fim da Guerra Fria, 1989. Apresentam que desde este período a cultura gradualmente adquire um peso político e reciprocamente a política assume um tom cultural. Da luta dos direitos civis graficamente representados na revista Life aos slogans de Maio de 1968 inspirados nos Surrealistas, da emergência da Nova Esquerda ela mesma renascendo da contracultura a uma variedade de transformações e contradições compõem-se a virada cultural, que reorganiza a vida diária e as lutas das classes subalternas. (STIMSON; SHOLETTE, 2007, p. 9) Alegam ainda que entre estas duas datas, modos coletivos de trabalho e associações artísticas sofriam rotineiras denúncias e represálias diretas ou indiretas de campanhas anticomunistas e pressões conservadoras, como ocorreu com The Artists League e Artistis Equity. Fundada em 1947, a Artistis Equity Association (AEA) foi criada para proteger a condição econômica de artistas norte-americanos que viveram
  • 110. Arte Comentada Capítulo 9 110 nos EUA durante a guerra e, na medida do possível, apoiá-los no período pós-guerra. Sokol (1999) afirma ser difícil perceber a pouca atenção que foi dada às condições econômicas dos artistas norte-americanos num período em que mercado da arte se aquecia, os museus de arte contemporânea expunham obras e a vida destes artistas e os jornais das cidades cobriam estas exposições. Contudo, o apoio governamental a estes artistas tinha desaparecido durante a Grande Depressão e os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Além disso, os colecionadoresdeartesevoltaramparaomercadoEuropeueparaobrasdeartistascom reputação internacional e também no período imediato do pós-guerra, organizações artísticas eram vistas com desconfiança por críticos e políticos conservadores, primeiro devido a uma antipatia ao ativismo de grupos como o Artists’ Union, segundo por causa da mentalidade conspiratória desenvolvida durante a Guerra Fria. É neste contexto que surge a AEA. Também nas ficções cinematográficas hollywoodianas do período supracitado o pânico era expresso através de narrativas conspiratórias, infiltrações comunistas e invasões alienígenas. Seed (1999) argumenta que a Guerra Fria foi uma metáfora. O autor relata que o termo geralmente datado do discurso proferido por Bernard Baruch em 1947 e depois popularizado pelo jornalista Walter Lippmann, já tinha sido usado em 1945 por George Orwell em seu artigo You and The Atom Bomb no qual previu uma situação de paralisia armada, de hostilidade nunca antes vista entre combatentes governamentais. Ao examinar discursos de políticos norte-americanos, o autor argumenta que a percepção deles sobre a Guerra Fria era estruturada por meio de metáforas como a que associou a União Soviética a predadores perigosos. Muitas destas metáforas tornaram-se narrativas cinematográficas. Ele cita o filme Them! (Gordon Douglas, 1954), traduzido como O mundo em perigo, argumentando que sua dupla metáfora - formigas como monstros e formigas como pessoas - foi utilizada para dramatizar o medo de um imprevisível ataque Comunista por meio de armas químicas e radioatividade Mas se especialmente nos Estados Unidos foi levantado uma bandeira de perseguição contra o coletivismo artístico, também lá ele reemergiu da cultura marcado pelo compartilhar das experiências, pelo desejo de falar em uma voz coletiva, possibilitando rupturas ao dar lugar a questionamentos sobre cristalizadas narrativas sociais. Stimson e Sholette (2007) argumentam que sob a égide de uma virada cultural, o coletivismo artístico após a Segunda Guerra Mundial raramente interessa-se por uma unidade como a singularidade de vanguarda, pois sua aspiração é, ao invés de lutar contra a inevitável heterogeneidade, abarcá-la. Argumentam ainda que o coletivismo depois do modernismo está organizado em redes de grupos artísticos informais, que com independência política e ativista se volta para o mercado do espetáculo, tentando usar sua rede de significação e distribuição para intervir no mundo da cultura de massa. Drew (2007) acrescenta a esta discussão o recorte do coletivismo na videoarte,
  • 111. Arte Comentada Capítulo 9 111 buscando outros caminhos para observar sua origem como expressão artística e exemplificando como alguns coletivos de vídeo ficaram à margem da história devido às rígidas fronteiras estabelecidas pela crítica e historiadores. Não nos interessa resumir aqui sua reflexão, mas aproveitá-la como referência para coletivos que se utilizam do audiovisual nos dias atuais. Muitos críticos de arte, curadores, e outras autoridades da arte mundial têm se fixado na forma e frequentemente ignoram o trabalho fundamentado no conteúdo ou no contexto. Do mesmo modo, eles tendem a repudiar trabalhos classificados como arte política ou não arte, como a arte que está focada em questões sociais ou a arte que está situada na esfera pública, que é também despersonalizada e menos individualizada e, então, menos inerente a aprovação e comercialização e ao estereótipo de arte sensível e criativa. [...] Movimentos artísticos como o Surrealismo e o Dadaísmo, movimentos muitas vezes falsamente aprovados pelo establishment da arte, eram interessados em tais questões como outros movimentos culturais que exigiram a fusão da vida cotidiana com a expressão artística, como os Situacionistas, os Beats, os Diggers e os Hippies. Muitos coletivos de vídeo continuam a trabalhar inspirados pela tradição iniciada por estes movimentos. (DREW, 2007, p. 97) Como veremos a seguir, Paulo Fehlauer (2013a), membro fundador da Garapa, idealizador e proponente do Correspondências, tem nos Situacionistas uma referência fundamental tanto para o coletivo quanto para o projeto. É preciso compreender que os Situacionistas foram um grupo de intelectuais e ativistas franceses liderados por Guy Debord e Raul Vaneigem. Segundo Mann (2010, p. 27), o trabalho deles “culminou em duas grandes proposições teóricas, ambas publicadas em 1967: A sociedade do espetáculo de Debord e A revolução da vida cotidiana de Vaneigem”. Quando explicava sobre a metodologia do Correspondências, Fehlauer (2013a) afirma que para o trabalho do projeto nascer da experiência de percorrer a cidade foi fundamental a “ideia dos Situacionistas de criar trajetos, de percorrer, de absorver a cidade, de criar situações para que a criação surja a partir dessa experiência”. A partir dessa referência, apresentaremos o coletivo Garapa, especialmente sua realização do projeto Correspondências. Afinada com a terminologia contemporânea do coletivismo artístico, Garapa pode ser compreendida como um estúdio, bureau ou mini-produtora que articula colaboradores em seus trabalhos comerciais e autorais. Desenvolvido em 2013, com o apoio financeiro da nona edição do Programa de Rede Nacional Funarte Artes Visuais, pela Garapa, o projeto Correspondências levou oficinas de produção multimídia a cinco capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo. As oficinas, como explicou Fehlauer (2013a), durante uma entrevista realizada na sede da Garapa em São Paulo, não eram técnicas, antes tinham como objetivo jogar fagulhas de produção coletiva em outros cenários e produzir a partir do encontro, possibilitado pelas oficinas. No projeto Correspondências, ele argumentou, os documentários foram produzidos coletivamente e em rede. Desse modo, o projeto se desenvolveu pela Garapa, um grupo com quatro membros fixos, mas em cada capital onde as oficinas foram realizadas (Curitiba,
  • 112. Arte Comentada Capítulo 9 112 Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo) um coletivo distinto se estruturou. Segundo Hollanda (2013, p. 2), Os coletivos são formados apenas em função da produção de um ou mais projetos. Estruturam-se para aquele fim específico e em seguida se recompõem com novos participantes em função de outro projeto. Isso quer dizer que a composição de um coletivo não é fixa. É móvel. Portanto, a primeira distinção que nos interessa fazer é entre o coletivo Garapa e o coletivo do Correspondências em cada capital. Em outras palavras, compreendemos que cinco coletivos distintos foram formados, no projeto no momento das oficinas presenciais. Embora o Correspondências tenha sido unicamente composto por sessenta participantes, doze por cidade, mais os membros da Garapa e alguns parceiros locais durante os diálogos e trocas por meio das redes virtuais, no presencial os grupos se constituíram distintamente em cinco. A relação estabelecida resultou em caminhos diversos sinalizando diferentes escolhas, dentro de um mesmo tema a ser trabalhado nos documentários: a mobilidade urbana. Fehlauer (2013a) quando apresenta as razões do processo de realização exigir a alteração de um único documentário para o que ele denominou de vinte “narrativas fragmentadas” afirma que “seria muito difícil fazer um trabalho linear, por exemplo, uma narrativa linear a partir de uma experiência que passa por cinco cidades diferentes, com cinco grupos completamente diferentes, em momentos diferentes”. Sua compreensão consubstancia a forma de organização dos coletivos refletida por Hollanda (2013) para quem eles são formados em função de um projeto ou um fim específico e recompõem- se com novos membros em seguida. No caso da Garapa há uma dupla questão envolvida, pois além de se intitular um coletivo que realiza projetos autorais com a intenção de provocar a criação de outros coletivos – jogar fagulhas de produção coletiva – é também uma organização comercial, um bureau ou mini-produtora. Mesmo existindo essa ambiguidade na sua composição, perceberemos a seguir na sua organização características que lhe conferem traços marcantes de um coletivo. Seguindo a própria argumentação de Hollanda (2013) os coletivos têm como características a intervenção no espaço urbano; a denúncia social e a discussão da produção no mercado de arte; a organização independente, rizomática, nômade, descentralizada, flexível e situacional; a busca por patrocínio e a oferta de cursos e trabalhos em design, ilustração e vídeo para a realização das suas ações; a autogestão dos próprios produtos, eliminando a figura do curador, das galerias e outras autoridades do circuito artístico; a composição móvel e vinculada apenas a projetos pontuais e imediatos; o uso frequente de tecnologias virtuais para as trocas de informações de modo relacional, por meio de redes; e finalmente, o agir imediato e concreto e por necessidade. De todas as características apontadas acima, apenas a composição móvel não se aproxima do modo como a Garapa tem integrado seus membros, por isso, afirmamos
  • 113. Arte Comentada Capítulo 9 113 que este item é questionável na argumentação da autora, bem como compreendemos que a Garapa atua como um coletivo artístico, ou seja, se compõe e organiza suas produções na perspectiva do coletivismo desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial segundo Stimson e Sholette (2007). A partir de agora trataremos de Correspondências Goiânia, que apesar de ser montado pela Garapa configurou-se, depois desta seleção, um coletivo autônomo e distinto, pois apresenta outros participantes, outras experiências e trocas e ainda porque nele outros aprendizados foram construídos. Ainda sobre a composição, Fehlauer (2013a) afirma que, E como processo [coletivo] é uma coisa que nos interessa muito, levamos para outros meios, outros ambientes. É por isso que quando a gente leva oficina para outros lugares, nós tentamos sempre criar grupos. Primeiro, selecionar pessoas de perfis bastante diferentes. Então no caso do Correspondências tinha – era super aberto – tinha arquiteto, jornalista, fotógrafo, gente do vídeo, das artes – era bem amplo o espectro de pessoas. Segundo o texto do projeto publicado em um site específico para sua divulgação nacional, “os grupos de trabalho serão montados considerando a complementaridade dos perfis” desejados os quais estavam listados por artistas e “estudantes e profissionais do campo das artes visuais, do audiovisual e da comunicação” (FEHLAUER, 2013b). Quando observamos o objetivo da complementação dos perfis dentro do projeto Correspondências, notamos que esta seleção é determinante para composição dos cinco coletivos. Ela sinaliza um modo de trabalho dentro das oficinas, que foram os encontros presenciais. Elas foram caracterizadas por pequenos núcleos de trabalho, com líderes funcionando como monitores que auxiliaram os demais participantes e consequentemente a coordenação do projeto. Em outras palavras, observamos que o perfil desejado aponta para o planejamento de uma organização de trabalho nuclear. Acho que neste caso, como o trabalho viajou por cinco cidades, cada uma tinha uma realidade diferente, né? E cada grupo também acaba tendo uma realidade diferente. A gente tenta, na hora de montar os grupos, a gente também tenta compensar essas diferenças. Então não vai ter um grupo com todos os fotógrafos e outro com nenhum, sabe? A gente tenta misturar isso para que a coisa fique mais equilibrada. E aí o próprio grupo acaba se ajudando. Então aquele cara que já trabalha com fotografia, o cara que trabalha com vídeo, ele vai, ele mesmo vira um núcleo ali, ele orienta as outras pessoas sobre o funcionamento, né, que é uma das coisas que a gente coloca sempre no primeiro encontro: é que não é uma oficina técnica, não é o objetivo, tanto que acontece, é bastante comum que exista uma evasão logo depois do primeiro encontro. (FEHLAUER, 2013a) Além de sinalizar o trabalho dos supostos doze participantes (afinal eram doze vagas) em núcleos, essa organização nuclear assinala-nos que as oficinas eram muito mais um misto de espaço do encontro e trocas de experimentações coletivas para uma realização audiovisual do que um ambiente tradicional de aprendizado sobre documentários em rede. Por isso, Fehlauer (2013a) afirma, a gente nem usa muito o termo ensinar como uma ideia, porque no fundo a gente faz é meio que um trabalho, a gente faz é uma articulação assim, tá no meio de
  • 114. Arte Comentada Capítulo 9 114 pessoas que já têm conhecimento, que tem algo a contribuir com o processo. E então tanto que nesse caso a gente já fez um recorte de público, que é um público já capacitado. Neste sentido, observamos que as oficinas, neste projeto, funcionaram como o situacional, nos termos de Hollanda (2013), ou seja, o espaço para o encontro que resultará na produção coletiva. Desse modo elas funcionam como um coletivo que se encontra para realizar. As dúvidas técnicas, de linguagem ou de estilo narrativo foram abordadas caso os membros perguntassem, durante estes encontros, fossem eles virtuais ou presenciais. Assim temos ainda que as oficinas foram o espaço dos próprios coletivos existirem, foram alegoricamente pretextos para que os grupos se articulassem e realizassem audiovisual juntos. 3 | DISPOSITIVO NARRATIVO COMO METODOLOGIA COLETIVISTA Para a captação e montagem das imagens do documentário o projeto partiu de um dispositivo narrativo, ou seja, de uma metodologia para construção narrativa intitulada, neste projeto, jogo cartográfico. Migliorin (2005) afirma que o conceito de dispositivo tem sido recorrente em dois campos específicos do audiovisual contemporâneo, no documentário e em produções ligadas à vídeocriação. Embora o autor, no referido texto, diferencie o uso que faz do conceito de dispositivo do popularizado por Dubois (2004, p. 33), notamos que ambos os autores têm noções que se assemelham, pois para o segundo na dimensão “maquínica” do dispositivo cinematógrafo “a técnica e a estética” nele “se imbricam” assim como nas artes rupestres o dispositivo institui uma esfera ‘tecnológica’ necessária à constituição da imagem: uma arte do fazer que necessita, ao mesmo tempo, de instrumentos (regras, procedimentos, materiais, construções, peças) e de um funcionamento (processo, dinâmica, ação, agenciamento, jogo). Migliorin (2005) pensa no dispositivo como o deflagrador de um processo narrativo, como um jogo ou estratégia que gera acontecimento no mundo e, por conseguinte, na imagem. O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré- existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio - do dispositivo - e uma larga falta de controle - dos efeitos e eventuais acontecimentos. O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais: a criação de um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou más obras por princípio. (MIGLIORIN, 2005, p. 3)
  • 115. Arte Comentada Capítulo 9 115 Mesmo que não concorde com o uso de Dubois (2004), o dispositivo de criação é também por Migliorin (2005) pensado em termos de instrumentos (as regras para o jogo narrativo, o uso de ‘novas’ tecnologias de imagem e do audiovisual) e de funcionamento (o deslocamento da direção do autor na narrativa, a abertura da condução narrativa aos participantes dela, a definição do processo pelo tempo ou espaço, a supremacia do processo em detrimento do resultado, a imprevisibilidade do resultado dada a abertura do jogo narrativo aos agentes). Outros autores têm pensado no dispositivo como estratégia de narrar, como Lins (2007), Mesquita (2007) Almeida (2016), todos dialogando com a discussão de Foucault (1979) para pensar o documentário independente contemporâneo, fazendo uso de seus termos como estratégia, dispositivo, relações de força, jogos de poder, agenciamento. Além disso, estratégias narrativas deflagradas por dispositivos se referenciam em Deleuze (1996), a partir de quem, Temos que o dispositivo, possuindo uma natureza essencialmente estratégica, sempre lidará com relações de força, instaurando um jogo de poder, com interesses diversos. Ou seja, poderá ser definido como um conjunto de ‘estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles’, atuando dessa maneira como máquinas, ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’ (ALMEIDA, 2016, p. 13, grifos do autor). Nesta direção, a fim de repensar a relação entre aquele que filma e aquele que é filmado, a construção das suas mise-en-scènes (pois ambos a constroem), e a distância entre a câmera e aqueles que ela filma, Comolli (2008, p. 54) propõe o dispositivo como uma “regra do jogo”, como uma brincadeira “muito simples” que tenta “acolher a polimorfia dos acontecimentos e sua alma aleatória”. Considerandoqueoautorétambémumrealizadoreumprofessor,suaprovocação consiste em questionar alguns procedimentos, distâncias e lugares cristalizados na produção audiovisual ficcional e televisiva. O autor assim o faz por meio de repensar a relação entre quem filma e é filmado, ou seja, ele procura enfatizar a relação e a simplicidade dela em detrimento de um procedimento padrão do fazer audiovisual. Assim, ao se referenciar ao dispositivo comenta que se trata de organizar o menos possível, e, nos momentos de graça, não organizar mais nada. Deixar, então nossos personagens, sozinhos ou juntos, se encarregarem da organização de suas intervenções e aparições em cena. Responder às suas proposições em vez de fazê-los entrar nas nossas. Como se, em uma ficção, em vez de mandar os atores trabalhar, seguíssemos a lógica dos personagens: não se trata mais de ‘guiar’, mas de seguir. (COMOLLI, 2008, p. 54) A partir disso, o jogo cartográfico proposto no Correspondências se constituiu como um dispositivo que gerou a narrativa documentária, como o deflagrador de um acontecimento, iniciado nas interações via redes virtuais e encerrado dentro das oficinas presenciais. Desse modo, o tempo do dispositivo foi demarcado pela duração do projeto entre estes dois espaços: as redes virtuais e as oficinas presenciais. Os diversos percursos vivenciados pelos participantes são o acontecimento deflagrado. Inicialmente, eles percorreram suas cidades para cumprir a segunda tarefa
  • 116. Arte Comentada Capítulo 9 116 do projeto, proposta no Tumblr e discutida no Facebook: eles tinham que escolher um ponto fixo aleatório para elaborar uma coleção de vistas ou uma paisagem visual e ao publicá-la no grupo, tinham que inserir o endereço completo deste ponto. Quando escolheram este ponto, eles não sabiam, mas souberam depois nas oficinas presenciais que ele seria uma correspondência com o ponto A, que o Google Maps define para cada capital. Visto que cada capital contava supostamente com doze participantes (desconsiderando as evasões) nas oficinas presenciais, o mapa desta cidade teria até doze correspondências com o ponto A. No site oficial do projeto, na página intitulada Correspondências e Deriva, o método foi explicado, Durante as semanas que antecederam as oficinas práticas, os participantes foram estimulados a produzir e publicar vídeos de curta duração (aproximadamente um minuto) que apresentassem uma breve paisagem visual de suas cidades, como uma espécie de fotografia em movimento. Foram publicados 38 vídeos no Tumblr do projeto, que também serviu de plataforma para a apresentação e discussão de referências. Em seguida, cada cidade teve um mapa de sua mancha urbana impresso, em alta definição e a partir de escalas idênticas, em papel vegetal, e cada vídeo publicado pelos participantes foi então georreferenciado no mapa impresso correspondente. Durante as oficinas práticas, o primeiro exercício proposto aos participantes era sobrepor o mapa de sua respectiva cidade aos das demais – a transparência do papel vegetal e o georreferenciamento ‘feito à mão’ fizeram com que os pontos demarcados em um mapa (as paisagens visuais) pudessem ser transpostos para outro, criando assim um ponto de partida para a elaboração das correspondências. (FEHLAUER, 2013c) Estas duas origens de correspondências, feitas no mapa em papel vegetal, geraram diversos percursos, dentre os quais quatro foram eleitos pelos participantes para serem percorridos. Na figura a seguir, temos o mapa de Rio Branco, contendo a marcação dos percursos (vide os traços) e os pontos escolhidos (vide os números) desta e das outras capitais. Figura 1: Mapa de Rio Branco em papel vegetal com as marcações manuscritas. Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f) Após o citado georreferenciamento feito à mão, um segundo nível de
  • 117. Arte Comentada Capítulo 9 117 correspondências ocorreu. O mapa em papel vegetal da cidade onde a oficina estava sendo realizada. Por exemplo, o mapa de Goiânia ficava sobre os demais com os quais ele iria se corresponder. Assim os pontos georreferenciados nas outras cidades eram também georrefenciados neste mapa, tendo cada capital uma cor diferente. As distâncias de uma capital e outra que estes pontos refletem por meio das correspondências foram discutidas nestes encontros. Quando um participante do coletivo em Goiânia tenta explicar um instrumento do dispositivo que se perdeu no processo, chamada Diário de Bordo, ele afirma a ideia do vídeo [a segunda tarefa intitulada paisagem visual] era – vou explicar o dispositivo que foi usado – eles imprimiram cinco folhas dos cinco mapas em escala, na mesma escala, em papel vegetal, em alta qualidade assim de impressão. Em todos os mapas o meio era o ponto A, que era o ponto do Google, que ele marcava o centro da cidade, por exemplo, pro Google, né, não sei se é mesmo. E aí cada cidade, por exemplo, Goiânia “ah, o meu vídeo eu gravei nesse ponto aqui”, aí eu marcava o meu pontinho lá, sabe? Marcados todos os pontos de todos os vídeos de todas as cidades, aí sobrepunham-se os mapas nos pontos, então dava pra você ver. Como o papel era vegetal, então o ponto de São Paulo você via em Goiânia. Por exemplo, o ponto de Fortaleza você via em Goiânia, porque a nossa primeira folha era Goiânia, né? O ponto de Rio Branco você via em Goiânia. Então a ideia era, por exemplo, qual ponto de... por exemplo, eu fiquei com o ponto de Fortaleza e São Paulo, a gente tinha que pegar um ponto próximo ao ponto A, que é o ponto central, e um ponto mais distante “ah de São Paulo o ponto próximo é esse aqui” – não, o de São Paulo foi o ponto distante e o de Fortaleza foi o ponto próximo – por exemplo, o de Fortaleza caiu na rodoviária, o ponto B, o de São Paulo caiu num setor lá na frente da Avenida Anhanguera. E aí eu acho que o Diário de Bordo era isso de você sair do ponto A e era uma descrição em imagem e som desse trajeto até o ponto B, eu imagino que seja isso, né? Porque às vezes, sei lá, às vezes ia de ônibus, às vezes ia – o pessoal – ia de bicicleta. (MARIANO, 2013) Também as condições (e falta delas) de deslocamento entre estas distâncias foram discutidas em correspondência. “Como é que eu faço pra ir de Goiânia para Fortaleza?” foi a primeira pergunta feita aos transeuntes de Goiânia que estivessem dentro do percurso citado acima por Mariano e disponível a participar do documentário. De todas essas respostas, a narrativa apresenta algumas correspondências numéricas, como vemos na figura abaixo, sugerindo-nos que elas emergiram do acontecimento, do diálogo com os entrevistados engendrado na feitura do percurso. Figura 2: Frame (quadro) retirado do micro-documentário Goiânia // Fortaleza. Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f)
  • 118. Arte Comentada Capítulo 9 118 Intitulado Goiânia // Fortaleza (lê-se Goiânia em correspondência com Fortaleza), o trecho percorrido para essa narrativa resulta de um ponto de São Paulo (próximo ao ponto A do Google Maps, em Goiânia foi localizado na Avenida Anhanguera, vide figura 3) e de um ponto de Fortaleza (chamado ponto B, em Goiânia localizado no Terminal Rodoviário da capital, vide figura 4). Figura 3: Cena que indica o início do percurso, o ponto A, situado na Avenida Anhanguera, Goiânia. Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f) Figura 4: Cena que indica o final do percurso por meio do ponto B, no canto inferior direito. Autoria: Garapa (2013b, 2013c, 2013d, 2013f) Além dessa primeira correspondência entre Goiânia e Fortaleza, materializada nas respostas dos entrevistados ao longo do micro-documentário e também no mapa dos meios de transporte, distâncias e custos da figura cinco, temos uma segunda correspondência que é sobre o percurso feito entre o ponto A e B, dentro de Goiânia. A narrativa do micro-documentário nos sugere que este percurso foi feito a pé porque o primeiro entrevistado que aparece em cena afirmou não ter outro meio de transporte além do táxi para fazê-lo. Isto é, nos é sugerido que o dispositivo narrativo, que aqui é o acontecimento deste percurso do ponto A ao B, não tinha regras pré-fixadas quanto
  • 119. Arte Comentada Capítulo 9 119 aos meios de realizá-lo e que estes meios emergiram do próprio percurso. Assim, o acontecimento seria caracterizado como uma deriva aos moldes das derivas dos situacionistas. O Correspondências apresenta as derivas situacionistas como referência para o projeto ao indicar do site oficial do projeto, via link, o texto Breve histórico da Internacional Situacionista escrito por Paola B. Jacques (2003, p. 3) para quem Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista – IS, é quase inclassificável. Muito influenciado pelo movimento Dadá e também pelo Surrealismo (que depois será um dos maiores alvos de suas críticas), o jovem Debord encontrou em 1951, no festival de cinema de Cannes, um grupo com influências e interesses parecidos, os Letristas de Isidore Isou. Já em seu primeiro filme em 1952, Hurlements en faveur de Sade, Debord entrou em conflito com Isou e deixou os “velhos letristas” para fundar nesse mesmo ano, com alguns amigos, a Internacional Letrista – IL. [...] Os letristas, reunidos em torno de Debord – entre os mais influentes membros, editores de Potlatch, estavam Michèle Bernstein, Franck Conord, Mohamed Dahou, Gil Wolman e Jacques Fillon –, já anunciavam algumas idéias, práticas e procedimentos que depois formaram a base de todo o pensamento urbano situacionista: a psicogeografia, a deriva e, principalmente, a idéia-chave, inspiradora do próprio nome do futuro grupo, a ‘construção de situações’. [...] a experiência psicogeográfica estava diretamente ligada à prática da deriva, vários textos letristas comentavam e propunham diferentes derivas, entre eles o Résumé 1954, assinado por Debord e Fillon (Potlatch, n. 14, novembro 1954): ‘As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos’. Apesar da referência às derivas situacionistas, lemos que, a gente usou, por exemplo, do ponto A daqui de Goiânia era no cruzamento da República do Líbano com a Anhanguera, aí a gente foi de lá até a rodoviária a pé, por exemplo, porque era mais próximo. Aí nesse trajeto a gente, antes de sair elaborava o que ia ser abordado, “oh, pode ser abordado tal coisa”, por exemplo, no trajeto da rodoviária até o... do ponto A até a rodoviária, na Tocantins era o antigo Aeroporto, era a antiga pista do Aeroporto, tinha a Praça do Avião que era o antigo Aeroporto, a gente levantava temas ligada à mobilidade nesse trajeto antes de sair pra gente ter um norte, sabe? (MARIANO, 2013) Assim, fica-nos a dúvida se o dispositivo narrativo definiu os meios de deslocamento para realizar o percurso de A a B ou se esses meios emergiram do próprio percurso, como nos sugere a narrativa. Considerando com Migliorin (2005) que o dispositivo narrativo apresenta duas linhas complementares, uma de controle e outra de abertura, nesta perspectiva do acontecimento, parece-nos que a narrativa nos sugere uma abertura ao percurso, mas que o dispositivo já o tinha definido como controle. Ainda sobre o acontecimento e a experiência oriunda dele, observamos na narrativa desse percurso um interesse por imagens que correspondam aos conteúdos das falas. Esta é a última correspondência que gostaríamos de abordar por enquanto:
  • 120. Arte Comentada Capítulo 9 120 a correspondência das imagens com os textos das entrevistas. Se houve abertura do dispositivo ao imprevisto e o seu controle definiu o tempo e a duração, temos então que as imagens surgem dos textos, dos diálogos travados entre os participantes do projeto e as pessoas que abordadas durante o percurso concordaram em se relacionar com seu acontecimento. Argumentamos que as imagens surgem dos diálogos dado o formato de entrevista definido para a relação com o acontecimento, ou seja, o percurso é apresentado pelas falas as quais também o conduz visualmente. Um exemplo disso está já nas cenas iniciais: após a primeira fala, a do jornaleiro, que afirma ter apenas táxi para o destino do coletivo, os seus membros aparecem andando a pé. Por isso, inferimos que o coletivo foi do ponto A ao B a pé. Ainda nesta perspectiva, temos que o tempo do percurso foi de um dia, pois o ponto A filmado no início da manhã e o ponto B, ao entardecer. Essa duração de tempo confirma o deslocamento a pé, pois mesmo que a distância não seja tão grande em termos reais, na narrativa compreendemos que o percurso durou um dia. Isto é, a imagem reiterou o argumento do jornaleiro, que, em outras palavras, criticou a falta de meios de transporte para o percurso, sugerindo que se consumiu um dia para cumpri- lo. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dispositivos como estratégias de narrar são para coletivos artísticos um pretexto para deflagrar encontros e para criar histórias a partir deles. Neste sentido, o dispositivo configura-se em uma metodologia de narrar projetos documentais que anseiam por promover experiências de alteridade entre autores e personagens. Portanto, ressalta nas imagens resultantes a própria metodologia de construção narrativa, ou seja, o modo como personagens foram convidados a participar do filme, as negociações e os agenciamentos presentes nesta relação. Especificamente no dispositivo do jogo cartográfico criado pela Garapa, mesmo que as falas das personagens conduzam o trajeto entre os pontos A e B, diversas imagens não diretamente ligadas a elas expressaram o olhar do coletivo autor sobre os acontecimentos. Assim, durante o percurso vemos motos no trânsito, motos à venda, carros no trânsito, carros à venda, a faixa de pedestre invadida por carros durante a travessia, engarrafamentos. Estes assuntos visualmente abordados não aparecem nas falas, apenas nas imagens. Notamos que os processos ocorreram por meio das trocas e interações entre todos os participantes, não apenas unilateralmente dos membros da Garapa para os participantes do Correspondências. Estes processos formaram uma camada que esteve presente em todo o projeto, do início ao fim do mesmo. Observamos que outra camada também esteve presente durante todo o projeto: a noção de grupo de trabalho,
  • 121. Arte Comentada Capítulo 9 121 o desejo de que todos ali estivessem em horizontalidade de relações e se reunissem para realizar um documentário. Observamos ainda outra camada constituída: dado que o objetivo principal foi a realização documentária, o modo de fazer, as regras do jogo tomaram a frente do processo, tornando-se mais visíveis, chamando para si a força do projeto. Por isso, a sua alteração de foco no gênero fílmico documentário no início para uma ênfase no jogo cartográfico – metodologia do dispositivo – do meio para o fim do processo. As três camadas estiveram a todo tempo de duração do projeto presentes. Observamos, contudo, que em planos distintos de visualização e ênfase durante o processo.Acamada do aprendizado se deu por meio de trocas e interações poliformes, assistemáticas e multivocais. Foi uma camada percebida indiretamente e submetida às duas outras, por essa razão observamos na própria discussão aqui proposta poucos elementos desta aprendizagem. Já as duas outras camadas estiveram em primeiro plano, pois ao percebermos as oficinas como espaços do encontro para a realização audiovisual, tanto essa realização quanto seu o método ressaltam, tornam-se o centro das atenções. Foi assim que o jogo cartográfico sobrepôs o gênero documentário durante o processo, processo este que determinou os resultados. Uma vez que o dispositivo era aberto às interferências dos participantes das oficinas de cada capital, tornou-se inviável a edição de um documentário único. Por isso, argumentamos que o processo de experimentação do dispositivo foi o determinante para a noção de narrativas fragmentárias, isto é, foi a observação ao processo que possibilitou um documentário se transformar em vinte micro-documentários sem uma relação narrativa linear entre eles. REFERÊNCIAS ALMEIDA, R. Aquele que eu vejo no outro: o dispositivo em Rua de Mão Dupla, de Cao Guimarães. In: MARTINS, A. F.; SATLER, L. L. Imagens, olhares, narrativas. Curitiba/PA: CRV, 2016, p. 13-26. DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996, p. 83-96. DREW, Jesse. The collective camcorder in art and activism. In: STIMSON, Blake; SHOLETTE, Gregory (Orgs.). Collectism After Modernism: The Art of Social Imagination After 1945. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2007, 312 p. 97-114. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004, 323 p. DUARTE, J. Entrevista em profundidade. In: DUARTE, J. ; BARROS, A. (Orgs.) Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. p. 62-83. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, 374 p.
  • 122. Arte Comentada Capítulo 9 122 FEHLAUER, Paulo. Entrevista concedida à pesquisa. São Paulo. 11.dez.2013a. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 295p. GARAPA. Correspondências: Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Rio Branco, São Paulo. Mar. 2013b Disponível em:< http://garapa.org/lab/wp-content/uploads/2013/01/correspondencias_programa.pdf >. Acesso em: 22.out.2013b. GARAPA. Correspondências - Rede Nacional Funarte Artes Visuais – Garapa. Disponível em: <http://garapa.org/lab/blog/2013/01/28/correspondencias-inscricoes-abertas/>. Acesso em: 06.dez.2013c. GARAPA. Correspondência no Vimeo. Mar. 2013d. Disponível em: <https://vimeo.com/channels/ correspondencias>. Acesso em: 22.nov.2015d. GARAPA. Quem somos. Mar. 2013f. Disponível em: <http://garapa.org/quem-somos/>. Acesso em: 22.nov.2015f. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Coletivos. (Artigo publicado em 10.set.2013). Disponível em: < http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/coletivos/. Acesso em: 06.jan.2014. ISKANDAR, J. I. Normas da ABNT: comentadas para trabalhos científicos. Curitiba: Juruá, 2010, 99 p. JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 035.05, Vitruvius, abr. 2003. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/ read/arquitextos/03.035/696>. Acesso em: 02.mar.2014. LINS, Consuelo. O filme-dispositivo no documentário brasileiro contemporâneo. In: Sobre fazer documentários / Vários autores. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. MARIANO, L. S. Entrevista concedida à pesquisa. Goiânia. 12.nov.2013.MESQUITA, Claudia. Outros Retratos – Ensaiando um panorama do documentário independente no Brasil. In: Sobre fazer documentários / Vários autores. São Paulo: Itaú Cultural, 2007. MIGLIORIN, C. O dispositivo como estratégia narrativa. Revista Acadêmica de Cinema Digitagrama, Rio de Janeiro, n. 3, jan-jun 2005. Disponível em:< http://www.estacio.br/graduacao/ cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp>. Acesso em: 04.jan.2014. SEED, David. American Science Fiction and the Cold War: literature and film. Chicago/London: Fitzroy Dearborn Publishers, 1999, 216 p. STIMSON, Blake; SHOLETTE, Gregory (Orgs.). Collectism After Modernism: The Art of Social Imagination After 1945. Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2007, 312 p. STUMPF, I. R. C. Pesquisa bibliográfica. In: DUARTE, J. ; BARROS, A. (Orgs.) Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. p. 51-61. ROSE, D. Análise de imagens em movimento. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Orgs.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 343-364.
  • 123. Arte Comentada Capítulo 10 123 CAPÍTULO 10 PRODUÇÃO DE SENTIDOS E (RE) SIGNIFICAÇÃO NA HISTÓRIA A PARTIR DO MOVIMENTO BLACKFACE1 1 Uma versão deste texto já foi apresentada no evento VI Eneimagem em 2016. Daiany Bonácio (UEL - Londrina/PR) Professora Adjunta no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. daianybonacio@yahoo.com.br. Giuliano Mattos (G-UEL - Londrina/PR) Aluno de graduação no curso de Letras – UEL - giuu.mattos@gmail.com Viviane Dias Ennes (G-UEL - Londrina/PR) Aluno de graduação no curso de Letras – UEL - wakeupmiau@gmail.com RESUMO: Como identificar em um texto a presença explícita de outro(s) texto(s)? Qual efeito de sentido é buscado com essa utilização? A fim de evidenciar esse mecanismo linguístico, selecionamos algumas cenas da série televisiva intitulada 220 volts lançada em 2014 pelo ator Paulo Gustavo, o qual apresenta, dentre outras personagens, a cômica Ivonete, uma mulher negra e pobre que luta pela sobrevivência. Como o intuito da série era a produção de humor, Ivonete foi ridicularizada, exagerada em suas características negras, o que nos remete à técnica do Blackface. Nisso, vislumbramos a intertextualidade que se estabelece nessa série com a referida técnica. Entretanto, não temos uma simples retomada do Blackface: estamos diante de um quadro invertido dos fatos ocorridos no passado que traz como resultado uma paródia. Desse modo, notamos a presença de aspectos dialógicos e polifônicos na série. Segundo o criador da personagem, o efeito de sentido pretendido é enaltecer a mulher negra e empoderada. Contudo, para isso, foi preciso ridicularizar o negro, utilizando a criticada técnica do Blackface. A partir do exposto, abordaremos os efeitos de sentidos produzidos com tal personagem, buscando compreender até que ponto a comédia pode se valer de práticas racistas para a produção de humor. Para tanto, aplicamos os conceitos de paródia e intertextualidade na concepção de Fávero (2003), Sant’Anna (2002), dentre outros. Palavras-chave: Intertextualidade; Blackface; Paródia ABSTRACT: How to identify in a text the explicit presence of other(s) text(s)? Which effect of meaning is searched with this use? In order to evidence this linguistic mechanism, we select some scenes from the television series
  • 124. Arte Comentada Capítulo 10 124 titled 220 volts launched in 2014 by the actor Paulo Gustavo, which presents, among other characters, the comical Ivonete, a black and poor woman who fights for survival. Since the purpose of the series was the production of humor, Ivonete was ridiculed, exaggerated in her black characteristics, which brings us to the blackface technique. In this, we see the intertextuality that is established in this series with the mentioned technique. However, we are not faced with a simple resumption of the blackface: we are faced with an inverted picture of the events occurred in the past that results in a parody. In this way, we notice the presence of dialogical and polyphonic aspects in the series. According to the creator of the character, the intended effect is to enhance the black and empowered woman. However, for this, it was necessary to ridicule the black, using the criticized blackface technique. From the above, we will approach the effects of senses produced with such a character, trying to understand to what extent the comedy can use racist practices for the production of humor. For that, we apply the concepts of parody and intertextuality in the conception of Fávero (2003), Sant’Anna (2002), among others. KEYWORDS: Intertextuality; Blackface; Parody INTRODUÇÃO Em meados do século XX, vigorou na África do Sul um regime político em que os negros não tinham permissão legal para frequentar teatros, nem como expectadores tampouco como atores. Isso ocorreu em um dos mais emblemáticos regimes racistas conhecido por Apartheid, que proibia os negros de coabitarem com os brancos, sendo passíveis de severas punições. Quando uma peça teatral necessitava da figura de um negro para representar as classes sociais mais baixas - como escravos, serviçais, entre outros - os atores brancos pintavam grotescamente os seus rostos com tinta preta ou utilizavam-se de máscaras. Essa técnica foi denominada Blackface. Recentemente, essa questão voltou em cena, quando o ator Paulo Gustavo apresentou no teatro e na TV, a personagem negra Ivonete, em que o referido humorista pinta-se de negro para compô-la. A partir do exposto, abordaremos os efeitos de sentidos produzidos com tal personagem cômica, a fim de compreender até que ponto a comédia pode se valer de práticas racistas para a produção de humor. Além disso, buscaremos: a) identificar as marcas do blackface na personagem de Paulo Gustavo, verificando se há alguma característica racista nesta apresentação; b) compreender o que o movimento Blackface representou ao longo da história, no intuito de saber o porquê de o negro não poder representar-se a si mesmo nas peças teatrais; c) refletir sobre quais mudanças ocorreram dessa representação do negro nos palcos desde 1848, quando se inicia o Blackface, até o presente momento, quando vislumbramos o negro com voz social mais ativa. O que motivou inicialmente a pesquisa foi o fato de que, ao analisar a personagem cômica Ivonete de Paulo Gustavo — a qual ganha vida em sua realidade na favela —
  • 125. Arte Comentada Capítulo 10 125 notamos traços do movimento Blackface em sua constituição e, nisso, vislumbramos um texto heterogêneo, isto é, a presença de outros textos constituídos historicamente na construção do seu sentido. Em consequência, garimpamos os conhecimentos prévios de outras fontes referenciais para a compreensão do significado dessa manifestação, considerada hoje uma forma de discriminação racial. Sobre isso, buscamos respaldo teórico em Fiorin e Savioli (2004) para quem os conhecimentos prévios para a compreensão de um texto podem ser expressos de forma marcada, facilmente identificada por meio de marcas linguísticas ou de maneira não-marcada, quando se posiciona implicitamente na tessitura textual. Desse modo, revelam os autores, os textos têm propriedades intrínsecas de se constituírem a partir de outros textos, isto é, todo texto é atravessado, constituído pelo discurso/texto do outro. Essa retomada do discurso-outro, pontuam Fiorin e Savioli (2004), pode ser realizada tanto para concordar quanto para discordar do texto a que se faz memória. Pretendemos retomar essa memória sobre o Blackface para o melhor entendimento do tema em pauta.Nessesentido,ajustificativadesteestudosedápelaimportânciadeentendermos este fenômeno artístico sendo recuperado na atualidade pela personagem Ivonete. Há um incômodo causado por esse tema, tão singular e complexo, a que nos deparamos em uma personagem como a Ivonete, que rememora o movimento Blackface. 1 | RAÇA, RACISMO E BLACKFACE: VISITANDO CONCEITOS A fim de melhor compreender a questão que nos rodeia, julgamos ser imperante estudar as noções de raça e racismo. Definir raça é enumerar os elementos visíveis da pessoa: a cor de pele, a altura média, a cor dos olhos, a textura dos cabelos, etc. Em outras palavras, para se definir uma raça, observa-se as características físicas de um sujeito. Sobre o assunto, Santos (1980) pontua que toda característica externa é formada também por um conjunto de outras características internas, chamadas de “raças invisíveis”: A raça preta, por exemplo, está formada de inúmeras “raças invisíveis”. Como a espécie humana sempre se misturou, conclui-se que uma “raça invisível” de pele preta pode ser igual a uma “raça invisível” de pele branca, ou amarela, ou vermelha, etc.(SANTOS, 1980, p. 12) Isso nos mostra que não existem “raças puras”, como foi defendido em um determinado período histórico, como o nazi-fascismo, e que não há como aceitarmos o argumento de que algumas raças são superiores a outras, como por muito tempo se difundiu em nossa sociedade, tendo em vista essa miscigenação: “Se há algo difícil de provar nesses assuntos raciais [...] é a unidade da espécie humana: qualquer grupo racial pode cruzar com outro que nascerão criaturas normais e saudáveis” (SANTOS, 1980, p. 13-14). Definir a superioridade de um grupo sobre outro a partir de um conceito de raça é desconstruir o indivíduo como um ser humano e colocá-lo em uma ilusão imagética
  • 126. Arte Comentada Capítulo 10 126 de “coisa” que não tem direitos, apenas deveres. A ideia de raça tem sido elaborada e elevada através da História e essa definição de raça contida no racismo se torna ainda mais difícil de definir ao passo em que a pesquisamos. Essas conjecturas sobre raça sempre foram justificativas encontradas para o confinamento dos “grupos inferiores”, a começar pela segregação. Esta pode ocorrer de duas formas: legalmente e extralegalmente. A segregação pela raça na África do Sul, por exemplo, teve início com o período colonial, com a supremacia branca imposta pela escravidão, mas foi com o apartheid que os negros dessa região foram proibidos de coabitar ou frequentar os lugares denominados como dos brancos. Figurando como um regime absolutista, o apartheid passou a tratar o racismo com embasamento legal e com total influência sobre a formação da sociedade em que se instalou e, tendo sido instaurado por eleições gerais, dividia os habitantes em grupos raciais. Tal movimento vigorou de 1948 a 1994, na África do Sul e levou para prisão e puniu severamente milhares de negros (e também alguns brancos) que não aceitavam seguir o rigor de suas regras. Para que possamos ter uma pequena amostra do que foi a realidade do apartheid e suas implicações sociais, pesquisamos algumas leis que fizeram parte da política restritiva desse regime2 : proibição de casamento e relações sexuais entre pessoas de raças diferentes; o cidadão deveria portar consigo um cartão para identificar a qual raça pertencia; locais públicos passaram a ser reservados para determinadas raças, dentre outras proibições. Por meio da leitura do livro de Santos (1980) notamos que a propagação do pensamento pejorativo a respeito do negro é algo que se dá a partir dos primeiros meses da vida de uma criança. O reforço negativo de algumas expressões consideradas parte de um vocábulo aceitável socialmente constrói a imagem de que o negro é, 2- Lei de Proibição de Casamentos Mistos (1949) – passou a ser ilegal o casamento entre pessoas de raças diferentes. - Lei da Imoralidade (1950) – tornou crime as relações sexuais entre pessoas de diferentes raças. - Lei do Registro Populacional (1950) – todo cidadão, com idade superior a 18 anos, deveria ter e car- regar consigo um cartão de identificação especificando a qual grupo racial fazia parte. - Lei de Áreas e Agrupamento (1950) – lei que passou a determinar onde cada raça deveria habitar, separadamente das demais. Em 1951 foi acrescido um adendo a essa lei que permitia que o governo demolisse, sem aviso prévio, favelas habitadas por negros e obrigada a seus empregadores que cons- truíssem suas moradias em locais devidamente autorizados. - Lei de Supressão ao Comunismo (1950) – instaurada com o objetivo de reprimir qualquer resistência ao regime apartheid, extinguiu o Partido Comunista Sul Africano e todos as outras organizações polí- ticas que o governo decidisse considerar comunista. Qualquer cidadão que se manifestasse contra o regime, ou organizasse encontros longe ao governo, era considerado comunista e tido como ameaça ao regime sendo sujeito a severas punições. - Lei de Educação Bantu (1953) – essa lei separou a educação dos negros, que eram preparados ape- nas para os trabalhos braçais. Em 1956 a discriminação racial em locais de trabalho foi formalizada e em 1959 foram criadas instituições de ensino específica para negros, mestiços e indianos. - Lei de Reserva dos Benefícios Sociais (1953) – essa lei tornou a segregação parte do dia-a-dia das pessoas. Locais públicos passaram a ser reservados para determinadas raças, criou-se separação em ônibus, praias, calçadas, escolas, hospitais, entre outras coisas. Com isso, aos negros poderiam ser oferecidos serviços de inferior qualidade sem que houvesse responsabilidade governamental, ain- da em menor escala estavam os mestiços e os indianos. Disponível em https://historiaonline.com. br/2013/12/12/as-leis-do-apartheid, acesso em 10/08/2016
  • 127. Arte Comentada Capítulo 10 127 biologicamente falando, inferior ao branco. Não é raro vermos em programas de TV, propagandas e outros meios de comunicação, os negros elencados apenas em personagens com funções já tratadas pela sociedade como inferiores. Ademais, em uma análise especulativa sobre o assunto, abordou-se primeiro a cor e depois disso um adjetivo para caracterizar um negro. Sobre essa discussão, Santos (1980) nos mostra que certas expressões e pensamentos nos rodeiam desde o início de nossa formação, como, por exemplo, “’Você está preto de sujeira!’. Quem ouve isto desde os primeiros meses de vida, dificilmente, mais tarde, fará uma ideia positiva de negros” (SANTOS, 1980, p. 20). O percurso que o racismo percorre mostra que houve um dado momento em que ele era determinado, ou sugerido, já nas raízes culturais da sociedade. Havia o racismo entre os grupos e as comunidades, na qual uma se sobrepunha sobre a outra em busca do reconhecimento de sua superioridade e glória. Em outro dado momento, o racismo passa a ser praticado como uma forma biológica de discriminação, na qual negros são comparados a macacos, sub-humanos, etc. Por esse e por tantos outros aspectos, o racismo, seja em que momento histórico se apresente, é uma forma de discriminação considerada injusta e irracional, pois, biologicamente falando, a espécie humana é uma só. A partir da disseminação dos ideais racistas citados, todo homem que não fosse branco passava a ser visto como uma sub-raça, merecedora de tratamento inferior e passível de violência. Dentro deste pensamento, com o avanço do sistema capitalista, por volta de 1860, teve impulsionada a venda do bem mais precioso naquela época: a mão de obra. Os europeus, então, afirmam sua intelectualidade racial superior ao passo que a ideia de que os lugares ocupados por “gente de cor” passam a ser vistos e nomeados como lugares onde não há como existir ciência: Os intelectuais europeus – dignos sucessores daquele Ginés de Sepúlveda, que comparava astecas a símios porcos – começaram a ensinar que nos trópicos a pobreza é inevitável: aqui o homem só tem energia para pensar em sexo e baixezas. Sendo, além disso, habitado por gente de cor, seu futuro é triste. (SANTOS, 1980, p. 26) Acreditar, com tanta certeza, que o negro é incapaz de pensar em ciência, produz nos europeus um sentimento de superioridade racial, na mesma medida em que se aumenta, assim, o complexo de inferioridade dos outros povos. Geograficamente não foi uma imposição político-econômica o espaço ocupado pelo negro; a separação étnica se deu como produto da dispersão do homem em suas diferentes condições ecológicas. No mercado de mão de obra fomentado pelo sistema econômico capitalista, a cor da pele como um fator segregacionista apenas contribuiu, de forma muito peculiar, para o seu desenvolvimento. É dentro desse contexto, com o crescente pensamento absolutista de uma sociedade regida pela classe dominante, que se evidencia o Blackface (“black” = negro; “face” = rosto). Ele inseriu-se dentro da chamada Lei de Reserva dos Benefícios
  • 128. Arte Comentada Capítulo 10 128 Sociais (1953), a qual reservava locais públicos aos brancos. O Blackface fez parte do apartheid, um regime radicalista provocado pela união de recursos governamentais racionalmente justificados por um grupo de pessoas que se viram no direito de usar o conceito de raça em prol de causas próprias e, em seguida, na influência de uma nação que, historicamente, já se via com crenças e ideais colonialistas. O Blackface surgiu no teatro no início do século XX e foi uma tradição marcadamente racista a qual teve adesão do teatro americano por cerca de 100 anos, com início por volta de 1830 e que rapidamente se tornou popular em outros lugares, especialmente na Grã-Bretanha, onde a tradição durou mais do que nos EUA, sendo exibida em horário nobre na TV. O Blackface consistia em maquiar pessoas brancas a fim de que se parecessem com o negro. A maquiagem e a encenação dos negros nesta época eram grotescas, trazendo um tom de animosidade utilizado nestas encenações. Pintavam-se os rostos brancos com tinta preta, procurando-se acentuar também o volume dos lábios; em alguns casos, chegava-se a pintá-los de vermelho, para chegar a certa “representação” desejada para os negros. O tão comum Blackface dos cinemas e teatros logo galgou espaço dentro daquela nova mídia que crescia durante o iniciar do século XX. No cinema, temos inúmeras amostras deste mecanismo, hoje bastante criticado por conter conteúdos puramente racistas. Vamos refletir um pouco sobre o movimento Blackface, a partir da compreensão da imagem ao lado, que representa a caracterização do negro em peças teatrais. Nela, temos um homem descaracterizado (nota-se que ele está com o cabelo e a roupa bem alinhados, limpos, típicos dos rapazes europeus de classe alta, brancos, pertencente à elite europeia) e a sua representação enquanto negro dentro do seu personagem. Nota-se que houve um exagero na caracterização do negro, por meio dos lábios grossos e vermelhos, a cor negra de sua pele e o cabelo despenteado, marcando o cabelo afro, representando o negro como alguém descuidado. A partir da referida prática, o uso do Blackface ganha destaque, sendo praticamente imortalizado no mesmo, cena que reflete o preconceito e que demonstra o uso pitoresco deste artifício racista. Figura1.Disponível em: http://fineartamerica.com/featured/billy-van-the-monologue-comedian-everett.html Essa prática teve grande reprodução e virou tradição nos teatros americanos durante mais de 100 anos, sendo determinante na criação e fortalecimento dos
  • 129. Arte Comentada Capítulo 10 129 estereótipos a respeito dos afro-americanos. Como vimos, o negro que nunca havia conquistado algum direito civil igual ao dos brancos, perde até mesmo o seu direito de circulação e habitação. 2 | TEXTO, INTERTEXTO E PARÓDIA Mikhail Bakhtin,aolongo deseusestudos,percebeuque,paraaobservação deum fenômeno linguístico, é necessário que o situemos, pois o seu emissor e o seu receptor precisam fazer parte do mesmo contexto linguístico e sociocultural para que haja uma comunicação eficiente e, deste modo, também a construção de uma linguagem. Para Bakhtin (1997), a substância da língua não é constituída em seu sistema abstrato de formas e nem pela enunciação monológica isolada, é, ao contrário, constituída pela interação verbal da língua, sendo um fenômeno social que se constitui por meio de relações dialógicas manifestadas no momento da enunciação. A partir desses pensamentos, o autor desenvolve o conceito de dialogismo: um processo de interação entre textos/discursos, que não são vistos isoladamente, mas correlacionados com outros textos/discursos. Assim, a linguagem é percebida a partir de uma concepção dialógica. A esse respeito, Barros (1999) revela que Bakthin desdobra o conceito em dois aspectos: o dialogismo e interação verbal, que compreende a interação entre o enunciador e o enunciatário do texto; desse modo: “(...) concebe-se o dialogismo como o espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no texto.” (BARROS, 1999, p. 03); e o dialogismo e intertextualidade, que segundo a autora, ocorre o “(...) diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define” (IDEM, p. 04). Sendo assim, as palavras do falante, bem como os textos produzidos por ele, estão sempre atravessadas por palavras de outros textos/falantes, ou seja, tanto o texto quanto o falante na interação verbal é atravessado pelo outro que os permeia e os constitui. A partir do dialogismo, notamos que, para a construção de um texto coerente, é imperante pensarmos em sua formação histórica, em que, como analisam Fiorin e Savioli(2004),hápartessolidáriasentreossentidosalçadosnotextonomomentodesua constituição. Na harmonização desses sentidos, em que uma unidade de significação menor está inserida em uma maior, conseguimos então conectar informações, dar continuidade ao sentido e fazer com que o texto seja coerente. Tendo em vista essa concepção de sentido baseada no momento histórico em que é construído, vale também pensarmos nas vozes que estão sempre presentes na concepção textual. Para Fiorin e Savioli (2004), todo texto contém, pelo menos, duas vozes: aquela que defende e aquela que se opõem às condições em que ele se solidifica. Transferindo essa condição histórica do texto para o nosso corpus de análise, percebemos que, durante o apartheid muitos brancos também foram presos e açoitados por defenderem os direitos do negro e por não concordarem com a política e a prática da exclusão. Nesse sentido, defendem os referidos autores, não há uma
  • 130. Arte Comentada Capítulo 10 130 perspectiva única sobre uma determinada questão, uma vez que a sociedade é divida em grupos sociais com interesses divergentes. Em consequência, o discurso pode ser visto como uma arena, um lugar em que os pontos de vistas divergentes lutam em defesa de suas concepções, analisam Fiorin e Savioli (2004). Tendo em mente essa questão do discurso como arena, nota-se que o Blackface foi um recurso utilizado para a dissipação da representação de que o europeu era superior perante as sociedades de outras naturalizações. A popularidade alcançada por esse movimento edificou e legalizou o pensamento racista europeu, compartilhado por uma população essencialmente eurocêntrica. A utilização da técnica do Blackface atingiu toda a comunidade europeia, de forma a ridicularizar e desumanizar o negro. Envoltos nessa questão, vislumbramos que as mensagens sugeridas com a representação exagerada e caricata do negro tiveram grande influência no pensamento europeu e o levou até o momento da instauração do apartheid, em 1950. Desse modo, percebemos o quanto a construção dos sentidos de um texto envolve sistemas de valores sócio-históricos. Apartir do conceito de dialogismo, notamos que, quando alguém diz “ele é negro”, não está apenas fazendo uma afirmação, uma vez que, se estiver dizendo isso do ponto de vista característico como significação de uma cor de pele, estará opondo- se a discursos que tratam a mesma expressão como forma de discriminação e como manifestação de racismo. Dessa forma, temos o blackface como o período histórico que nos leva a entender o motivo pelo qual criou-se a prática teatral de pintar os rostos dos atores brancos com carvão de cortiça representando personagens negros de uma forma caricata e exagerada. A caracterização do racismo, através das personagens do teatro, dialogava com a sua materialização social apoiado pela população em que estava inserida. Dentro dessa concepção dialógica da linguagem, podemos encontrar o conceito de intertextualidade. Esta noção se torna essencial para a análise proposta, pois há uma relação intertextual entre a personagem Ivonete e o movimento Blackface. A respeito deste conceito, Fiorin (2003, p. 30) expõe que: “a intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”. Barros (1999) a esse respeito, diz que a intertextualidade é a dimensão primeira de que o texto deriva. Além disso, revela a autora, o dialogismo comporta um aspecto a ser considerado que é o diálogo entre textos, que mantém um diálogo em que várias vozes, advinda de lugares diversos, cruzam-se, opõem-se, completam-se, por vezes se polemizam. Tendo em vista que a paródia é um efeito de intertextualidade e que ela se encontra em nosso objeto de análise, pretendemos trabalhar com essa noção. A construção e a recepção da paródia dependem do conhecimento prévio de suas referências e toda retomada de sentido deixa uma marca, seja ela verbal ou não-verbal, de forma ou de conteúdo. Na paródia, essa marca intertextual fica bastante visível e evidente. O discurso se converte em uma corrente de diversas vozes. Nesse sentido, segundo
  • 131. Arte Comentada Capítulo 10 131 Fávero (2003, p. 60) a polifonia é marca fundamental da paródia, pois ela: “a faz absorver um texto para depois repeli-lo, recriando-o num modelo próprio (...)”. Para a autora, a linguagem torna-se dupla na paródia, sendo impossível a junção das vozes presentes. Falar de paródia é também falar de humor, sendo este um elemento-chave do referido conceito. Sobre o assunto, Lauriti, (1990, p. 234 apud Fávero 2003, p. 60) revela que: “Ela (a paródia) não se reduz a uma mera repetição do texto primitivo, mas soa como um eco deformado e as palavras do Outro se revestem de algo novo, tornam-se bivocais (grifo nosso)”. Bakhtin (1970 apud Fávero, 2003) concebe que, na paródia, um único discurso pode revelar duas orientações interpretativas, duas vozes. A esse respeito, o estudioso russo expõe que na paródia “o discurso se converte em palco de luta entre duas vozes (BAKHTIN, 1970, p. 252 apud FAVERO, 2003, p. 53)”, não sendo possível fundir essas vozes, já que elas se colocam de modos antagônicos. Ao explicar a paródia, Fávero (2003) faz um contraponto com a paráfrase e mostra que esta é um texto que procura tornar mais claro e objetivo aquilo que se disse em outro texto. Portanto, é sempre a reescritura de um conteúdo já existente, uma espécie de ‘tradução’ dentro da própria língua. O autor da paráfrase deve demonstrar que entendeu claramente a ideia do texto e expressar o conteúdo com fidelidade. Nesse sentido, a paráfrase: É a reafirmação em palavras diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita. Uma paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia de uma obra como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do original em intenção. (SANT’ANNA, 2002, p 17). Ao observarmos a paródia, vemos que ela não tem a obrigação de fidelidade em seguir o sentido do texto que a paráfrase tem, pelo contrário, é esperada a subversão do sentido em textos parodiados. Sobre esse assunto, Sant’anna (2002) revela que a paráfrase e a paródia se entrelaçam na intertextualidade: “Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças” (SANT’ANNA, 2002, p. 28). Nesse sentido, o estudioso revela que a paródia é uma utilização negativa do texto original, distanciando-se de seu sentido primeiro, sendo um contra-estilo dele. Já a paráfrase, estaria mais próxima do texto original, sendo considerada pró-estilo. Para o referido autor, a paródia coloca as coisas fora de seu lugar, deixando visível o ambíguo, o duplo figurando na construção dos sentidos; ela funciona como um quadro invertido ou uma lente que aumenta e exagera os detalhes. 3 | (RE) SIGNIFICAÇÕES NA/DA HISTÓRIA: A RETOMADA DO BLACKFACE PARA A PRODUÇÃO DE HUMOR O corpus de análise proposto para pensarmos a questão do Blackface na atualidadeconsisteemcenasdocotidianodeumamulhernegra,empregadadoméstica,
  • 132. Arte Comentada Capítulo 10 132 pertencente à classe social baixa e moradora de favela. A seguir, apresentamos o nosso objeto de estudo, a fim de realizarmos as discussões propostas para este artigo. Nas imagens ao lado, vemos a primeira representação de Ivonete na série 220 volts lançada em 2014 e a outra imagem evidencia as modificações que tal personagem sofreu ao longo do tempo, já em 2016. Por elas, fica claro que a primeira usou a mesma técnica do Blackface: pintar uma pessoa branca de preto, evidenciar os lábios vermelhos, a palma da mão é branca e o cabelo caricatura o estilo afro. Como o intuito era a produção de humor, Ivonete foi ridicularizada, exagerada em suas características, o que nos remete à técnica do Blackface. Já na segunda imagem, vislumbramos as modificações atuais: a cor da pele não é tão negra, a cor dos lábios não foi tão exagerada, o que evidencia que a caracterização da personagem busca fugir da representação pitoresca e negativa do Blackface. O próprio ator reconheceu, em um comentário postado em redes sociais, que preferiu modificar a personagem para desvincular sua imagem do Blackface3 . Com essa retratação, percebemos que o objetivo inicial não era ridicularizar o negro, tampouco fazer remissão ao movimento racista. No entanto, como vimos a partir do ensinamos de Bakhtin, todo texto é dialógico; nesse sentido, o discurso racista torna-se intrínseco ao falante, que não percebe o preconceito criado com sua personagem. Figura2. As caracterizações de Ivonete ao longo da série 220 volts A caracterização de Ivonete é textual, produz sentidos historicamente marcados e mostra claramente as ideias do Blackface sendo retomadas, mesmo que de forma não-intencional. Nesse sentido, é inevitável que a construção da referida personagem deixe marcas dialógicas, isto é, não funciona isoladamente, tendo a necessidade de se relacionar com outros textos inscritos na história para significar. É por esse motivo 3 Quando o comediante Paulo Gustavo postou em sua conta no Facebook uma foto da personagem Ivonete, ele foi duramente criticado por usar a técnica do blackface, ao se pintar para representar o ne- gro. Na época, ele se defendeu dizendo que seu programa 220 Volts, transmitido pelo canal GNT, não ri da personagem, mas de quem a discrimina. O ator, porém, decidiu rever suas declarações e concluiu que não iria mais fazer o blackface: “Nesses últimos dias li, ouvi, pensei e entendi que há uma longa dis- cussão sobre o uso de blackface muito anterior e muito maior do que eu”, disse. Ele ainda apresentou a nova versão de Ivonete. Disponível em: http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/paulo-gustavo-se- -desculpa-e-muda-visual-de-ivonete-de-220-volts-1.1327152
  • 133. Arte Comentada Capítulo 10 133 que, ao vislumbramos a caracterização de Ivonete, fizemos remissão à prática teatral cristalizada historicamente na memória social por meio da técnica do Blackface. Além disso, temos também a materialização de discursos racistas, os quais permitiam que tais práticas fossem realizadas. A figura da personagem em análise está inserida em um contexto marcado por ideias racistas e separatistas, as quais sempre destinam ao negro a posição de inferior e escravizado. Não há como analisá-la de forma isolada de seu entorno, emoldurada, apenas levando em conta que ela foi criada para a produção de humor. A história que é convocada com esta personagem reclama interpretações. Para compreender a noção de história funcionando na construção imagética da personagem Ivonete, buscamos respaldo em Nora (1993), o qual propõe o conceito de lugares de memória. Os lugares de memória são (re)construções históricas baseadas em documentos, fragmentos, imagens, discursos, enfim, lugares onde possamos encontrar a memória de um momento histórico. Seguindo a concepção desse historiador francês, não há memória, o que temos são tentativas de reviver o passado, de ritualizá-lo; um espaço onde possamos edificar lugares que possam instalar as lembranças dos fatos, sem que eles caiam no esquecimento: “Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora” (NORA, 1993, p.12). Desse modo, não há a possibilidade de reconstruir uma história total assim como também não podemos reconstruir uma memória global. O que é possível, segundo o autor, é a construção dos lugares de memória, isto é, a reconstrução dos fatos históricos. Para isso, é preciso: “[...] criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais” (IDEM, p. 13). Nesse sentido, para que as memórias existam, é preciso que haja lugares para fixá-las e sejam lembradas por uma dada coletividade, ou seja, lugares onde sejam ancoradas as memórias coletivas. A nosso ver, esse lugar de memória que Ivonete evoca está ancorado no Blackface e no Apertheid, os quais retornam juntos com a criação deste quadro do programa 220 volts. Após analisarmos o texto não-verbal, passamos ao texto verbal, o qual traz reflexões interessantes sobre o assunto. A fala a seguir trata de Ivonete, em sua laje, conjeturando sobre a possibilidade de ir a Nova Iorque: Gente, cêis não sabem da maior! Tô juntando uma grana agora, arrumei um extra, umas roupas pra lavar, que eu tô com uma meta agora de juntar uma grana e ir lá pro “states”. Me jogar lá pros Estados Unidos, lá pra Nova Iorque, imagina, gente! Eu ficaria até mais branca naquele lugar! Eu ia adorar! Você imagina eu chegar lá com esse meu gingado, aquela gringalhada inteira ficar que nem mosca varejeira em volta de mim. Eu já ia chegar lá assim, ó! Neste momento da cena, inicia-se uma trilha sonora ao fundo; a música é de carnaval e Ivonete começa a dançar sensualmente, fazendo remissão ao ritmo brasileiro. Em seguida, o cenário muda e ela aparece em uma laje em Nova Iorque. A música brasileira cessa e a personagem profere os dizeres: “Gente, mas aqui em Nova Iorque não é assim não, tá?! Aqui em Nova Iorque é assim ó!”. Logo após, ela
  • 134. Arte Comentada Capítulo 10 134 canta uma música em um inglês, marcando a cultura americana por meio da escolha da canção. Nesse ato, é visível que Ivonete não domina a língua inglesa, uma vez que ela começa a embromar a letra da música. De repente, o cenário volta para a laje na casa da Ivonete: Se bem que eu tava pensando aqui, gente, que não vai dá pra mim ir pra Nova Iorque não. Sabe por quê? Porque o que eu tô ganhano aqui eu vou conseguir juntar essa passagi, quer ver, tamo aqui quase em novembro, novembro, dezembro ... Eu vou conseguir juntar essa passagi em abril de dois mil e trinta. Com o que eu tô ganhano aqui, seria em abril de dois mil e trinta. Eu não vou mais pra Nova Iorque não! Ah, é melhor ficar aqui mermo também. É melhor ficar aqui e não ficar sonhando muito alto não porque aqui eu encontro a coisa mais maravilhosa desse mundo que é o que? Sabe o que é a coisa mais maravilhosa desse mundo pra mim? É o homem brasileiro! Da espécie brasileira! Da fauna brasileira! Aqui em casa é mais conhecido como “meu nego”, meu chamego”, “meu dengo”, “meu tesão”, “minha coisa mais louca” e eu me embolo toda neles, ó! Fico louca com eles! Vou ficar aqui, não vou pra Nova Iorque não! (Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=-tRDxP0BPt4> Acesso em 15/10/2016) Neste vídeo, a personagem Ivonete diz estar capitalizando um dinheiro extra, conseguido através de roupas que lavou, com a meta de ir para os Estados Unidos. Ela se coloca imaginariamente no “país dos gringos”, onde poderia mostrar todo o charme e rebolado brasileiro. No entanto, ela reconhece que, por mais dinheiro que acumulasse, não seria o suficiente para realizar tal viagem. Ela ironiza o fato de que conseguiria juntar o dinheiro somente no ano de 2030, tendo em vista seus ganhos. Ao final de sua fala, percebendo a impossibilidade de realizar seu sonho, a personagem diz se contentar com o homem brasileiro. Algumas de suas falas, como quando ela revela que está buscando dinheiro extra com o trabalho de lavar roupas, mostram a dificuldade que o negro economicamente desfavorecido tem de viajar e conhecer o exterior, não sendo algo de seu cotidiano. O final da fala da personagem, em que ela se refere ao homem brasileiro, mostra uma espécie de prêmio de consolação, já que ela não pode realizar o sonho de conhecer o exterior, devendo contentar-se com o homem brasileiro. A nosso ver, o discurso de Ivonete retoma representações negativas da mulher negra, relacionado-a ao trabalho físico, ao sexo e à dança sensual; em outras palavras, a mulher negra é vista como alguém em que se pode explorar o corpo. O negro é representado nesta cena com uma caricatura pejorativa, sobretudo quando a personagem diz: “...até ficaria mais branca naquele lugar!”, ao se referir aos EUA. Tal enunciado evidencia o efeito racista sobre a personagem, transformando o branco em um ideal a qual todo negro se vê submetido socialmente. Com a cena em análise, temos a real situação de uma empregada doméstica negra sendo parodiada e ridicularizada com o objetivo de produzir humor. Passamos para a segunda cena selecionada para este trabalho. Nela, a personagem está em sua casa: Agora não vai demorar uma semana eu vou pedir minhas contas na casa daquela mulher. Eu não vou trabalhar mais não porque eu tô de saco cheio de ficar trabalhando na casa dos outros e não ser valorizada. Porque essas patroas não
  • 135. Arte Comentada Capítulo 10 135 dão valor pra gente não, não dão mermo. Só botam a gente pra trabalhar, só sabe d´s esporro. Dá umas roupa que não cabe mais nela, elas não dão. Entendeu? Dá uma roupa de marca, aí é que elas não dão mermo. Ah, eu hein! Tô cansada! Tô afim de ficar aturando a família dos outro não! A gente atura a nossa família por causa da coisa do carma. Aí a gente atura! Entendeu? Que aqui em casa ta tudo acoplado aqui, ó! A gente fomo botano uns puxadinho atrás do outro aqui e tem gente aqui desde os ancestrais da gente aqui. Se a gente for pegar e ir batendo nas portas, tem gente desde o macaco aqui comigo. Entendeu? Agora, na casa dos outros eu não sou obrigada! Não sou obrigada mermo! Eu, hein! A gente fica no meio daquele fogo cruzado lá e eles ficam achando que, porque a gente é empregada, a gente é retardado. A gente não é retardada não, minha filha! A gente entende tudo que vocês falam! A gente fica sonsa! A gente fica sonsa, quieta, mas a gente sabe! A gente sabe que o filho da senhora é ruim, a gente sabe que a filha da senhora é sonsa, a gente sabe o que eles fazem, que eles envolvem a gente na merda. A gente sabe! Mas a gente fica quieta por quê? Pra não dar problema! Por quê? Porque a gente precisa do dinheiro. Entendeu? Porque se a gente largar o emprego a gente fica encalacrada. Não vou poder largar o emprego não, porque eu tô muito encalacrada. Vou ter que ficar na casa dessa mulher até conseguir pagar o negócio do banco. Brabo! To muito encalacrada mermo. Mas aquela menina é sonsa! Aquele povo lá é sonso! Todo mundo sonso! E eu fico sonsa junto! Sonsa com sonsa! (Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=16mfsnj4MRU> Acesso em 15/10/2016) Neste vídeo, Ivonete deixa claro que está indignada com sua situação financeira e também com as condições de trabalho a que está submetida. Ela realiza uma crítica à baixa valorização do seu serviço, diz estar cansada e quer parar de trabalhar. Contudo, ela logo reconhece que é um erro abandonar o emprego, uma vez que o salário, mesmo que pouco, é destinado aos custos de sua sobrevivência. Tais conclusões podem ser comprovadas com passagens do texto, falas como “pedir minhas contas”, “não ser valorizada”, “só sabe dar esporro”, “dá uma roupa de marca, aí é que elas não dão mesmo”, “a gente é retardo”, respectivamente representam: uma mulher que é empregada, desvalorizada, explorada, sem recompensa e taxada como irracional. Além disso, frases como “a gente fica sonsa, quieta, mas a gente sabe!” e “mas a gente fica quieta porquê? Pra não dar problema!” evidenciam que a empregada sabe o lugar social que ocupa e não interfere na vida do patrão, porque não é sua função. Por fim, quando ela diz “a gente fica encalacrada” evidencia que ela precisa sobreviver, pagar as contas e, por isso, aceita tais humilhações. Como ensinam Fiorin e Savioli (2004), um texto permite que possamos destacar múltiplas relações, relações essas necessárias para a produção de sentido, já que o texto não pode ser isolado de seu contexto histórico-social. Ademais, pontuam os autores, uma mesma frase pode ter sentidos distintos dependendo do contexto dentro do qual está inserida. É o que ocorre com a fala de Ivonete nesta cena. A partir do texto em análise, é possível relacionar o que ela profere verbalmente com as condições humilhantes, desvalorizadas, taxados como irracionais em que os negros estão submetidos há muito tempo. A fala de Ivonete não é uma simples retomada da vida de uma empregada negra (uma paráfrase) com suas dificuldades e lutas; há o humor sendo construído por meio das frases e da caracterização da personagem, o que nos leva a pensar em paródia.
  • 136. Arte Comentada Capítulo 10 136 Neste sentido, temos a retomada das condições sociais em que o negro está inserido com o intuito de ridicularizá-lo, atingindo um efeito de paródia. A representação do negro pobre e explorado se dá através das marcas verbais — a fala de Ivonete — e não-verbais, representados pelo cenário e pela caracterização da personagem. O ambiente em que ela aparece é precário, marcado pela pobreza e pela falta de organização. Seu discurso é marcado pela exploração trabalhista de quem se coloca como uma vítima da sociedade e por sua necessidade financeira, incluindo a ausência de recursos para a educação dos seus filhos. A caracterização do Paulo Gustavo para incorporar a personagem também é explorada, retratando o negro como uma figura cômica e, muitas vezes, ridícula aos olhos de quem assiste. Tendo em vista que o ator usa do humor para fazer suas personagens, é provável que as características racistas estejam camufladas no cômico, pois se nos faz rir, então não é um problema, como se pelo humor, tudo fosse permitido. Como bem explicam Fiorin e Savioli (2004), todo texto tem um caráter histórico: é produzido por alguém, em um lugar, em certo tempo e revela ideias e concepções de um grupo social numa determinada época. A tal concepção de texto, convocamos o conceito de intertexto, uma vez que todo texto retoma dizeres já produzidos por um sujeito num dado tempo/espaço, sendo essa característica intrínseca a qualquer produção textual. Sobre, isso os autores revelam que todo texto é constituído pelo discurso/texto do outro. Nesse sentido, é impossível não relacionar as falas de Ivonete à representação negativa do negro: pobre, explorado sexualmente e financeiramente, sem voz ativa na sociedade, nem direito de sonhar. A intertextualidade se dá, no âmbito verbal, de forma não-marcada, implícita em que tais representações aparecem camufladas na alegria, na atitude e na mulher empoderada que Ivonete quer nos fazer acreditar que ela é, em um primeiro momento. No entanto, ao voltarmos nosso olhar para as falas dela, foi possível notarmos claramente um discurso preconceituoso se fazendo presente. Tais discursos, por não estarem explicitamente marcados no texto, colocam-se como naturais e normais. Estamos diante de diferentes vozes que se colocam no interior do discurso, de forma não explícita, mas que deixam brechas para observarmos o dialogismo que perpassa esta produção. Em relação ao plano não-verbal, analisamos que a retomada do blackface encontra-se bem marcada quando do lançamento da personagem em 2014: pintar uma pessoa branca de negra, evidenciar os lábios vermelhos, a palma da mão ser branca e o cabelo afro, retomam marcadamente o movimento. Ao observar tais marcas, nos questionamos se representar a raça negra desta forma, caricaturada, explorada em vários campos, não seria um retrocesso em relação às conquistas dos negros. Retomando os ensinamentos de Fávero (2003) e Sant’anna (2002) apresentados acima, percebemos que temos os dois fenômenos apontados pelos autores: a paráfrase e a paródia. Segundo Sant’anna (2002), na paródia vemos o ambíguo, o duplo figurando na construção dos sentidos. Ela funciona como um quadro invertido ou uma lente que aumenta e exagera os detalhes. A nosso ver, foi o que aconteceu
  • 137. Arte Comentada Capítulo 10 137 com a personagem em análise, uma vez que as marcas verbais e imagéticas (frases, gestos, atitudes, etc.) apresentadas nos mostram um diálogo entre o sério, representado pela mulher negra, que sofre preconceitos, é desvalorizada, e o cômico, quando Ivonete brinca com a condição social em que se encontra. Essa recuperação intertextual acaba por ridicularizar a mulher negra. Nesse momento, vemos o intertexto funcionando na construção dos sentidos; no entanto, ele retorna de forma subvertida, daí a comicidade, um processo contra-estilização. A paráfrase, por sua vez, pode ser notada na caracterização inicial da personagem de Paulo Gustavo: ao mostrar uma negra caricaturada e com fortes traços do Blackface, produziu sentidos muito parecidos com a representação que se fazia nos teatros americanos e europeus a partir de 1830. Nesse sentido, os deslocamentos do texto original (o homem branco representando o negro nos teatros) não provocaram mudanças, ocorrendo, portanto, um processo de pró-estilização, uma reescritura de um conteúdo já existente, isto é, uma paráfrase, como bem ensinam Sant’anna (2002) e Fávero (2003). Além do apresentado, estamos diante do conceito de derrisão. Realizando pesquisas em autores que retratam o tema, vimos que o termo tem origem no século XIII e provém do latim derisio, que remete ao sentido de zombaria, desprezo que traz divertimento a partir da humilhação de alguém. De acordo com Baronas (2005), esse conceito, na época clássica, era visto como um antigo recurso enunciativo, uma técnica de oratória definida pelos retóricos clássicos como tropos zombeteiros, cuja finalidade se pautava na ação de inferiorizar o adversário por meio do riso gerado no público. Em outras palavras, a zombaria era usada para desqualificar um oponente. Pela derrisão, ridiculariza-se o adversário por meio do humor e jogos de palavras usadas, esquivando-se de ter que se responsabilizar pelo dito: Todo o perigo e a força dessas fórmulas está no fato de poder divertir até mesmo aqueles que as condenam: por meio do prazer assim provocado, o autor do jogo de palavras ou da caricatura injuriosa consegue estabelecer uma cumplicidade forçada com o seu auditório, em detrimento da pessoa visada (BONNAFOUS, 2003, p. 42). É como se fosse uma violência verbal permitida e compactuada, já que pelo humor é admissível ofender. Isso não seria possível se esses discursos fossem proferidos de maneira direta ao sujeito atacado. A derrisão foi tema da Revista francesa Hermès publicada em 2001 a qual tinha como título Dérision – Contestation. Tal número esteve sob a coordenação de Arnaud Mercier. Nele, o autor francês pontua que na sociedade em que vivemos, os sujeitos são obrigados a respeitar muitos códigos de comportamentos e regras sociais. A ofensa e a agressividade, por exemplo, não são socialmente aceitáveis ou são vistas com maus olhos. A forma socialmente aceitável de se fazer críticas, ofender e agredir alguém pode ser feita por meio do recurso da derrisão, já que não há punição para a crítica feita por meio do humor. Muitas vezes, o humor baseia-se no preconceito com negros, homossexuais,
  • 138. Arte Comentada Capítulo 10 138 loiras, mulheres, obesos, baixinhos, dentre outros. Com a revolução dos movimentos sociais, como o feminismo, na década de 1960, assim como outros movimentos sociais — negros, homossexuais, minorias étnicas, dentre outros — houve um forte denuncia às formas diversas de opressão e discriminação. Tais movimentos, de acordo com Hall (1997), foram muito importantes para a humanidade, uma vez que eles lutavam em busca de identidade social, o que trouxe, como consequência, o protesto contra discursos discriminatórios de qualquer natureza.Aliado a isso, temos a chegada recente da ideia do politicamente correto. A partir deste conceito, grupos minoritários buscam derrubar mitos e tabus preconceituosos no intuito de obter mais respeito e dignidade. O politicamente correto prega a abolição de qualquer forma de discriminação. Nesse sentido, tal concepção defende que, se continuarmos construindo o humor baseados em preconceitos, estaremos disseminando ideias que maculam a imagem dos grupos minoritários. CONCLUSÃO A construção de uma personagem negra empoderada, cheia de atitude, alegre e “independente” que Paulo Gustavo buscou criar, esbarrou no fato de que o humor precisa retomar preconceitos, representações racistas e assuntos tão frágeis à negritude. Foi por esse motivo que o humorista precisou reformular Ivonete. Assim como a imagem do negro vem mudando ao passar dos últimos anos, também mudou a personagem Ivonete, que, depois da manifestação de seu público, precisou se adequar à construção de uma negra menos caricata e mais próxima da realidade. Tendo em vista todos os aspectos já abordados nesse artigo, vemos que a mudança de postura e da caracterização da personagem ora analisada mostram que as lutas em torno dos direitos individuais e coletivos do negro começam a vigorar em nossa sociedade. Quanto à intertextualidade, pudemos notar a presença da paródia, quando o humorista brincou com assuntos tabus para o negro (desvalorização, preconceitos raciais, etc.) e a paráfrase, no fato de ele ter retomado, na caracterização de Ivonete, os elementos do Blackface. Desse modo, as cenas mostradas constroem sentidos em uma relação dialógica com a situação do negro ao longo da história, evidenciando que um texto nunca deve ser visto como isolado, mas correlacionado com outros textos/ discursos. REFERÊNCIAS BARONAS, Roberto Leiser. Derrisão: um caso de heterogeneidade dissimulada. In: Polifonia, Cuiabá: EDUFMT, nº10, p.99-111, 2005 BARROS, D.L.P. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. BARROS, D.L.P. &
  • 139. Arte Comentada Capítulo 10 139 FIORIN, J.L. (Orgs.). São Paulo: Edusp, 1999. BONNAFOUS, S. Sobre o bom uso da derrisão em Jean-Marie Le Pen. In: GREGOLIN, M. R. V. Mídia e discurso: a cultura do espetáculo. São Carlos, SP: Claraluz Editora, 2003 BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. FAVERO, L. L. Paródia e Dialogismo. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. BARROS, D. L. P. & FIORIN, J. L. (Orgs.). 2 ed. São Paulo: Edusp, (2003) FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. BARROS, D.L.P. & FIORIN, J.L. (Orgs.). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2003 FIORIN, J.L e SAVIOLI, F.P. Lições de texto: leitura e redação. 7ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 2004 HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997 NORA P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC- SP. N° 10,  p. 12. 1993. SANT‘ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Ática, 2002. SANTOS, J. R. O que é racismo, 12 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.
  • 140. Arte Comentada Capítulo 11 140 CAPÍTULO 11 DA LEMBRANÇA AO SONHO: ANÁLISE FÍLMICA DE “A DANÇA DA REALIDADE”, DE ALEJANDRO JODOROWSKY Ana Carolina Ribeiro Universidade Estadual de Londrina Depto de Música e Teatro- CECA Londrina – PR RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar as imagens de um trecho do filme “A Dança da Realidade”, recentemente produzido por Alejandro Jodorowsky. Nesta obra o cineasta chileno revisita a infância e a partir de suas lembranças constitui uma narrativa que se distingue pela dicotomia entre o real e o imaginário. A partir da metodologia de análise fílmica proposta por Jacques Aumont e Michel Marie e com base nos conceitos de “imagem- sonho” e “imagem-lembrança” apresentados na teoria de Gilles Deleuze, pretende-se observar como o cineasta explora as memórias de sua infância através de uma linguagem que transborda a realidade, fazendo prevalecer estética do sonho na contemporaneidade. PALAVRAS-CHAVE: imagem-sonho, imagem- lembrança, Alejandro Jodorowsky. INTRODUÇÃO Entre as transformações decorrentes do século XIX e XX surgiu o cinema, um fenômeno da imagem em movimento que tão logo se estabeleceu como linguagem. Foi neste mesmo momento que o “sonho” também passou a ser um tema amplamente explorado a partir das teorias de Sigmund Freud e através do Primeiro Manifesto Surrealista na Arte, escrito por André Breton. O primeiro argumento completo para um filme surrealista foi escrito ainda na década de 1920, pelo poeta e teórico surrealista Antonin Artaud. Nele, incita à construção de uma narrativa fragmentada e sem linearidade, condição surpreendente ao espectador acostumado com o encadeamento lógico dos filmes clássicos (ARTAUD, 2011). Desdeentãojásepensavanaequivalência de um filme com a linguagem dos sonhos, considerado que a estrutura fílmica, mesmo quando propõe uma narrativa linear, compõe– se de fragmentos recortados da realidade que ao serem montados são resignificados. Segundo a psicanalista e pesquisadora Tania Rivera, a invenção do cinema sempre esteve relacionada ao sonho, pois apresenta uma “produção singular de imagens em movimento, de caráter alucinatório e, portanto, em geral, acompanhadas de uma forte impressão da realidade” (2011, p.19). Assim, independente da forma narrativa que o cineasta explora, o tempo fílmico e o espaço fílmico são, por natureza, descontínuos, tal qual é a natureza dos sonhos.
  • 141. Arte Comentada Capítulo 11 141 Entretanto, o cinema moderno reafirma a linguagem onírica quando rompe com a linearidade em que se delimita o cinema clássico. O teórico francês Gilles Deleuze, pautado pela teoria bergsoniana, explora este aspecto através dos conceitos da imagem-sonho e imagem-lembrança. De acordo com o teórico, a fusão do real com o imaginário atinge a indiscernibilidade correspondente a zona das lembranças, dos sonhos e do pensamento. (DELEUZE, 2007). As obras fílmicas de Jodorowsky instauram a condição de indiscernibilidade através da enorme profusão de imagens perturbadoras que rompem com a linearidade narrativa e nos transporta a uma atmosfera onírica. Carregadas de simbolismos, passa por universos poéticos, infernos e paraísos simultâneos que proporcionam distintas percepções ao espectador. Em “A Montanha Sagrada” (1973), por exemplo, a exploração do onírico é percebida tanto na composição das imagens impactantes e reveladoras, que transbordam a realidade, quanto na composição estrutural, na montagem, através da ausência de lógica da sequência de quadros. Em “A dança da realidade” (2013) Alejandro Jodorowsky, após vinte e três anos sem filmar reestreia com uma produção autorreferente, homônima ao livro publicado em 2001. A obra investe na linguagem onírica através de uma narrativa que parte da lembrança de experiências vividas na infância pelo diretor e que se confundem com o virtual, imaginado pelo mesmo. Segundo Jodorowsky, trata-se de uma “autobiografia imaginária” em que convida a realidade de suas memórias para “dançar” e transforma- as em poesia (2004). Para nortear esta pesquisa buscaremos amparo nas teorias de análise fílmica propostas por Jacques Aumont e Michel Marie. Segundo os teóricos, um filme é uma obra artística autônoma que permite engendrar um texto e constituir uma análise textual fundamentada nos significados que compõe a estrutura narrativa e os dados visuais e sonoros, produzindo um efeito particular no espectador. Ressaltam ainda aspectos relativos à história das formas, dos estilos e de sua evolução. (2004, p. 10). Assim, a partir do recorte de um fragmento da primeira parte do filme “A dança da realidade”, este artigo busca analisar o caráter onírico, sob a perspectiva do cinema moderno, através dos conceitos apresentados por Deleuze sobre a “imagem-sonho” e a “imagem-lembrança”. 1 | A IMAGEM-SONHO E A IMAGEM-LEMBRANÇA Para Deleuze o cinema é uma forma de pensamento e os grandes cineastas são pensadores, mas não pensam conceitualmente como os filósofos, pensam por imagens. Sendo assim, é possível fazer pensar através do cinema, pela profusão de suas imagens e de seus signos. Na classificação das imagens cinematográficas, Deleuze classifica o cinema em duas categorias: as imagens-movimento, caracterizado pelo cinema clássico e as imagens-tempo, que dizem respeito ao cinema moderno. O cinema clássico é um cinema de ação, porque revela um encadeamento
  • 142. Arte Comentada Capítulo 11 142 sensório-motor, um tempo cronológico, sequencial. Já no cinema moderno, há uma ruptura com o sistema sensório-motor, em que o tempo não está subordinado ao movimento, mas é o movimento que está subordinado ao tempo. Há apenas uma construção de situações óticas e sonoras puras. Aí residem os conceitos relacionados ao sonho e abstração. (DELEUZE, 2007). Ao elaborar sobre o assunto, Deleuze apresenta os termos “imagem- lembrança” e “imagem-sonho” e estabelece as consecutivas distinções. A lembrança necessariamente é virtual e se atualiza. Para ele “a imagem-lembrança não restitui o passado, ela somente representa o antigo presente que o passado “foi”“. (2007, p.70) No sonho as imagens da pessoa que dorme subsistem no estado difuso de nuvem de sensações atuais, ou seja, escapam à consciência. Além disso, no sonho a imagem virtual se atualiza em outra imagem que desempenha o papel de imagem virtual, esta, por sua vez, atualiza-se em uma terceira, ao infinito. Explica: “o sonho não é uma metáfora, mas uma série de anamorfoses que traçam um circuito muito grande.” (p.73). Deleuze acrescenta que as imagens-sonho ainda podem ser constituídas em sua produção técnica. Seja através de “fusões, superimpressões, desenquadramentos, movimentos complexos de câmera, efeitos especiais, manipulações de laboratório, chegando ao abstrato, tendendo à abstração”, ou através dos cortes bruscos, chamados montagem-cut, que oferecem a sensação de imagens que são interrompidas aleatoriamente, tal qual ocorre nos sonhos. (p.75). O teórico salienta que da mesma forma que a imagem-lembrança, a imagem- sonho,nacondiçãodeconstanteatualização,tambémnãoasseguraaindiscernibilidade do real e do imaginário (p.75). Para Deleuze, a indiscernibilidade, diz respeito à impossibilidade de separar o virtual do atual, sendo que a atualização não é o oposto do virtual, mas a maneira pela qual a virtualidade se singulariza. Contudo, busca-se, aqui, identificar em um fragmento de “A Dança da Realidade” alguns elementos que dialogam com tais conceitos. 2 | “A DANÇA DA REALIDADE”: DA LEMBRANÇA AO SONHO. Após duas décadas Jodorowsky volta a produzir para o cinema assinando a direção e o roteiro de “A Dança da Realidade” que estreou em 2013, na França. Sob um plano de fundo do Chile nos anos 1930, traz a história do pequeno Alejandrito, filho de Jaime, um stalinista ferrenho e bastante rígido com a família, e Sara, a mãe, que no filme só se comunica cantando, como se estivesse em uma ópera. O filme se estrutura em duas partes. A primeira parte, muito semelhante às primeiras páginas do livro homônimo, retrata as vivências do garoto Alejandrito diante de conflitos existenciais e sob a severidade do pai. A segunda parte, totalmente alegórica de acordo com o próprio cineasta, é protagonizada pela personagem Jaime. Sua cegueira política o faz perder a lucidez, abandonar a família e partir para uma jornada de purificação que o levará a se deparar com a verdade para enfim desconstruir
  • 143. Arte Comentada Capítulo 11 143 suas convicções. Como uma espécie de dejà-vu, muitos elementos retornam a cena e nos fazem lembrar outras produções de Jodorowsky. Sangue, pessoas multiladas, personagens místicos, circenses, o deserto, o sagrado, a peregrinação do pai e principalmente, as críticas aos diversos setores da sociedade: a religião, a política, ao exército, a família. Não há como não comparar a imagem da personagem do pai, na segunda parte do filme, com a personagem do ladrão na primeira parte de “A Montanha Sagrada”. Como se todos esses elementos que constituem a identidade da obra do cineasta também fizesse parte de seu repertório de lembranças, poderíamos concluir que as obras de Jodorowsky se atualizam em “A Dança da Realidade”. A compilação de lembranças que constituem o filme resulta em uma narrativa que escapa à linearidade e na dicotomia entre o real e o virtual,faz prevalecer à sensação desonho. A ruptura com o espaço-tempo sequencial é um desses elementosque justificam essa condição indiscernibilidade. Nos momentos em que Jodorowsky surge à cena junto ao garoto ocorre esta ruptura com o tempo cronológico. Pela perspectiva da estrutura narrativa ofuturo encontra-se com o presenteem um mesmo espaço- tempo, mas sob uma perspectiva do espectador, é o presente que se encontra com o passado. Jodorowsky surge para Alejandrito. como se pudéssemos com a bagagem adquiridadas experiências da vida, acalentar o espírito ingênuo que constitui a infância. (imagem 1). Imagem 1: frame de “A dança da realidade” 3 | ANÁLISE DE UM FRAGMENTO O fragmento escolhido para análise diz respeito à cena em que Jaime leva Alejandrito a barbearia para cortar os cabelos, longas madeixas que a mãe mantinha no filho por acreditar que ele era a reencarnação do avô. A sequência se inicia no momento em que o garoto se oferece para coçar as costas de um soldado multilado que aparece na porta da loja da família. Alejandrito
  • 144. Arte Comentada Capítulo 11 144 é surpreendido pela violenta repreensão do pai, que afugenta o soldado e questiona a hombridade do filho nas seguintes palavras: “Para que estava abraçando aquele nojento? Você gosta de homens? Com esse cabelo de menina, o que mais se poderia esperar de você? Com esse cabelo parece um veado!”. A mãe entoa: “Não lhe falte o respeito, Alejandro é sagrado”. O pai responde: “sagrado é o meu caralho”1 e pede para Sara contar o motivo pelo qual chama Alejandrito de pai e não filho. Sara relata a história de seu pai e em seguida inicia-se uma cena que ilustra a trágica morte de seu pai – um bailarino russo que morreu ao subir em um barril de álcool para acender uma lâmpada com uma tocha de fogo. Não suportando o peso, a tampa quebrou-se e ele caiu sobre o líquido inflamável. Na sequência de imagens, Sara olha para a câmera, em uma tomada em plano médio, como quem consegue visualizar algo que esta em sua memória. Em seguida, a montagem sugere a lembrança, com imagens em que predominam o tom azul. Na cena, o pai aparece nu, apenas com um coturno nos pés, dançando com uma tocha de fogo na mão, enquanto sobe os barris para acender a lâmpada. Posteriormente, a imagem da explosão mostra uma grande chama de fogo amarela sobre o fundo azul. Na sequência de imagens, Sara olha para a câmera, em uma tomada em plano médio, como quem consegue visualizar algo que esta em sua memória. Em seguida, a montagem sugere a lembrança através de imagens em que predominam o tom azul. Na cena, o pai aparece nu, apenas com um coturno nos pés, dançando com uma tocha de fogo na mão, enquanto sobe os barris para acender a lâmpada. Posteriormente, a imagem da explosão mostra uma grande chama de fogo amarela sobre o fundo azul. 1Trecho do diálogo entre personagens extraído do filme “A dança da realidade”.
  • 145. Arte Comentada Capítulo 11 145 Imagem 2: frames de um trecho de “A dança da realidade”. A narração de Sara, em off, não nos convence de que seu pai estava dançando quando foi morto pelo trágico acidente, tal como a cena sugere. Sara diz, em tom operístico, que o pai era “um belo bailarino russo que fugiu com sua mãe dos cossacos antissemitas, imigrando na Argentina onde cultivaram com muito trabalho um pequeno pedaço de terra”2 . Parece, portanto, que seu pai, quando ocorrido o acidente, já não era mais um bailarino, não estaria dançando, nem mesmo estaria nu. No livro homônimo ao filme, outra versão é apresentada sobre a morte do avô de Jodorowsky: Sara era órfã de pai. Jashe tinha se apaixonado por um bailarino russo não-judeu, um goi, de corpo bem formado e de cabeleira dourada. Quando estava grávida de oito meses, este avô subiu num barril cheio de álcool para acender uma lâmpada. A tampa quebrou e ele caiu no líquido inflamável que começou a arder. As histórias da família contam que ele saiu correndo pelo meio da rua envolto em chamas, dando saltos de dois metros de altura e que morreu dançando (2009, p.31). 2 Trecho extraído da fala da personagem Sara no filme “A dança da realidade”
  • 146. Arte Comentada Capítulo 11 146 De acordo com a transcrição acima, Sara não havia nem mesmo nascido quando tal acidente ocorrerá com seu pai, sendo, portanto, impossível lembrar-se do fato ao qual nem mesmo vivenciou. Assim como também o desfecho se difere da cena construída para o filme, em que o avô sai pelas ruas se debatendo entre as chamas pelo corpo. Também a predominância monocromática como opção estética para as imagens é um recurso técnico que opera para instituir a bifurcação entre o passado e o presente. Trata-se, portanto, de uma atualização de um acontecimento do passado a partir da imaginação de Sara. Jodorowsky recria a história de seu avô a partir de suas escolhas estéticas. Eis a imagem-lembrança. Após o relato de Sara, Jaime decide levar o filho à barbearia para cortar os cabelos. Ao sair da loja com o filho pelos braços, um anão fantasiado de zorro chicoteia um cifrão amarelo. Este personagem alegórico, conforme mencionado no livro, retrata uma das estratégias que o pai utilizava para dar visibilidade ao seu empreendimento.Ao fundo, figurantes transitam com máscaras neutras na face ocultando suas fisionomias. Amáscara é um elemento legitimamente teatral. Os figurantes mascarados reaparecem em diversas cenas no decorrer do filme e nos levam a compreender que assim como em um sonho ou na lembrança de algo temporalmente distante, não conseguimos reconstituir com precisão as fisionomias de algumas pessoas. Imagem 3- frame do filme “A dança da Realidade” Na barbearia, a cena se inicia com dois senhores cortando os fios de cabelo em primeiro plano. Na sequência esta imagem passa para um plano de fundo sem nitidez e, em primeiro plano, um senhor de descendência oriental sentado na cadeira ao lado recita um mantra em japonês. Em plano de fundo, o barbeiro deixa de cortar os cabelos e retira cuidadosamente a peruca com as mãos, mostrando-a ao garoto que chora ao ver. Posteriormente, em primeiro plano a peruca se desfaz nas mãos do barbeiro transformando-se em um pó dourado.
  • 147. Arte Comentada Capítulo 11 147 A cena procede como em um circuito de anamorfoses vivenciado durante um sonho. O cabelo torna-se peruca que por sua vez torna-se um pó dourado e desaparece da mão do barbeiro. A peruca aqui é um objeto altamente simbólico, pois representa o avô. A desmaterialização da peruca, portanto, desfaz esta representatividade. Por outro lado, a apresentação da peruca como artifício cênico rompe com o aspecto de verossimilhança da cena fílmica e nos aproxima do realismo. Para a personagem Alejandrito, a perda dos cabelos vem representar a perda da mãe, que no filme, o rejeita ao vê-lo de cabelo cortado. Jodorowsky explica: “eu chorava porque, ao perder os cachos dourados, perdia também o amor de minha mãe.” (2009, p.31). Na análise deste fragmento, observamos que um universo de metáforas destitui o encadeamento cronológico no espaço-tempo proposto pelo cinema clássico, surge então uma estética que se próxima do universo onírico. Imagem 4 – frames do filme “A dança da realidade”. CONSIDERAÇÕES FINAIS “A dança da realidade” trata-se de uma obra autorreferente, em que Jodorowsky revisita o passado a partir de sua memória afetiva. Na apresentação do trailler oficial de divulgação do filme, o cineasta afirma: “só temos memória, nunca realidade, o que se faz já não existe mais”. Nesta obra as memórias da infância do cineasta não surgem
  • 148. Arte Comentada Capítulo 11 148 na frustrada tentativa de reconstituição do real, mas apresenta-se em um estado de devir, através da atualização de lembranças que são apenas o ponto de partida para uma narrativa repleta de reflexões, personagens fantásticos e situações imaginárias que proporcionam um novo sentido a sua vida. Jodorowsky, que teve sua formação artística através do teatro, constitui em sua obra um hibridismo entre essas duas linguagens: teatro e cinema. A peruca, as máscaras neutras, as personagens fantásticas que surgem na obra mais parecem elementos pertencentes ao palco teatral do que ao cinema. Condição que vem reafirmar a estética do sonho como elemento predominante na obra, uma vez que a limitação espaço-temporal é um elemento inerente ao teatro quando consideramos que a narrativa teatral se constrói sob as delimitações de um palco cênico e do que o espectador é capaz de imaginar diante dele. Este artigo restringiu-se à análise de um pequeno fragmento do filme, entretanto, é válido ressaltar que a obra por completo poderia nos oferecer muitos outros subsídios para a análise a partir dos conceitos da imagem-lembrança e imagem-sonho, discutidos por Deleuze a partir do cinema moderno. REFERÊNCIAS ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 2011 AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Trad: Marcelo Félix. Lisboa: Armand Colin, 2004. 3ª ed. DANÇA da realidade, A. Direção e Roteiro: Alejandro Jodorowsky. Produção: Moisés Cosío, Xavier Guerrero Yamamoto, Alejandro Jodorowsky, Michel Seydoux. Chile: 2013 (130min) DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad: Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007. JODOROWSKY, Alejandro. A dança da realidade. Trad: Sueli Farah. São Paulo: Devir, 2009. MONTANHA sagrada, A. Direção: Alejandro Jodorowsky. Produção: Alejandro Jodorowsky, Allen Klein, Robert Taicher, Roberto Viskin. México, 1973. (113min) color. RIVERA, Tania. Cinema, imagem e psicanálise. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2011
  • 149. Arte Comentada Capítulo 12 149 CAPÍTULO 12 BREVES APONTAMENTOS SOBRE O ONÍRICO, OU UMA PRIMEIRA IMERSÃO NAS IMAGENS SEM LUZ Carlos de Azambuja Rodrigues Profº Associado III da Escola de Belas Artes da UFRJ Doutor em Comunicação e Cultura Grupo IMAGINATA - Linha de Imagem e Cultura Vice-Coordenador do Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais PPGAV - EBA/UFRJ (CAPES 6) RESUMO: Este texto reintroduz uma discussão indicada no final de um outro trabalho produzido sobre a questão da imagem apresentado neste mesmo evento quatro anos atrás. Naquela ocasião para além das Três Dimensões da Imagem do título (ver Anais do III ENEIMAGEM, 2011), identificamos também a existência de um outro campo diferenciado de estudo das imagens: o Onírico. O trabalho ora apresentado é uma primeira aproximação desta questão para além da relação dialógica sujeito/objeto; psicologia/ontologia; representação/referência. Nele procuramos examinar brevemente algumas das abordagens filosóficas, científicas e conceituais atualmente aceitas e oferecidas como forma de entendimento sobre o fenômeno dos sonhos. E caminhamos na direção daquilo a que elas convergem, cientes de que se trata de um levantamento ainda preliminar e que a penumbra de onde vêm ou nascem estas imagens permanecerá ainda misteriosa e oculta ao final deste trajeto, damos aqui, portanto, apenas pequenos passos no caminho que leva aos sentido das imagens em geral e das oníricas em particular. PALAVRAS-CHAVE: Imagem, Biofoton, Onirismo. ABSTRACT: This text reintroduces a discussion indicated at the end of another work produced on the image issue presented at this same event four years ago. At that time, beyond the Three Dimensions of the Image of the title (see Annals of III ENEIMAGEM, 2011), we also identified the existence of another differentiated field of study of images: Onirism. The work presented here is a first approximation of this question beyond the subject/object dialogic relation; psychology/ ontology; representation/reference. In it, we seek to briefly examine some of the philosophical, scientific, and conceptual approaches currently accepted and offered as a form of understanding about the phenomenon of dreams. And we walk towards what they converge, aware that this is a preliminary survey and that the penumbra from where these images come or are born will remain mysterious and hidden at the end of this path, we give here, therefore, only small steps in the way that leads to the sense of the images in general and the dreams in particular.
  • 150. Arte Comentada Capítulo 12 150 KEYWORDS: Image, Biofoton, Onirism. 1 | PRÓLOGO SOBRE UM RETORNO AOS SONHOS “Brilho errante noctívago, estranha luz, na cercania da terra... sempre se deixando fascinar pelo brilho do Sol” Heráclito Embora seja um fato e algo de existência indiscutível, o mundo das imagens oníricas foi durante um longo período negligenciado pelo pensamento ocidental desde o Iluminismo, ou mesmo já durante a idade média. Como já escrevi uma vez, “o Onirismo tem uma má fama” 1 , adquirida de certo como uma herança da reação do pensamento escolástico cristão contra o paganismo em geral, para o qual, em algumas culturas, os sonhos poderiam conter verdades ainda ocultas ou servir mesmo a premonições sobre importantes eventos por vir. Este estado de coisas perdurou na dita cultura “erudita” ocidental até o início do século XX quando então Sigmund Freud com seu “método” restaurou o campo do onírico como uma forma de conhecimento, e, pouco depois, Carl Jung reafirmou uma dimensão – num certo sentido – “ontológica” das imagens simbólicas, como formas atávicas não apenas a um indivíduo em particular mas comuns à toda a humanidade. Aqui então a importância dos sonhos ressurge se re-definindo como “desejo” ou como uma forma de “re-ligação” humana, num sentido talvez cósmico, com o mundo material à nossa volta. Assim, hoje, aquilo que atravessou todo o iluminismo quase como puro non- sense, mero devaneio de uma exata mente sempre consciente e racional, apenas durante o sono momentaneamente adormecida e colocada num estado livre de suas enormes responsabilidades, retornou no início do século passado, renovado e cheio de significados, para o palco de representações da vida humana e, novamente, como um protagonista da mais relevante importância para nós. 2 | ARTEMIDORO, OS SONHOS SIMPLES E OS SONHOS ONÍRICOS Afirma-se aqui que se trata de um “re-torno” porque, embora possa se considerar que o reconhecimento da importância do estudo dos sonhos foi reintroduzido no século passado a partir de Freud, não é, entretanto, correto supor que bem antes disso já não se tivesse produzido qualquer tentativa de um estudo sistemático dos sonhos. De fato, já no século II surgiu a “Oneirocrítica – juízos e interpretações dos sonhos”, um conjunto de cinco livros escritos por Artemidoro de Daldis, intérprete de sonhos, que ofereceram na época uma abordagem sistemática dos sonhos e alguns exemplos de
  • 151. Arte Comentada Capítulo 12 151 suas interpretações segundo o autor que, de modo semelhante ao de um terapeuta contemporâneo, justamente dedicava-se ao ofício de intérprete de sonhos. Logo no início de seu livro primeiro, Artemidoro propõe uma interessante distinção entre os “Sonhos Simples” e os “Sonhos Oníricos”. Sendo os “Sonhos Simples” causados por estados circunstanciais e pontuais que vulgarmente atormentam nosso corpo como fome, sede ou uma má digestão, e até mesmo o nosso espírito como eventuais alegrias, preocupações ou tristezas; enquanto os outros, que ele denomina de “Oníricos”, seriam repletos de significados mais profundos, com simbolismos transcendentes que tanto poderiam remeter às mensagens que os homens buscam enviar aos deuses sobre algo que lhes aflige, quanto recebê-las destes mesmos deuses na forma de antevisões, premonições de eventos por vir. Como se sabe, nas culturas antigas assim como na greco-romana, os deuses de fato existiam e frequentemente davam pistas sobre suas vontades ou manifestavam seus humores. Não havia, portanto, nada de estranho em pedir algo a algum deus durante um sonho ou então receber uma mensagem dele por este mesmo canal de comunicação. Curioso é observar-se aqui como aquilo que está afligindo um indivíduo durante o seu estado de vigília, pode também surgir em um sonho como um “pedido aos deuses” de uma forma bastante similar ao que afirma Freud acontecer nesta mesma “plataforma onírica”, já que para a psicanálise durante o sonho se manifestam ideias inconscientes que clamam intimamente por uma solução. Por outro lado, é também igualmente interessante observar como que, as mensagens “enviadas pelos deuses” através dos sonhos de Artemidoro guardam grande similitude com a ideia dos sonhos arquetípicos da psicologia analítica Junguiana. Certamente, isso indica que, no que diz respeito ao estudo dos sonhos, não se pode afirmar qualquer ponto de partida, uma vez que o início das artes de sua interpretação se perde na poeira dos tempos e a sua origem se dá no advento da própria humanidade. Nada também nos garante, entretanto, que haja um porto seguro ao final do trajeto a ser percorrido, já que as atuais pesquisas contemporâneas a respeito dos sonhos, como era de se esperar, se mantém inconclusivas sobre a natureza do onírico. Atualmente, para a maioria dos pesquisadores, o que se mantém ainda como dado é o fato – um tanto óbvio – de que quando adentramos o mundo dos sonhos parecemos dialogar “com nós mesmos” – nossa mente e nosso corpo – e que esta experiência potencialmente nos leva para um “outro lugar”, talvez um além. 3 | O CÉREBRO SONHADOR Assim como acontece com os distúrbios e as doenças mentais, a principal forma de abordagem contemporânea do onírico é fisiológica/psiquiátrica: os pesquisadores da neurofisiologia buscam associar as etapas relacionadas com os sonhos com as regiões do cérebro que estão ativas naquele exato momento em que estamos sonhando e para
  • 152. Arte Comentada Capítulo 12 152 alguns é só esta atividade cerebral que de fato é determinante. O estudo fisiológico do sono não chega a ser algo inédito ou mesmo tão recente assim, pois as pesquisas sobre o sono desenvolvidas por Nathaniel Kleitman que levaram à descoberta da etapa R.E.M. (Rapid Eyes Movement) no sono – que corresponde ao momento em que efetivamente estaríamos sonhando enquanto dormimos – data de 1953. Estudos recentes, entretanto, realizados no Evolutionary Neurodehavior Laboratory da Boston University, dirigido pelo Professor Patrick McNamara, indicam a ocorrência de sonhos também em etapas do sono que não são as R.E.M., mas as N.R.E.M. (No Rapid Eyes Movement). Nas etapas R.E.M. os sonhos tenderiam a ser mais agressivos e desagradáveis, enquanto nas N.R.E.M. estariam associados a experiências mais agradáveis. Assim, ainda segundo esta pesquisa, pessoas deprimidas ou depressivas tenderiam a ter mais sonhos do tipo R.E.M do que indivíduos emocionalmente mais equilibrados. Este primado da abordagem fisiológica/psiquiátrica legou-nos todo um conjunto e drogas para o tratamento de nossos distúrbios emocionais e psiquiátricos cuja mais famosa talvez tenha sido mesmo o PROZAC, criado pela companhia farmacêutica americana Eli Lilly e lançado no mercado em 1970, como um messias químico contra a depressão. No entanto, apesar do acréscimo significativo que estas diversas pesquisas trouxeram na compreensão do fenômeno sono e, consequentemente, dos mecanismos neurológicos associados à ocorrência dos sonhos, talvez pouco tenham acrescentado sobre a sua finalidade para os homens: a maioria das explicações fornecidas por diversos pesquisadores transita entre algo que seria uma reles simulação, útil como “forma de treinamento” e aprendizado para situações de risco; à uma forma de fixação das memórias do dia e elaboração emocional de suas experiências, passando ainda pela negação pura e simples de uma maior importância do ato de sonhar. Ou seja, se hoje conhecemos melhor como nosso corpo se relaciona com o ato de sonhar, por outro lado o sentido original de sonharmos continua sendo um mistério insolúvel, enquanto sua função básica – aquilo que para que “servem” – continua oferecendo uma miríade de possíveis explicações e aplicações, tantos quanto são os pensamentos que as motivem. Há espaço inclusive para a afirmação de que os sonhos são “nada mais do que interpretações fantasiosas, ad hoc de impulsos neurais aleatórios ondulando-se a partir do tronco cerebral, o motor do R.E.M.” [TM]2 , como afirmou J. Allan Hobson, psiquiatra de Harvard. Este mesmo Hobson, talvez ávido também por causar polêmica com as diversas sociedades psicanalíticas, afirmou também que “sonhar é um evento automático pré-programado no cérebro e não uma resposta a um estímulo exógeno (experiências diárias) ou endógeno (visceral)”[TM]3 . Esta concepção mais do que meramente fisiológica é fisicista (materialista) e recusa qualquer significado oculto: “Eu discordo de Freud porque creio que os sonhos não são nem obscuros ou contém algo expurgado, mas são transparentes e não-editados. Eles contém um claro significado, indisfarçável, impulsos altamente conflituosos que são dignos da atenção pelo sonhador (ou qualquer intérprete). Minha posição encontra eco na noção de Jung de que os sonhos têm um significado transparente…” [TM]
  • 153. Arte Comentada Capítulo 12 153 (Hobson, 1977) Pode-se considerar que esta atitude, de um modo um tanto ingênuo, negligencia o Homo Symbolicum, o ser que produz constantemente significado, bem estabelecido por Ernest Cassirer e faz ainda uma leitura um tanto enviesada e superficial das ideias de Carl Jung: o fato de para Jung os sonhos apresentarem, de vez em quando, símbolos arquetípicos bem definidos (mas não “literais”) não os tornam necessariamente “transparentes”, afinal há ainda um “inconsciente”, mesmo que “coletivo”, em Jung. Talvez haja nesta afirmação de Hobsom sobre Jung, o desejo oculto de reduzir os “arquétipos junguianos” um tipo de “meme” ou vê-los como sendo determinados geneticamente nos moldes definidos por cientistas e pesquisadores neo-darwinistas como Richard Dawkins e Daniel C. Dennett. De fato, a concepção de Hobson citada acima sobre o que são os sonhos (“…interpretações fantasiosas, ad hoc de impulsos neurais aleatórios ondulando-se a partir do tronco cerebral…”) encontra paralelo na negação da existência da consciência humana formulada por Daniel C. Dennett em seu Tipos de Mentes (Dennett, 1977), para quem não existe “consciência” mas apenas um conjunto de impulsos, percebidos como ideias, presentes no cérebro num dado momento.4 O que deve ser ressaltado, entretanto, é que o que ambos fazem é recusar a complexidade ao fenômeno estudado, utilizando o artifício da redução de sua importância ou pela simples negação de sua existência. Não deixa de ser espantoso que esta atitude intelectual deseje ser aceita e entendida justamente como sendo “científica”. Assim,nasuaposturamaisextremada,adofisicismoneo-darwinista,aabordagem meramente neuro-fisiológica como que despotencializa o sonho, reduzindo-o a mera consequência de um evento cerebral. E aqui parece então retornar, renovada, aquela mesma atitude do iluminismo, não mais como “pré-psicanalítica”, mas talvez agora, pretensamente como “pós-psicanalítica”. Felizmente, entretanto, há outras pesquisas em andamento que seguem outros caminhos. 4 | IMAGENS SEM LUZ? Em Agosto de 2004 uma física brasileira – Gabriela Barreto Lemos, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizando um pós-doutorado na Academia Austríaca de Ciências – publicou na revista científica Nature o resultado de um interessantíssimo experimento “fotográfico”: Gabriela e sua equipe, baseando- se num conceito da Física Quântica chamado “entrelaçamento ou emaranhamento quântico”, separou dois feixes de fótons antes entrelaçados, fazendo um deles incidir sobre um objeto e o outro diretamente sobre uma placa fotográfica.5 O resultado foi surpreendente, pois o feixe de fótons que incidiu sobre a placa formou a imagem do objeto sobre o qual o outro feixe incidiu, i.e., uma imagem se formou sobre a placa fotossensível sem que as partículas (fótons) que a sensibilizaram tenham entrado em contato com o objeto desenhado. A “comunicação” de estado entre os dois feixes
  • 154. Arte Comentada Capítulo 12 154 antes entrelaçados, mas agora separados, permitiu um deles remotamente comportar- se como o outro e formar a imagem do objeto que seu “antigo” par de entrelaçamento estava a percorrer e desenhar. Obviamente que aqui há “luz”: está presente na formação de uma imagem um fluxo de fótons, mesmo que numa faixa de frequência não visível ao olho humano (os feixes tinham comprimentos de onda acima e baixo do vermelho e do azul). O impacto da “fotografia quântica” (como vem sendo chamado desde então o resultado desta experiência) sobre uma “Teoria da Imagem” no que diz respeito à relação objeto- imagem ou imagem-referente não pode ser considerado relevante, uma vez que o objeto iluminado pelo feixe “referente” é o mesmo que é formado no sensor fotográfico pelo outro feixe, que podemos chamar de feixe “impressor”. Portanto, ocorre referência a um objeto concreto que é representado na formação da imagem.Agrande estranheza neste fenômeno consiste na falta de contato direto entre o feixe que ilumina o objeto e aquele outro que incide sobre a superfície fotossensível onde é desenhada a sua imagem. Porém esta estranha circunstância talvez possa, pensada em conjunto com um outro fenômeno já conhecido, o Biofóton, jogar alguma luz sobre as imagens do sonho, as imagens “sem luz”. O Biofóton é uma emissão celular de luz (radiação eletro-magnética) coerente (como o laser) de baixíssima intensidade na faixa óptica (visível) do espectro e também no infravermelho e ultravioleta, que todas a celulas vivas apresentam, e foi descoberta pelo cientista soviético Alexander G. Gurvich em 1923, que os chamou de “raios mitogenéticos”, já que ele estava estudando o processo de diferenciação no desenvolvimento celular. Depois de décadas de experimentos inconclusivos e consequente descrença da comunidade científica coube ao biofísico Fritz-Albert Popp na Universidade de Marburg provar a sua existência nos anos 1970. Popp demonstrou que a emissão de radiação eletromagnética se dava entre os 200nm e 800nm, englobando a faixa visível aos nossos olhos que vai dos 400nm (vermelho) aos 700nm (azul). Ele propôs então que os biofótons seriam emitidos periodicamente e seriam uma emissão de luz coerente como o laser, o que permitiria supor ser possível uma comunicação via uma radiação eletromagnética – portanto, na velocidade da luz – entre tecidos e organismos vivos, para além dos processos químicos e elétricos já estabelecidos.6 Mais recentemente, num artigo conjunto de 2010 os pesquisadores: Majid Rahnama, Peyman Sardar, Vahid Salari, do Departamento de Física Shahid Bahonar da Universidade de Kerman, no Irã; o canadense Jack A.Tuszynski, do Departamento de Física da Universidade de Alberta no Canadá; István Bókkon, da Escola Doctoral de Farmacêutica e Ciências Farmacológicas da Universidade Semmelweis da Hungria e Michal Cifra, Departamento do Campo Eletro-magnético, Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Técnológica Tcheca, de Praga propuseram que os biofótons desempenham importante papel interagindo nas atividade neurais em adição às atividades elétricas e químicas.7
  • 155. Arte Comentada Capítulo 12 155 Assim, seria possível especular sobre um possível papel dos biofótons nas atividades cerebrais durante o sono R.E.M., quando os sonhos acontecem, ou ainda se eles desempenham algum tipo de ação sobre a retina na formação das imagens mentais que produzimos sem a presença da excitação direta de luz. Poderíamos indagar ainda se haveria algum tipo de interação entre os biofótons e a luz com que o mundo exterior banha nossas retinas durante a vigília: Será que os sonhos podem estar relacionados – através dos raios de luz internos e externos, “emaranhados” à grandes distâncias e no tempo ínfimo dos eventos quânticos – com antevisões e descobertas, e assim levar e nos trazer aquelas mensagens dos deuses de que nos falava Artemidoro? Longe de querer dar respostas à estas especulações e a outras possivelmente bem melhor fundamentadas, a única conclusão permitida no momento nos trás de volta ao nosso ponto inicial: nos sonhos estamos frente a um evento íntimo de comunicação, causado pelo atrito entre o mundo exterior e nosso mundo pessoal, um constructo, ao que tudo indica, iluminado pela nossa própria luz interior. NOTAS 1 - Ver o meu texto, As Três Dimensões das Imagens em: http://www.uel. br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Carlos%20de%20Azambuja%20 Rodrigues.pdf 2 - Ver a cita sobre J. Allan Hobson no texto online de Patrick McNamara: http://aeon.co/magazine/psychology/was-freud-right-about-dreams-all-along/ 3 - idem. 4 - Seus críticos apelidaram este ser que se move segundo seus estados mentais “aleatórios” de o “zumbi’ de Dennet. 5 - Ver matéria de Ciência Hoje On Line: http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2014/09/diga-2018xis2019-gato- de-schroedinger 6 - Um breve resumo deste histórico pode ser obtido em: http://www.amebrasil.org.br/2011/node/250 7 - Texto completo na Cornel University Library on line: http://arxiv.org/abs/1012.3371
  • 156. Arte Comentada Capítulo 12 156 REFERÊNCIAS ARTEMIDORO, Daldianus. Orneirocritica: Sobre a interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. AZAMBUJA RODRIGUES, Carlos de. As Três Dimensões das Imagens. in IIIº ENEIMAGEM. Londrina: UEL, 2011. CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. Introdução a uma Filosofia da Cultura Humana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DENNETT, Daniel D. Tipos de Mentes, Rumo a auma compreensão da Consciência. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. 1997. DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Lisboa: Gradiva Publicações Ltda.,1999. HOBSON, J. Allan. The Dreaming Brain. New York: Basic Books, 1988 Referências (Impressas e Webgrafia) CIÊNCIAHOJE. “Acho que vi um gatinho..”. Ciência Hoje, Volume 318, pág.64, Outubro de 2014 McNAMARA, Patrick. How Sex rules our dreams. Aeon On line: Aeon Media Ltd., 2014 RAHNAMA, Majid et alli. Emission of Mitochondrial Biophotons and their Effect on Electrical Activity of Membrane via Microtubule. Journal of Integrative Neuroscience, Vol. 10, No. 1, pages 65-88, 2011.
  • 157. Arte Comentada Capítulo 13 157 CAPÍTULO 13 IMAGENS SENDO IMAGENS: REFLEXÕES DE UM CAMPO DE LUTA, RESISTÊNCIA E PODER Patrícia Quitero Rosenzweig Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais, PPGACV Goiânia – Goiás Rosa Maria Berardo Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais, PPGACV Goiânia – Goiás RESUMO:Eporquenãosê-lasapenasimagens? Esse é o ponto central que envolve esse estudo: localizar a imagem na contemporaneidade. Este artigo ambiciona convidar à reflexão sobre a visualidade, objeto central dos estudos visuais a partir de pontos de intersecção entre imagem, estudos culturais, cultura da mídia e poder social, a deriva do formalismo histórico da arte, no sentido de compreender as variadas posições do sujeito que emerge através dessas relações visuais. Através de uma narrativa videográfica publicada no canal brasileiro oficial “Disney Princesa Brasil” no Facebook, é proposta uma análise de complexidade pós- linguísticafundamentada em Evans; Hall (1999), Guash (2006) e Mitchell (2009) em ‘Instituição’, ‘Aparatos’, ‘Corpos’ (incluindo a representação e recepção do espectador) e questões estéticas de ‘Figuralidade’ da imagem. PALAVRAS-CHAVE:Estudos Visuais; Estudos Culturais; Cultura da Mídia; Disneyzação. ABSTRACT: And why not just be images?This is the central point that this study implies: to locate the image in contemporaneity. This article aims to invite reflection on visuality, the central object of visual studies based on points of intersection between image, cultural studies, media culture and social power, the derivation of the historical formalism of art, in the sense of understanding the varied positions of the subject that emerges through these visual relationships. Through a videographic narrative published on the official Brazilian channel “Disney Princesa Brasil” on Facebook, an analysis of post-linguistic complexity based on Evans is proposed; (1999), Guash (2006) and Mitchell (2009) in the ‘Institution’, ‘Apparatus’, ‘Bodies’ (including the representation and reception of the viewer) and aesthetic questions of ‘Figurality’ of the image. KEYWORDS: Visual Studies; Cultural Studies; Media Culture; Disneyzation 1 | A IMAGEM NÃO NASCEU TEXTO Ser imagem, se assumir e se fazer significar como tal em um mundo, linguístico por essência, talvez seja o maior desafio da visualidade na contemporaneidade. “O mundo
  • 158. Arte Comentada Capítulo 13 158 das imagens é um enorme campo de batalha subterrâneo. Por cima vemos a beleza, que é muito importante, mas, na verdade, a beleza não é nada repousante”, bradou o professor filósofo e historiador da arte, Didi-Huberman, em entrevista concedida ao jornalista Daniel Augusto do Estadão Jornal Digital (2017).  Antiga como o homo sapiens, a imagem nasceu arte. Seu uso como artefato remonta a Era Paleolítica. Embora tenhamos tomado consciência da imagem como representação apenas há alguns séculos, a imagem, com seu poder de visualidade nos conta a história da vida e nos faz imaginar o quão rico era as relações humanas num dado tempo histórico. É certo que nos primórdios, esta linguagem imagética tinha a mesma natureza e significação mítica e colaborava para a assimilação do mundo, à mesma medida em que se limitavam aos homens deste mundo. Se pensarmos o signo visual como antecessor do signo linguístico, a gênese destas linguagens artísticas deveria repousar sobre a experimentação com materiais, ou seja, da ação das mãos se originavam as imagens. Estudar a imagem e entender como são construídas as representações de forma multidimensional, não linear e não expressa, necessariamente, por signos linguísticos ou para além dos formalismos históricos da arte, tem sido o desafio de alguns pesquisadores dos Estudos visuais, Cultura Visual ou Estudos da Cultura visual. Um campo de estudo que se fez emergente em um momento crucial da visualidade contemporânea, ainda nos idos do século XX. Naquele momento acreditava-se que, a possibilidade de uma abordagem generalizante dos Estudos Visuais pudesse promover um entendimento simplista da análise cultural, implicando em uma perda radical de criticidade. Assim, desde sua origem tem sido sabatinado por especialistas em arte contemporânea, críticos e teóricos da visualidade, como ocorreu na publicação da edição nº 77 de 1976, da Revista October - uma das mais conceituadas publicações científicas do MIT Press, fundada em 1976. Na edição nº 77 Rosalind Krauss e Hal Foster publicaram o resultado de um questionário denominado “visual culture questionnaire” que foi enviado a vários críticos, pesquisadores e artistas com o objetivo de entender melhor o conceito de cultura visual. Naquele momento, os estudos das visualidades já davam sinais de preocupações aos pensadores quanto à possível perda da criticidade tradicionalmente mantida pela Historia da Arte. Até então formatado sob o juris antropológico, o estudo da Cultura Visual parecia desejar relegar o “estado de arte” a outras práticas de discurso e significação que se aproximavam do estágio do capital globalizado a partir de uma concepção do visual como “imagem desencarnada” e, neste contexto desprivilegiando o estatuto da arte. Monteiro(2008), a partir da publicação Cultura visual: definições, escopo, debates, aborda essa preocupação sobre a localização dos estudos visuais em relação à arte reticentes da abordagem interdisciplinar dos estudos destinados às visualidades, com uma preocupação, de que, em certa medida, fosse tratada indiscriminadamente dentro de uma meta-disciplina de cultura visual, nivelando a diferença entre arte e imagem
  • 159. Arte Comentada Capítulo 13 159 Midiatizada. Ainda, no final dos idos de 1980, os Estudos Visuais roubam a atenção do cenário acadêmico anglo-saxão pelo seu caráter de inclusão interdisciplinar que envolvia: a história da arte, a antropologia, a linguística, os estudos do cinema e a literatura comparada e encontram refugio na teoria pós-estruturalista e nos Estudos Culturais. (Dikovtskaya apud Monteiro, 2008: p.131) Ainda segundo Monteiro (2008) “alguns esforços pioneiros na área dos como o artigo Ways of Seeing (1972), de John Berger; o artigo Vision and Painting: The Logic of Gaze (1983), escrito por Norman Bryson; e o texto History of Bourgeois Perception (1983), de Donald Lowe, além de Iconology (1996) de Mitchell” foram imprescindíveis ao que Evans e Hall (1999) denominaram de dupla troca: da arte para a cultura visual e da história para a cultura. Porém o pleno reconhecimento do campo de estudo visual se fortaleceu na virada do século, a partir do Jornal of Visual Culture - periódico criado 2002 e publicado pela SAGE. Monteiro (2008) afirma que o assunto seguiu em ampla discussão a partir de fóruns, protagonizados por Nicholas Mirzoeff seguido da reedição do The Visual Culture Reader e da American Studies Association, além de uma nova serie livros sobre o tema publicado pela University of Rochester que, segundo Martin (2003), balizaram a localização do estudo da Cultura Visual. Envolto às polêmicas e reminiscências, W. J. T Mitchell (2003) é enfático ao responder as críticas sobre o chamado “campo emergente” questionando essa relação de (in) dependência da Arte ou da Estética, uma vez que a nova virtude deste novo campo é nominar uma problemática ou invés de se relegar a um objeto teórico. A partir de uma visão peculiar localiza precisamente a abordagem dos Estudos Visuais como um amplo campo de estudo e coloca a Cultura Visual como objeto questionando como e por que as “praticas de ver” transformam o nosso olhar. O teórico centra ainda suas analises no viés da critica da construção do visual em artes, mídia e imagens do cotidiano, e os estabelece para além das belas artes e com enfoque na formação social do campo visual. Ao ser questionado sobre a necessária associação dos Estudos Visuais com os Estudos Culturais, dada a importância social da Cultura como fértil campo de contestação e conflito de práticas de representação erguidas a partir da formação de grupos sociais, Mitchell (1995) deixa claro que a caracterização do estudo é social, para além das questões politicas ou acadêmicas. “A cultura visual é a construção visual do social (um lugar de experimentação dos mecanismos sociais da diferenciação), não unicamente a construção social do visual (imagens e experiências)”. Mitchell (2003) declara abertamente as referências, contribuições e influências dos Estudos Culturais e da mesma forma são exaltadas as contribuições da Psicanálise, Semiótica, da Linguística, da Estética, da literatura, da Antropologia, da História da Arte e do estudo do Cinema.
  • 160. Arte Comentada Capítulo 13 160 2 | ENTRE E, A PARTIR DAS VIRADAS. A Pictorial Turn - originariamente escrita em inglês, proposta por Mitchell (1994) formulada com ênfase nas práticas sociais e nas relações como prática de significados. Surge da relação ou da ‘não mais relação’ entre visibilidade e discurso que, de certo modo privilegiava o modelo linguístico de representação, sob o pressuposto de que todos os signos ou significações imagéticas estão necessariamente ligados a um domínio pré-linguístico previamente estruturado. Para Pegoraro (2011) a virada situa, exatamente, à metade do caminho entre o que Thomas Kuhn chamou de um ‘paradigma’ e uma ‘anomalia’ uma vez que aparece frequentemente como um debate fundamental nas ciências humanas. Visão contraposta por Dias e Fernandez (2014, P. 103), que afirmam que a virada imagética englobam mudanças de caráter filosófico e se aproveita de códigos do sistema não linguístico, não partindo da língua como paradigma do significado. Paradigmas são modelos, representações e interpretações de mundo, universalmente reconhecidas, que fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade científica. As anomalias, por sua, vez são discordâncias entre previsão e resultados, não atribuíveis a falhas do experimentador (KUHN, 1991, p.13) Para Guasch (2006) em Los Estudios Visuales um estado de la cuestión, a ‘virada de Mitchell’ complementa a fala de Jonathan Crary (1990) no que tange o conceito de visão e as novas relações entre a imagem (objeto observado) e o sujeito (espectador, para além da condição de observador). A autora, que embora porte uma visão mais conservadora da virada imagética estreitamente ligada à História da Arte, acrescenta que a virada imagética representa um descobrimento pós-linguístico e pós-semiótico da imagem: uma completa interação entre a visualidade, as instituições o discurso, o corpo e a figuralidade. E, sobretudo, está convencida de que as visadas, as práticas de observação e o prazer visual do espectador podem ser alternativos às formas tradicionais de leitura unidas proporcionando deciframentos, decodificações e interpretações. Mitchell (2009, p.12) para além, abre polêmica referenciando os meios como ‘mistos’ e de representação ‘heterogênea’ não existindo artes puramente visuais ou verbais corroborando com Guash (2006) sobre as questões pós-linguísticas relacionando as imagens a um complexo jogo entre: visualidades, os aparatos, as instituições, os discursos, os corpos, expandindo a função de figuralidade mencionada pela autora à atividade do espectador, suas práticas observação, vigilância e prazer. Mais pragmático, o professor Nicholas Mirzoeff (2002) adota múltiplos pontos de vista para entender as causas e efeitos da cultura na contemporaneidade, fomentada pela convergência, Tecnologia digital e multimídia. Para o autor, vivemos um período de Intervisualidade, na qual há exibição e interação simultânea de uma variedade de modos de visualidade caracterizando-a, assim, como “transdisciplinar”. Mas para Anna Maria Guash (2003) a Cultura visual, demonstrava exacerbar o
  • 161. Arte Comentada Capítulo 13 161 trânsito tornando-se uma caixa de miscelâneas onde questões como: gênero, raça, identidade, sexualidade, pornografia, e ideologia convivem com questionamentos específicos de visualidades. A autora critica arduamente Mirzoeff no que tange à “transdisciplinaridade” da Cultura Visual, alegando que a liberdade espistemológica do estudo extrapolava o ferramental metodológico. Acredita-se que o caráter pós- estruturalista do estudo tenha levado a autora a uma preocupação de caráter didático na busca de uma sistemática investigativa de parâmetros rígidos que não se aplicava, ou não tinha tanto peso formal naquele ou em qualquer momento, uma vez que os estudos visuais tem, como propósito, questionar como e porque, as praticas de ver (visualidade e visibilidade) tem transformado o universo de compreensão simbólica. A cultura visual não é simplesmente uma história das imagens, é uma interação entre o signo visual, a tecnologia que possibilita e sustenta tal signo e o espectador (Mirzoeff, 2003, p.34). É uma abordagem para o estudo da vida na contemporaneidade do ponto de vista mais do consumidor do que do produtor. Por meio do estudo da Cultura visual é possível entender os sinais de resposta do consumidor da mídia visual. O autor (1999) aborda a dependência da cultura visual ao olhar do espectador, a partir da tendência moderna de visualização da existência e sua relação com a mesma, forma e interfaces com todas as disciplinas que lidam com visualidade. Knauss (2006) propõe cultura visual como produção social, por isso, o olhar do espectador é definido pelo autor como uma construção cultural que é estabelecida socialmente através da competência visual do mesmo.Assim, na visão de Monteiro (2008) parece interessante substituir o conceito de autonomia da arte pelo de intertextualidade a partir da percepção do valor estético como uma construção social. Substitui-se, assim, a história da arte pela história da imagem. 3 | REFLEXÕES DA IMAGEM MÍDIA Os meios de comunicação de massa se tornam cada vez mais agentes transmissões e disseminadores de valores. Eles configuram padrões estéticos e comportamentais, influenciam pessoas, alteram visões de mundo auxiliando-as no árduo trabalho de composição identitária, contribuindo, midiaticamente, para a produção e articulação de novas formas culturais. E nessa composição, onde são mapeadas questões de ordem econômica, política e social são validadas apropriações de ideias, fatos, todas referenciadas midiaticamente, em um espaço confortável, frouxo e pretensiosamente permissivo. Um espaço de diálogo, construção das relações de poder, interação, demandam adaptação e exige negociação. As imagens de mídia se manifestam através de ideias, ações, artefatos culturais. Como ocorre a construção das imagens/mídia em um processo histórico socialmente situado? É impossível entender e analisar culturalmente a imagem midiatizada sem considerar os embates sociais, as contradições, interesses, inquietações e temores fantasias,desejoseutopiasdeumasociedadequeseutilizademecanismossilenciosos:
  • 162. Arte Comentada Capítulo 13 162 capitalismo, alienação, consumo há tanto anunciada pela Cultura da Mídia que molda a vida diária, influenciando o modo como as pessoas pensam e se comportam, como se enxergam e enxergam os outros e como constroem sua identidade. Os Estudos Culturais recorrem a uma gama díspar de campos a fim de teorizar os efeitos de uma ampla variedade de formas de mídia/cultura/comunicações em nossas vidas e demonstram como essas produções servem de instrumento de dominação, e também oferecem recursos para a resistência e a mudança. A distinção entre cultura e comunicações é arbitrária e rígida, devendo ser desconstruída. Seja “cultura” como os produtos da cultura superior, quer como modos de vida, quer como contexto do comportamento humano, etc. Veremos que há uma intima ligação com a comunicação. Toda cultura para se tornar um produto social, portanto, serve como mediadora da comunicação e é por essa mediada, sendo, portanto, comunicacional por natureza. Assim, a comunicação é mediada pela cultura. É um modo pelo que a cultura é disseminada, realizada e efetivada. Não há comunicação sem cultura e não há cultura sem comunicação (Kellner, 2001). Assim, pela teoria culturalista é possível analisar questões de imagens mídia por um viés social, de poder e de conhecimento. Detectar mudanças estratégicas através da visualização e percepção de como são imbricadas e diversificadas em distintas eras históricas. Kellner (2001) ainda assume a condição material da Cultura da Mídia partir das premissas marxistas de Raymond Williams sobre materialismo cultural e suas formas de significação dentro dos meios e condições de produção ressaltando a importância de se analisar dentro do sistema de produção, de distribuição e consumo bem como a forma como são produzidos e recebidos. Uma abordagem materialista cultural ressalta a importância da economia política da cultura, do sistema que constrange ao que pode e ao que não pode ser produzido, que impõe limites e possibilidades para a produção cultural. Fala-se, portanto, de produção midiática, intimamente imbricada em relações de poder e serve para reproduzir interesses e forças sociais poderosas, promovendo a dominação e dando aos indivíduos força para resistência e luta. Por outro lado, esse materialismo focaliza os efeitos na imagem, no espetáculo. Para o materialismo cultural, os textos da mídia seduzem, fascinam, comovem, posicionam e influenciam seu público. Servem como um anestésico capaz de paralisar reduzindo-os a espectadores sem discernimento. O espetáculo visual faz parte da vida cotidiana. Para Debord (1991) as imagens decorrentes da relação capital/consumo funcionariam como uma espécie de conformação hipnótica, como se toda a tragédia do mundo contemporâneo residisse no fato de as coisas se tornarem imagens, afirmação veementemente criticada por Machado (2001, p. 19) que diz estarmos vivendo o quarto Iconoclasmo da história ocidental. Os produtos, provenientes das imagens que nos escolhem. “O espetáculo, nesse sentido transforma o mundo em imagens, em representação/ilusão daquilo que antes da revolução industrial fora vivido diretamente,
  • 163. Arte Comentada Capítulo 13 163 sem mediações” (Martins; Sérvio, 2106, p. 241). Entende-se, portanto, a eficácia e os efeitos materiais da cultura da mídia. Um dos objetivos dos Estudos Culturais e analisar de que modo determinados textos/imagens afetam seu público, e que espécie de efeito real os produtos da cultura da mídia exercem, quais os potenciais efeitos ‘contra hegemônicos’ e quais as possibilidades de resistência e lutas cabem neste contexto teórico. 4 | ANALISANDO O CORPUS O conhecimento do mundo, as experiências com a realidade dependem do que vemos e de como vinculamos cotidianamente com as representações visuais. Ao deslocar o fato das categorias artísticas tradicionais e disciplinas acadêmicas no estudo dos objetos (...) ao explorar conexões e contrastes entre as diversas formas de arte popular e das belas artes, ao incluir e discutir o impacto das imagens de cinema, de publicidade, de jogos de computador e historia em quadrinhos sobre crianças, adolescentes, jovens e adultos; ao ampliar os limites culturais e educativos que abrangem outro segmento ou grupos culturais, suas imagens e artefatos, ao enfatizar deliberadamente a relação arte e vida, ou seja, arte e imagem como parte do cotidiano, como parte de uma convivência diária com a nossa diversidade (Martins, 2012). Como mencionado por Evans; Hall (1999), Guash (2006) e Mitchell (2009), a complexidade pós-linguística que cerca a imagem na contemporaneidade, em seu complexo jogo de práticas, torna possível a sua significação. Assim, a análise desta narrativa audiovisual midiática será balizada pelos elementos: Instituições (identificação, visada social e relações de poder); Aparatos (mídias de produção e circulação imagética e vigilância); Corpos (representação e ação dos sujeitos, incluindo a atividade do espectador proposta de Mitchell (2009), como práticas, observação e prazer); Figuralidade (pelo viés estético e para além do registro visual – relacionado às significações) 4.1 Instituições Marca: Walt Disney Company. Produto: Franquia Princesas Disney - A franquia oficial de Princesas Disney foi criada em Janeiro de 2000 por Andy Mooney, então presidente de produtos da the Walt Disney Company com o objetivo de comercializar os produtos das personagens femininas que tem alta repercussão junto ao público infantil. Meio de Divulgação: Pagina oficial da franquia Disney Princesas Brasil no Facebook. Foi criada no ano de 2011, pela Walt Disney Company. Atualmente utiliza a tag #SouPrincesaSouReal em todas as publicações. Atualizada com até cinco postagens mensais, frequência considerada baixa nos ‘parâmetros Brasil’ em que as fanpages chegam a obter até três postagens diárias. Os posts chegam a ter 13
  • 164. Arte Comentada Capítulo 13 164 mil likes (curtidas). Na data de analise deste estudo, 19/07/ 2017, a página brasileira possuía 292.577 mil seguidores brasileiros. Quanto ao conteúdo das postagens, a sua maioria segue o contexto proposto de que todas as mulheres são princesas da vida real, e, portanto, buscam interação e cumplicidade a partir da identificação das imagens de princesas apresentadas ao perfil das meninas/adolescentes e, por consequência, suas mães/adultas fãs das princesas da Disney e seguidoras da página social. Os posts são essencialmente imagéticos formados por vídeos bem elaborados, com trilha sonora e outros com giffs ou imagens estáticas, utilizando cenas dos filmes e explorando a imagem das princesas. Todas as postagens são seguidas da #SouPrincesaSouReal 4.2 Aparatos A versão brasileira da narrativa videográfica: Sou Princesa, Sou Real - Sonhe alto, foi postado na fanPage do Facebook Disney Princesas Brasil, dia 5 de março de 2017, domingo, às 17h09 seguido do texto-legenda: Você pode ser o que quiser, só depende de você! Qual é o seu maior sonho? #SouPrincesaSouReal. A narrativa visual, atualmente1 com 187 mil visualizações, 2.270 reações (likes/curtidas) e 316 compartilhamentostrazumamensagemdeotimismoatodasascriançaseadolescentes brasileiras, mostrando em imagens o que é ser verdadeiramente uma princesa. A trilha sonora da musica “Hall ofFame” The Script, sofreu adaptações na letra e, no vídeo é entoada pela voz doce de uma jovem. 4.3 Corpos e Figuralidade Arepresentaçãoimagéticaocorreemtornodaideiacentral#SouPrincesaSouReal. Ser princesa é ser ativa, ter disposição, é ter opinião, ser ousada, ser brilhante, ser vencedora e participar do corredor da fama, mostrando o seu valor ao mundo. E traz uma mensagem final: “Sonhe alto. Sempre tem uma princesa que mostra que é possível”. A narrativa mescla cenas de corpos de meninas/adolescentes em ação. Envoltas às brincadeiras em grupos ou individuais, executando atividades físicas ao ar livre com cenas clássicas dos filmes de animação que mostram as princesas da Disney em ações semelhantes. Em todas as imagens da narrativa as crianças aparecem felizes e são mostradas de forma positiva. A montagem do vídeo “Sou Princesa, Sou Real – Sonhe alto” é cadenciada pela batida da trilha sonora que anuncia que ser princesa é “estar no corredor da fama”. A trilha, portanto, instiga a um lúdico menos melancólico e mais relacionado às relações de poder. As cenas (corte seco) são rápidas e encadeadas a partir da trilha sonora. Durante a narrativa, muitas princesas aparecem com identidade espelhada. São elas: Merida, Rapunzel, Mulan, Tiana, Ariel, Pocahontas, Bela, Jasmine, e Cinderela. 1
  • 165. Arte Comentada Capítulo 13 165 Segue, na sequência, a captura de alguns frames do vídeo que demostram a partir de gestuais e olhares algumas a força das imagens e quanto elas podem significar, quando justapostas a partir de um objetivo definido. É importante frisar que não se trata de uma análise fílmica clássica, com preocupações analíticas de linguagem fílmica (planos de câmera e efeitos) e sim possuem enfoque pós-linguístico, a partir das significações das imagens fundamentadas nos elementos ‘corpo e figuralidade’, aliadas às relações de poder, espetacularização e recepção. O vídeo inicia com a imagem de adolescente do gênero feminino em um ambiente externo (floresta) colocando um capacete de bicicleta na cabeça. Ela o faz a partir de um gesto simbólico, de coroação. Ela representa a princesa da contemporaneidade. Seu olhar fixo no horizonte demonstra segurança e determinação. A trilha sonora da música Hall off Fame - The Script acompanha uma sequência de imagens positivas que demonstram altruísmo.Asequência inicial acaba na ginasta que consegue finalizar seu movimento com perfeição e vencer a competição. No semblante, o sorriso da vitória. Figura 1: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook Na primeira sequência imagética que ocorre de forma espelhada com asimagens dos filmes de animação de princesas Disney, deixam claros os objetivos de aproximação da figuralidade da princesa à identidade de infantil. Pela montagem são, claramente, perceptíveis a intensão de mostrar a aproximação identitária das princesas, às crianças/ adolescentes reais. Nesta imagem, uma criança demonstra coragem ao escalar uma montanha. Na sequência, aparece espelhada a corajosa princesa Mérida, do filme Valente realizando o mesmo ato. Embora o plano da imagem esteja em outro ângulo é possível entender a associação proposta na junção das imagens. Figura 2: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook
  • 166. Arte Comentada Capítulo 13 166 O segundo espelhamento imagético ocorre a partir da clássica cena do filme Enrolados, onde Rapunzel, mostrando-se determinada, se lança sobre os seus vinte e um metros de cabelos dourados. Em fusão aparece uma ginasta infantil, também usando vestimentas cor púrpura (auxiliando, assim, visualmente a aproximação imagética). Ela demonstra a destreza nos movimentos. A imagem da menina passa ao espectador a mesma determinação de Rapunzel sobre uma barra paralela. Figura 3: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook O terceiro espelhamento imagético ocorre através do atletismo. Crianças correm em uma competição e vencem. A cena do pódio é reproduzida a partir do orgulho das crianças concentradas e segurando a medalha conquistada. O gesto é repetido na cena do filme da princesa chinesa, Mulan, na cena clássica de reconhecimento pela sua vitória. As cores das roupas da atleta central do vídeo e da audaciosa princesa Mulan se aproximam, auxiliando o espelhamento. É importante pontuar que, no filme a princesa precisa se disfarçar de homem para treinar com seus colegas e conquistar seu sonho. Figura 4: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook Oquartoespelhamentoimagéticodovídeoocorreemumacenanadaconvencional. Uma menina se diverte tocando bateria em um show de rock demonstrando, assim, suas habilidades musicais. A cena que acompanha é do filme A princesa e o sapo. Tiana é uma princesa batalhadora, com talento culinário e muita imaginação para driblar os problemas da vida. Ela solta a voz com muito alto astral. O fundo marrom presente em ambas as cenas auxiliam nesta aproximação.
  • 167. Arte Comentada Capítulo 13 167 Figura 5: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook O quinto espelhamento imagético ocorre a partir da cena do filme A Pequena Sereia. Ariel é uma sereia adolescente que se apaixona por um humano. Na imagem, uma criança faz mergulho no fundo do mar, como se tivesse a energia de Ariel e explora o fundo do mar como se fosse uma sereia. Interessante notar a sensibilidade da montagem a partir da composição daprincesaAriel olhando admirada a sua imagem espelhada. A aproximação da imagem se dá também, atravésdos raios de sol que incidem na água eas nuvens. Figura 6: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook O sexto espelhamento imagético ocorre a partir do Filme Pocahontas, uma princesa nada convencional que se apaixona por um capitão inglês. Indígena forte e sensível. Ela demonstra suas habilidades durante a trama. É importante notar que o espelhamento imagético ocorre pela ação (corrida), porém percebe-se uma clara aproximação da cor predominante vermelha nas duas cenas. A menina, assim, demonstra sua habilidade como corredora. Figura 7: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook OsétimoespelhamentoocorrenovamenteapartirdeumacenadofilmeEnrolados.
  • 168. Arte Comentada Capítulo 13 168 Suspensa pelos seus longos cabelos mostra toda a sua habilidade e sensibilidade de pintora. Sob a grande luminosidade da janela aparece timidamente e, de costas, talvez a única criança do gênero masculino protagonizando um espelhamento. Ele veste roupas mais sóbrias e aparenta concentração ao expressar sua arte. Esse espelhamento é o mais rápido do vídeo, aparentando ter sido realizado por formalidade, para não demonstrar discriminação de gênero no filme. A aproximação das cores no espelhamento também é nítida e ambos estão no mesmo ângulo fílmico auxiliando a aproximação imagética. Figura 8: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook O oitavo espelhamento do vídeo ocorre a partir de uma cena do filme Bella e a Fera. A jovem, por amor ao seu progenitor, decide se entregar a um estranho em troca da liberdade do seu pai. Na cena Bella aparece por traz de uma árvore e olha para a câmera. Ela sorri timidamente. A cor do fundo gelado é branca e azul. O mesmo acontece na imagem seguinte. Sob o mesmo plano (plano médio) e sob o mesmo olhar, a menina sorri timidamente para a câmera. Ela está em um ambiente escolar, mas com aproximações de tons de azul. Há a presença do vermelho nos óculos da menina. Figura 9: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook O nono espelhamento do vídeo ocorre com Jasmine, a princesa do Filme Aladdin. Apaixonada pelo plebeu Alladin, a princesa árabe é romântica e doce. Na imagem, ela voa no tapete mágico de Alladin e abre os braços, num gesto de liberdade. Na cena em espelhamento, a jovem de etnia oriental, dança com seus amigos e seus passos e braços abertos passam a sensação de que a menina flutua. Notem o olhar das duas representações, ambas parecem usufruir da liberdade de forma pura e verdadeira.
  • 169. Arte Comentada Capítulo 13 169 Figura 10: Frames capturados – Vídeo: Sou Princesa, Sou Real – Sonhe Alto. Fonte: Facebook E finalmente, o décimo e último espelhamento do vídeo ocorre a partir de outra cena de ginástica, agora ginastica artística. A menina em um movimento circular com a fita rodopia em seu eixo, da mesma forma como a princesa cinderela o faz. A imagem de espelhamento utilizada é do clássico filme Cinderela de 1950. A imagem mostra uma das cenas da princesa em rodopio. Embora a imagem escolhida no vídeo passe a ideia da representação, a cena, de transformação da jovem em princesa, com vestido azul envolta ao pó mágico da fada madrinha parece ser mais adequada. Ao fim das representações em espelhamento surge o castelo da Cinderela a princesa mais clássica da Disney como imagem final do vídeo. O castelo aparece ao fundo da imagem envolto por luzes. O plano se fecha, aproximando-o ao castelo. O background do vídeo abaixa e surge uma locução feminina em off: “Sonhe alto. Sempre tem uma princesa que mostra que é possível”. E o vídeo finaliza reforçando o conceito. “Sou princesa, sou real”. Pensando na corporalidade da imagem a partir da atividade do espectador,suas práticas de interação, observação e prazer, propostas por Mitchell (2009), nos fazem analisar a repercussão midiática e a receptividade do material. Como esse vídeo foi percebido e criticado pelo seu público? Mais de 187 mil pessoas já assistiram ao vídeo, somente através da plataforma Facebook. Importante pontuar que este vídeo está disponível, também, da plataforma Youtube, desde o dia 05 de março de 2017. Até o dia do acesso, 20 de julho de 2016, às 12h36, o vídeo no Youtube obteve 24.465 visualizações. Analisando a postagem, a partir dos dados publicados, mais de duas mil pessoas reagiram ao vídeo, aprovando-o, em sua maioria. Cinquenta e quarto pessoas, todas do gênero feminino interagiram com o vídeo através de comentários. Algumas pessoas comentaram o vídeo através de imagens (giffs animados, emoticons, corações); outras teceram algunscomentários elogiosos ao vídeo e à página. Aliás, o primeiro comentário do post tem caráter social e se formaliza como um pedido da espectadora a Walt Disney Company: fazer um filme com uma princesa careca, que lute contra o câncer. Muitas pessoas marcaram amigos, sugerindo o vídeo como conteúdo. Outras perguntaram sobre a música e os próprios usuários responderam. Algumas apenas desabafaram sobre o desejo de se tornar atleta profissional (jogadora de futebol,
  • 170. Arte Comentada Capítulo 13 170 ginasta, etc). Todos os comentários publicados, a princípio, parecem positivos, porém a página menciona que se reserva o direito de excluir qualquer mensagem ou material da página que considerarem “não relacionado ou inadequado, questionável ou contrário aos direitos de qualquer terceiro”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na sociedade contemporânea, ”a vitalidade e o poder da imagem são evidentes através da influência que elas exercem sobre a imaginação das pessoas” (Mitchell apud Tourinho; Martins, 2010, p. 41), sobretudo nas crianças. Assim, as imagens culturais da mídia, como o cinema, séries de TV e propagandas que invadem o cotidiano tem se tornado uma forma dominante de cultura popular. São as influências dessas mercadorias simbólicas, disseminadas pela indústria cultural, que modelam o lazer, as opiniões e os comportamentos, “fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade” (Kellner, 2001, p. 9). E em seus estudos sobre a “Disneyzação da Cultura Infantil”, Henry Giroux (1995) afirma que a cultura infantil é uma esfera onde o entendimento, a defesa de ideias políticas e o prazer se encontram pra construir concepções do que significa ser criança – uma combinação de posições de gênero, racial e de classes define a relação a uma diversidade de outros. Os filmes infantis fornecem um espaço visual onde se encontram fantasia, porém não são inocentes, estão numa esfera comercial de consumismo e mercantilização, não são diversões transparentes. Zipes (1995), um importante teórico dos contos de fada argumenta que os filmes da Disney celebram um tipo masculino de poder reproduzindo um tipo de estereótipo de gênero. Este, por sua vez, exerce um efeito adverso sobre as crianças, em contraste com o que os pais que pensam ser inofensivos. Assim, esse estudo demonstra-se urgente e de grande relevância para pesquisadores culturais, educadores e pais refletirem e discutirem criticamente a força e o poder da imagem midiatizada, não subestimando os meios audiovisuais e digitais e forma a perceber como a Cultura da Disneyzação, se insere no dia-a-dia das crianças e adolescentes, a partir das imagens fílmicas, aparentementeinofensivas. REFERÊNCIAS =CRARY, J. (1990). Techniques of the observer (on vision and modernity in the XIXth century). Cambridge, Massachusetts/Londres: MIT Press. DEBORD, G. A. (1997). Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: ContraPonto Editora. DIDI-HUBERMAN, G. (2017). O artista se tornou figura da liberdade. Entrevista concedida ao jornalista Daniel Augusto - Jornal Digital Estado de São Paulo <http://alias.estadao.com.br/noticias/ geral,o-artista-se-tornou-figura-da-liberdade-diz-filosofo-didi-huberman,70001793303>. Acesso 21/07/2017 as 16h43.
  • 171. Arte Comentada Capítulo 13 171 DIKOVITSKAYA, M. (2006).Visual Culture: the study of the visual after the cultural Turn. England: MIT Press. DISNEY PRINCESA BRASIL. Sou Princesa, Sou Real – Sonhe alto. <https://www.facebook.com/ DisneyPrincesaBrasil/videos/vb.152501234807479/1360196787371245/?type=2&theater. Acesso em 19/07/2017 às 13h07. EVANS, J; HALL, S. (1999). Visual culture. In: The visual culture reader. London: Sage Publications. FERNÁNDEZ, T; DIAS, B. (2014). Pedagogias Culturais nas Entre Viradas: Eventos Visuais & Artísticos. In: MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene (Orgs.) Pedagogias Culturais,p. 101-137. Santa Maria: Editora da UFSM. GIROUX, H. A.(1995). Disneyzação da Cultura Infantil. In: SILVA, Tomas Tadeu; MOREIRA, Antônio Flávio (Orgs.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais, p. 49-81 Petrópolis, RJ: Vozes. GUASCH, A. M. (2003). Los Estudios Visuales, Un Estado de laCuestión. In: Estudios Visuales, 1, p. 8-16. Murcia: CENDEAC ______________. (2006) Los Estudios Visuales: Arte e Investigación, 10. JAY, M. (2003) Relativismo cultural e a virada visual. (Tradução de Myrian Ávila). Aletria – Revista de Estudos de Literatura. Vol. 10. Olhar cabisbaixo: trajetos da visão no século XX. http://www. periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/2232 acesso em 02/07/2017. KELLNER, D. (2001) A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. São Paulo: EDUSC. KNAUSS, P. (2006) O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. Art cultura. Revista do Instituto de História da UFU, v. 8, nº 12, p.97-115. Uberlândia. KUHN, T. S. (1991). The road since structure. In Science and the quest for reality. p. 231-245. Palgrave Macmillan UK. MACHADO, A. (2001) O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos. MARTINS, R.; SÉRVIO, P. (2016) Reflexões sobre Cruzamentos entre Imagens, Mídia, Espetáculo e Educação a partir da Cultura Visual. In: Martins, R. e Tourinho, I. (Orgs.) Culturas das Imagens – desafios para a arte e para a educação, p. 245- 274.2a edição revista e ampliada. Santa Maria: Editora UFSM MARTINS, R.; TOURINHO, I. (2010) Culturas da infância e da imagem “aconteceu um fato grave, um incidente global” in Cultura visual e infância: quando as imagens invadem a escola, p. 37-45. Santa Maria: Editora UFSM. ________________________. (2012) Cultura das Imagens: desafios para a arte e para a educação. Santa Maria: Ed. UFSM. MIRZOEFF N. (1999). An introduction to visual culture. London: Routledge Ed Cast. Una introducción a la cultura visual. Barcelona: Paidós _________. (2002) The Visual Culture. Reader. 2 ed., p. 24-36. London and New York: Routledge.,
  • 172. Arte Comentada Capítulo 13 172 _________. (2003) Una introducción a la cultura visual. Trad. en castellano Paula Garcia Segura. Barcelona: Editorial Paidós. MITCHELL, W, J, T. (1994) The pictorial turn, in the Picture Theory: essays on verbal and e visual representation. Chicago p. 11-34. The University Chicago Press. ________________. (1995) Interdisciplinarity and Visual Culture. December, v. LXXVII, nº 4, p. 540-44. Art Bulletin. _________________. (2003) Mostrando el ver: una crítica de la cultura visual. En: Estudios Visuales. Murcia: Centro de Documentación y Estudios Avanzados de Arte Contemporaneo, p.17-40. Noviembre, _________________. (2009).Teoría de la imagen. Ediciones Akal: Madrid. MONTEIRO, R. H. (2014) Cultura Visual: definições, escopo, debates. Domínios da Imagem, v. 2, n. 2, p. 129-134. PEGORARO, E. (2011) Estudos Visuais: principais autores e questionamentos de um campo emergente. Domínios da Imagem, v. 5, n. 8, p. 41-52. ZIPES, J. (1995). Breaking the Disney spell. In E. Bell, L. Haas; L. Sells.From Mouse to mermaid: The politics of film, gender, and culturep. 21-42. Bloomington: Indiana University Press.
  • 173. Arte Comentada Capítulo 14 173 CAPÍTULO 14 QUESTÕES ESTÉTICAS DAS MÍDIAS: LATITUDES COMO EXEMPLO TRANSMIDIÁTICO Vanessa de Cassia Witzki Colatusso. Universidade Federal do Paraná – Doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento na linha de Comunicação Ambiental. RESUMO:Aestética,comofontedesignificação, abrange, não somente, mas também, reflexões sobre fenômenos artísticos e socioculturais. Na sociedade contemporânea, o capitalismo exacerbado influencia a geração de uma produção midiática superabundante e faz surgir uma nova forma de relacionamento das pessoas com os meios de comunicação, assim também, obras que optam por seguirem esses caminhos, como o projeto transmidiático Latitudes (Felipe Braga 2013). Este estudo visa recorrer à estética como instrumento interpretante, de como essas práticas vem se realizando, citando o início do cinema e também o atual, estudado por teóricos prólogos das vertentes estéticas, como por exemplo, Hugo Munsterberg e Jean Mitry, passando pelas mudanças ocorridas com a televisão, através de autores como Douglas Kellner, Maria Immacolata Vassallo Lopes e finalmente as novas mídias, abordadas por Robert Stan (2005) e sob o olhar de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015). PALAVRAS-CHAVE: Estética; Consumo de Conteúdo; Cinema; Televisão; Internet. ABSTRACT:Aesthetics,asasourceofmeaning, encompasses, not only, but also, reflections on artistic and sociocultural phenomena. In contemporary society, exacerbated capitalism influences the generation of an overabundant media production and gives rise to a new form of relationship between people and the media, as well as works that opt ​​to follow these paths, such as the transmissive project Latitudes (Felipe Braga , 2013). This study aims to use aesthetics as an interpreting instrument, of how these practices are being carried out, citing the beginning of the cinema and also the current one, studied by prological theorists of the aesthetic aspects, for example, Hugo Munsterberg and Jean Mitry, going through the changes With the television, through authors like Douglas Kellner, Maria Immacolata Vassallo Lopes and finally the new media, approached by Robert Stan (2005) and under the eyes of Gilles Lipovetsky and Jean Serroy (2015). KEYWORDS:Aesthetics;ContentConsumption; Movie theater; TV; Internet; Latitudes. 1 | INTRODUÇÃO Este artigo pretende resgatar algumas ideias lançadas por autores ligados as teorias das artes e contemporaneidades, que trazem luz sobre as questões voltadas a estética como
  • 174. Arte Comentada Capítulo 14 174 fonte de significação no meio comunicacional e de suas obras. O advento das novas mídias trouxe um impacto na sociedade e uma modificação na forma como as pessoas consomem os produtos audiovisuais e como elas se relacionam com as obras através da intersecção entre diversas mídias (a transmidialidade) e destas com outras formas de expressão. Autores como Carole Talon-Hugon (2009) explicam como a arte deixou de ser apenas material com finalidade ritualística na sociedade primitiva, para ser objeto que visa um consumo estético “desinteressado e gratuito” na atualidade. Assim também como outros autores que diferenciam a estética em cada meio de comunicação, citaremos Hugo Munsterberg e Jean Mitry para o cinema, Douglas Kellner, Maria Immacolata Vassallo Lopes para a TV e Robert Stan, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy para a internet. Utilizaremos ainda o projeto Latitudes (Felipe Braga, 2013) como exemplo de obra que se apoia nessas três plataformas citadas, seguindo a tendência estética da transmidialidade com a intenção de atrair maior público e maior rentabilidade econômica, visto que, uma coisa é certa e que é atualmente facilmente identificada, hoje já não existe mais, nesse mercado das artes, as oposições até pouco constituídas, “arte contra indústria, cultura contra comércio, criação contra divertimento: em todas essas esferas, leva a melhor quem for mais criativo” (Lipovetsky, Serroy 2015, 27). 2 | A ESTÉTICA COMO FONTE DE SIGNIFICAÇÃO O presente artigo visa utilizar como objeto de estudo a estética e suas conceituações como disciplina “portanto a estética é explicitamente apresentada como uma teoria da sensibilidade, mas da sensibilidade como modo de conhecimento” (Talon-Hugon, 2009, p.45) chegando ao que hoje alguns autores compreendem como sendo uma estetização do mundo; e por ser um conceito aberto, suscetível de evolução, será utilizada como sendo uma possibilidade de entender o que a nossa contemporaneidade nos tem proporcionado, aqui mais especificamente, no campo do audiovisual. Fazendo um resgate do que alguns autores consideram como estética, podemos iniciar com Carole Talon-Hugon (2009) que em sua obra A estética – história e teorias clarificaoseupercursodesdeasuaconstataçãoatéasuaaplicabilidadecomodisciplina. Ressalta as primeiras ideias lançadas por Baumgarten que batizou aquilo que ele considerava a “ciência do modo sensível do conhecimento de um objeto” por estética, assim também como as conceituações de outros autores, como Kant que na obra Crítica da faculdade do juízo, examina a questão que atravessa o século: saber como é que o juízo estético, que é subjetivo pode, não obstante, ter uma validade universal. Para ele existem duas grandes categorias: as que se ocupam da beleza (são os juízos de gosto) e as que se referem ao sublime, sendo que a diferença essencial que há entre elas está em a beleza repousar nas formas espaciais e temporais dos objetos
  • 175. Arte Comentada Capítulo 14 175 (portanto, no que é limitado no espaço e no tempo), enquanto o sublime repousa na ilimitação. No que se refere ao juízo de gosto, para Kant, repousa num sentimento de prazer ou de desprazer, sendo subjetivo. Porém, não está ligado ao belo, feio, agradável, aos interesses pessoal, intelectual ou moral. Ele é um sentimento desinteressado. “O desinteresse permite compreender a estranha pretensão à universalidade do juízo do gosto” (Talon-Hugon 2009, p.49). Porém, nem sempre as artes foram concebidas tendo a intensão e o consumo puramenteestéticosedesinteressados,massim,visandoosrituais.Comaemancipação do artista em relação às corporações, estes dão início a autonomização do domínio artístico e estético. A partir de então, surge à necessidade do “ter” algo que se exprima a beleza, seja na arquitetura, na pintura, nos ornamentos, enfim, tudo o que possa seduzir e atrair a atenção alheia. Ao mesmo tempo em que uma parte das artes emancipava-se do domínio burguês, das encomendas aristocráticas e da igreja para criar de forma livre e independente, também de forma econômica das leis de mercado, surge uma arte comercial voltada para o lucro. Tudo opõe esses dois universos da arte: sua estética, seu público, bem como sua relação com o econômico. A era moderna se mudou na oposição radical entre a arte e o comercial, a cultura e a indústria, arte e diversão, o puro e o impuro, o autêntico e o kitsch, arte de elite e a cultura de massa, as vanguardas e as instituições. Um sistema de dois modos antagonistas de produção, de circulação e de consagração, que se desenvolveu essencialmente apenas nos limites do mundo ocidental. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 21) Mesmo com a deficiência de criar um estilo próprio, a modernidade industrial não se absteve de uma nova maneira de estetizar em massa, forma essa, trazida pela indústria cultural e pela transformação da grande distribuição. Importante reconhecer que, segundo Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015), foram antes às lógicas industriais e mercantis, e não a esfera da arte propriamente dita, que tornaram possível o processo de estatização de massa. Com o advento das artes de massa e das estéticas mercantis que o cinema, a fotografia, a publicidade, a música gravada, o design, as lojas de departamentos, a moda, os produtos cosméticos, desencadeou- se pela primeira vez uma dinâmica de produção e de consumo estético na escala da maioria. Para os autores aqui citados, atualmente assiste-se a um fenômeno geral de estetização do mundo, paraTalon-Hugon, dizer que o mundo se estetizou é, em primeiro lugar, dizer que se tornou belo “do corpo dos indivíduos estabelecido pelos cosméticos, dos centros de fitness e da cirurgia estética”, também quando envolvem as cidades e os espaços “as cidades, cujos centros são objetos de renovações cuidadas, sendo as rotundas entregues os paisagistas e a construção de novos programas grandes nomes da arquitetura, por toda a parte se manifesta preocupação da aparência” (Talon- Hugon 2009, p.100). Para ela a estetização do mundo é também uma estetização dos olhares e das atitudes, a estética aqui sugerida não qualifica somente os objetos, mas,
  • 176. Arte Comentada Capítulo 14 176 também qualquer coisa no sujeito (uma atitude, uma atenção, um olhar, um juízo, caracterizados pela distância, pelo desinteresse, pela ligeireza, pela gratuidade, pelo cuidado com aparência). Lipovetsky e Serroy sustentam a ideia de que uma quarta fase de estetização do mundo se instalou, além do que Talon-Hugon cita, os autores dizem que esta é remodelada no essencial por lógicas de mercantilização e de individualização extremas, um mundo transestético. A partir daí, a preocupação com que tantos autores e artistas estejam a cada dia produzindo mais obras personalizadas, onde os estilos são múltiplos, assim como as tendências, os espetáculos, os locais de arte, a moda, o imaginário e as emoções. Um exemplo de obra realizada nesse momento transestético em que estamos vivendo é Latitudes (2013), um trabalho nacional realizado pelo diretor Felipe Braga no ano de 2013 e que ganhou o prêmio de melhor série para televisão da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA 2013). A obra é do gênero drama e narra o romance entre Olivia e José. Ela, executiva de moda, moderna e ativa. Ele, fotógrafo, comedido e romântico. Ambos viajam muito a trabalho e numa dessas viagens eles se conhecem e começam um relacionamento. Embora queiram estar juntos, discutem durante toda a trama sobre as consequências de abrir mão de suas vidas pessoais e profissionais para isso. É um projeto transmidiático, considerando alguns de seus elementos narrativos como integrantes de um conjunto de estratégias adotadas visando à constituição de um universo narrativo que se desdobra em diversas plataformas (televisão, internet e cinema) e diferentes formatos (série de televisão, websérie e filme). Segundo Jenkins (2009), as ideias comuns expressas pelo termo transmidialidade incluem o fluxo de conteúdos através de várias plataformas, a cooperação entre as múltiplas indústrias midiáticas, a busca de novas estruturas de financiamento que recaiam sobre os interstícios entre antigas e novas mídias e comportamento migratório da audiência, que vai a quase qualquer lugar em busca das experiências de entretenimento que deseja. Estamos num momento em que nunca se produziu tanta informação e, tampouco tivemos tamanha dificuldade em dar conta desse volume imenso de conteúdo, gerando um movimento contrário entre a riqueza de informação e a pobreza da atenção pelo fato de que, o público vai buscar apenas aquilo que lhe interessa, surgindo então, o desafio para quem produz e uma vasta opção para quem consome. 3 | A ESTÉTICA DOS MEIOS – DO PRAZER DESINTERESSADO A ESTETIZAÇÃO DO MUNDO A pouco mais de um século, o cinema se tornou parte integrante de nossas vidas, preenchendo nossos momentos de lazer e o imaginário. Os filmes nos proporcionam experiências e sensações variadas. “Isso não acontece por acaso. Filmes são concebidos para ter certos efeitos sobre seus espectadores” (Bordwell, Thompson
  • 177. Arte Comentada Capítulo 14 177 2013, p.29, grifo do autor), como o apego aos personagens, à identificação pessoal com a narrativa, à descoberta de novos lugares dentre outros. Uma das hipóteses desse estudo é que essas experiências e sensações não ficam represadas nas salas de cinemas, elas permeiam por outros meios e ambientes, aumentando as oportunidades de experimentações. Tais possibilidades também não estão restritas apenas a narrativa do filme, mas, a forma, os meios e as tecnologias envolvidas são partes importantes do processo para se contar uma história. O objetivo principal da teoria do cinema é verificar as suas proposições ou algum aspecto dele e em vezes é incorporado à questão estética e muitas são as obras teóricas que ligam as duas vertentes. Para Jacques Aumont (2012, p.14) “esses dois termos não abrangem os mesmos campos e é útil distingui-los”. Para o autor, à medida que uma obra está sujeita a múltiplas abordagens, não cabe apenas uma única teoria, mas sim, algumas que correspondam a cada uma dessas abordagens. A estética do cinema acaba sendo um desses braços de pesquisa, o qual se dedica ao “estudo do cinema como arte, o estudo dos filmes como mensagens artísticas” (Aumont et al. 2012, p.15). A estética do cinema está diretamente ligada à questão do gosto, do belo, e depende da estética geral que trabalha filosoficamente o conjunto das artes. A estética do cinema apresenta dois aspectos: uma vertente geral, que considera o efeito estético próprio do cinema, e uma vertente específica, centrada na análise de obras particulares: é a análise dos filmes ou a crítica no sentido pleno do termo, tal como é utilizado em artes plásticas ou musicologia. (AUMONT et al., 2012, p.16) A estética baseada nos princípios kantianos, como já citado anteriormente, busca explicar o nosso interesse por determinados objetos e experiências, onde esse aspecto afetivo não é puramente governado por causalidades físicas, mas explica-se pelo princípio do prazer que sentimos ao apreciar o “belo” ou aquilo que para Kant é uma “objetividade sem objetivo” (Andrew, 1989, p.31). Uma apreciação desinteressada e sem a intenção de ganho explica a existência da transcendência. Ao aplicar tais conceitos ao cinema Munsterberg não aceitou que ele fosse considerado uma arte menor que as outras que ele apreciava e estudava. Os que afirmam ser este um mero derivado da arte do teatro ignoram o fato de que, quando vemos uma fotografia da pintura renascentista, desejamos ver o original e, desse modo, não ficamos realmente satisfeitos com o objeto em frente a nós; mas quando vemos um bom filme ficamos satisfeitos e não consideramos um teatro deslocado. Nossas mentes são invadidas por esse objeto na tela e são afastadas de todos os outros compromissos. O filme então desliza para a sua conclusão moldado de tal forma que se mantém longe do mundo real e nos mantém no que tem sido chamado de estado de “atenção extasiada”. Em vez de tentar usar tal filme, ou mesmo compreende-lo, ficamos contentes por percebê-lo em si mesmo, isolado de todo o resto valioso por si só. Esta é a resposta de Munsterberg ao objetivo final do cinema. (ANDREW, 1989, p. 32) Para Munsterberg o cinema não era apenas uma representação da realidade, embora essa também possa ser uma opção do diretor em retratar uma figura ou paisagem real, mas para o estudioso, essa não é a capacidade estética total do filme,
  • 178. Arte Comentada Capítulo 14 178 mas de estimular nosso interesse pela experiência que o filme apresentou. Assim, nem todos os filmes, segundo a visão de Munsterberg, conseguem ser objetos estéticos, o que para tal eles devem seguir a ordem advinda dos preceitos kantianos de tempo, espaço e causalidade. O filme, para o autor, é diferente do sonho, mas também como ele totalmente mental. O que os difere é que o filme dispensa a energia envolvida nas fantasias e emoções geradas durante o sonho. Apenas apreciamos, nos extasiamos e ao sairmos do cinema nossas vidas cotidianas retomam o rumo natural do qual fazemos parte. Mitry, grande estudioso do cinema, além de produtor e historiador, percebe o cinema como um gerador de experiências e que nos traz um universo paralelo a nossa realidade, a possibilidade de experimentar a visão do outro. O processo estético do cinema compartilha uma profunda realidade psicológica e satisfaz nosso desejo de entender o mundo e uns aos outros de um modo poderoso, mas necessariamente parcial. A estética do cinema baseia-se em sua verdade e necessidade psicológica. E assim o cinema é a maior das artes, pois vai ao encontro dessa necessidade, mostrando-nos o processo de transformação, o mundo artístico humanizado. No cinema, os seres humanos dizem uns aos outros o que a realidade significa para eles, mas o fazem através da própria realidade, a qual cerca o seu mundo como um oceano. (Andrew, 1989, p. 209) O cinema continua desde a década de trinta com a mesma essência, de ser uma arte de massa que é realizado por grandes conglomerados, mas dominado ainda pela produção americana. Certamente é um exemplo de dispositivo voltado para o consumo estético-emocional que a era industrial instaurou. Visto pelo ângulo comercial, logo em suas primeiras décadas, o cinema ganha codificações a fim de determinar as estratégias de produção em larga escala de obras ficcionais. Os gêneros são definidos para que os filmes sejam facilmente identificados pelo grande público. Os estúdios se organizam contratando diretores versáteis capazes de passar facilmente de um gênero para outro e com curtos prazos pré-determinados como uma verdadeira linha de montagem. Também o Star-system contribuiu na construção da arte comercial do cinema, sendo o artista totalmente controlado pelo estúdio em que fosse contratado tendo sua imagem montada para gerar lucro. Era um produto estético transformada em imagem sublime. Criações artificiais, as estrelas femininas clássicas sempre estão elegantemente vestidas, penteadas e maquiadas de forma estudada, oferecem uma imagem de perfeição ideal da feminilidade associada ao glamour, ao sexy, ao luxo, a opulência. Como diz Dyer, “a imagem geral da estrela pode ser vista como uma versão do sonho americano, organizado em torno dos temas do consumo, do sucesso e da banalidade”. Inventam-lhe um nome, se o dela não convém; inventam-lhe também uma vida privada e uma existência romanesca capazes de fazer sonhar, tiram até sua voz, dublando-a como no caso de Rita Hayworth, cuja voz a Columbia acha “sugestiva demais”. (LIPOVETSKY, SERROY, 2015, p. 204) As primeiras exibições do cinema eram feitas em locais precários, tão populares quanto um circo ou um bar. Ganhou notoriedade ao ser desenvolvido por grandes nomes da literatura e do teatro, surgindo o Film d’Art. O fato de ser uma arte dirigida
  • 179. Arte Comentada Capítulo 14 179 ao grande público não o impediu de ter ambições estéticas, retratando em absoluto todas as correntes artísticas. Assim como, “a dimensão estética da sétima arte tem, no entanto, a particularidade de não se reduzir a um cinema de autores, criadores elitistas cuja obra seria reservada a um público restrito, único capaz de alcança-la intelectual e culturalmente” (Lipovetsky, Serroy 2015, p. 200). Hoje, bem menos democratizado, o cinema restringe-se ao que economicamente o alcance do público possibilita. Este tipo de cultura está cada vez mais restrito as classes mais favorecidas. Assistir um filme nas atuais salas de exibições é uma verdadeira experiência estética desde o momento em que a cadeira reclina a ponto de deitar-se dentro da sala escura. Ajeitar-se aos óculos 3D já é um ato natural e quando as luzes se apagam, as cadeiras movimentam-se conforme a ação do filme. Em muitas salas existem até mesmo garçons que servem bebida e jantar ali mesmo. Para finalizar tamanha aventura é necessário fotografar e postar tudo na rede social. O autor de Latitudes, Felipe Braga divulgou em entrevistas e no próprio canal da obra no Youtube que a sua intensão quando pensou em desenvolver esse projeto era poder possibilitar as pessoas uma maneira democrática de consumir. Aqueles que não conseguiriam pagar ingressos poderiam assistir ao conteúdo de maneira gratuita na internet, assim como muitas obras estão disponíveis nessa plataforma. Vale aqui ressaltar então, que as diferenças estéticas de consumo entre as plataformas estão nas experiências que elas nos proporcionam. Isso explica porque o autor buscou desenvolver uma obra que contemplasse mais de uma opção para o grande público. Afinal, o cinema há muitos anos, deixou de ser a única mídia a explorar as narrativas ficcionais. Com a televisão, o cinema precisou se reinventar, e buscar novas fontes de inspiração. Inclusive, as duas mídias precisaram se unir para fortalecerem-se, assim também como outras também o fizeram. Arlindo Machado (2007) ao refletir sobre como as pessoas, hoje, relacionam-se com “as imagens técnicas1 ” pela convivência diária com a televisão e outros meios eletrônicos, exemplifica como os filmes em vídeos cassetes (ou hoje em CDs, Blu Ray, internet e etc) se parecem com os livros, onde, o espectador faz a leitura solitária, no horário mais apropriado, iniciando e parando a leitura conforme o seu tempo. No Brasil, o modo que as pessoas encontraram para definir sua fisionomia midiática2 foi, principalmente, pelas imagens vistas pelas telas da televisão, que, segundo Jesús Martín-Barbero e Germán Rey (2001) “falam de nós e para nós e onde nós poderíamos nos ver, como em um movimento especular.” E completam, “o laço é fundamental, faz com que nos sintamos uma só nação, um só povo” (Barbero, Rey 2001, p. 114). Sugerem também que “a televisão constitui um âmbito decisivo do 1 “As imagens técnicas, ou seja, as representações icônicas mediadas por aparelhos, não podem cor- responder a qualquer duplicação inocente do mundo, porque entre elas e o mundo se interpõem trans- dutores abstratos, os conceitos da formalização científica que informam o funcionamento de máquinas semióticas tais como a câmera fotográfica e o computador” (MACHADO 1997, p. 03). 2 Conjunto das características distintivas e particulares voltados ao consumo midiático.
  • 180. Arte Comentada Capítulo 14 180 reconhecimento sociocultural e que a melhor demonstração dos cruzamentos entre memórias e formato, entre lógicas de globalização e dinâmicas culturais é constituída pela telenovela” (Barbero, Rey 2001, p. 114). Esse gênero televisivo está presente nas telas brasileiras desde os anos 60 e cativou o público, que se acostumou com a ficção serializada. Esta não é apenas uma tendência cultural nacional, mas sim, mundial. Visto a quantidade de produções ficcionais serializadas em todo o globo e que a cada dia mais, esse número aumenta, tornando improvável para uma pesquisa acadêmica quantificar precisamente o número de produções. Em Latitudes, para as duas plataformas (internet e TV) a obra foi serializada. Para manter um vínculo forte com o público, algo característico do meio televisivo, o autor incluiu o making off nos capítulos que foram exibidos no canal de televisão TNT, mostrando os ensaios, a passagem de texto dos atores, discussões com o diretor o que trouxe para a obra uma linguagem própria dessa plataforma, diferenciando-a dos outro meios (internet e cinema). Ao contrário do cinema onde a narrativa artística pode fluir em muitas vertentes, “a televisão comercial é predominantemente regida pela estética do realismo representacional” (Kellner 2001, p. 301). Dentre os muitos eventos que estão ocorrendo no campo do audiovisual, há duas grandes tendências que podem resumir o panorama do ambiente comunicativo atual, segundo Rogério Covaleski (2015), a primeira delas é que, com a convergência midiática e a evolução das relações de consumo, passou o cinema de mídia de massa para a segmentada, até chegar - com a interatividade - a uma mídia praticamente personalizada; a segunda tendência é a de se evitar a interrupção do conteúdo editorial e/ ou artístico que a publicidade, evidentemente, gera com seus breaks comerciais e anúncios. Pode-se supor que a publicidade instituiu o hábito da interrupção; especializou-se em interromper o conteúdo para despertar a atenção do público. Esse mesmo público enquanto não dispunha de como reagir a estas interrupções, aceitou- as de maneira passiva, cândida. Mas com o aparecimento do controle remoto do digital vídeo recorder e do ad-skipping, a tecnologia criou possibilidades que antes o público não possuía: evitar aí a interrupção; controlar ou interferir parcialmente no conteúdo. Alguns teóricos como Douglas Kellner (2001) consideram a televisão como um instrumento de entretenimento subordinada aos códigos narrativos e da história contada, onde o público se reconhece e se diverte com histórias contextualmente simplistas. Argumenta também que essa “pobreza estética do meio provavelmente foi responsável pelo desprezo com que tem sido ele tratado pelos teóricos eruditos e pela sua designação como um vasto “ermo intelectual” por parte daqueles que tem outros gostos e valores estéticos” (Kellner, 2001, p. 301). Embora, seja perceptível a mudança de foco da televisão atual, ela está se adaptando às mudanças comportamentais do público, mais exigente em relação ao consumo de conteúdo devido a maior número de opções de mídias, tem se especializado para não perder audiência, que em outros
  • 181. Arte Comentada Capítulo 14 181 tempos era absoluta e para Gilles Lipovtzky e Jean Serroy (2015) os momentos de tédio e a decepção frequente diante da televisão por algum motivo não nos impedem de abandonar a mania de assisti-la. Os consumidores das sociedades desenvolvidas consagram em média 40% a 50% de seu tempo livre – ou seja, três horas por dia na Europa – à televisão, apesar de às vezes obterem com isso, conforme eles mesmos dizem, menos satisfação do que com sua atividade profissional . Como se sabe, a escuta da televisão é flutuante e distraída, acompanhada de mudanças frequentes de canal e, além do mais ela proporciona uma sensação de “perda de tempo” e vacuidade. Os consumidores zapeiam, denunciam a nulidade a estupidez dos programas, mas somente 23% dos franceses declaram que a televisão não lhes faria falta se fossem privados dela. (LIPOVETSKY, SERROY 2015, p. 381) Esse é o retrato da sociedade contemporânea que induzida por uma rotina frenética, dedicam seu tempo livre para atividade que não lhes agregam valor e não lhes trazem satisfação. Ao analisarem o capitalismo na sociedade atual, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015), levantaram as questões referentes aos novos comportamentos sociais frente às várias opções de consumo. Sejam referentes à arte, moda ou mídias, as pessoas estão cada vez mais exigentes em relação à aparência das coisas. A beleza, o estilo e o design se tornam estratégias importantes para as marcas na diferenciação dos produtos. Os autores conceituam o que chamam de “sociedade de hiperconsumo”, onde as pessoas não são mais passivas diante das mercadorias, mas sim coprodutoras daquilo que consomem. Não diferente acontece com as novas tecnologias de informação e da comunicação. O consumidor compra seus produtos pela internet, instala e faz manutenção através de links e tutoriais. É o triunfo do capitalismo artista que lança continuamente modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, as emoções. Um universo de superabundância ou de inflação estética se molda diante de nossos olhos. Temos o mundo “transestético” uma espécie de hiperarte, em que se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida comum. Está cada vez mais presente de forma online nas redes sociais, são intercambiáveis entre os internautas, desenvolvendo assim, segundo Lipovetsky e Serroy (2015, p. 373), um “uso estético do virtual digital”. Graças às novas tecnologias, a experiência estética tende a se infiltrar em todos os momentos da vida cotidiana: ouve-se música em todos os lugares e em todas as situações e pode-se assistir a filmes em quase toda parte, no trem, no avião, no carro. Nunca o público teve tanto acesso a tantos estilos musicais, a tantas imagens, espetáculos e músicas. No tempo da internet, dos DVDS, da música digitalizada, o consumo cultural se emancipou de seus antigos rituais sociais, das formas de programação coletiva e até de qualquer limite espaço temporal: ele ocorre sob demanda, num supermercado cultural proliferante, hipertrófico, quase ilimitado. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 373) A tecnologia digital traz a possibilidade dos espectadores produzirem conteúdos para circular nas redes e não necessitar de mecanismos de mediação como à época da exibição original. Um fenômeno novo que atualmente movimenta os acessos ao site
  • 182. Arte Comentada Capítulo 14 182 do Youtube, são os famosos canais dos youtubers, esses competem diretamente com a televisão, fazendo migrar a audiência, principalmente do público jovem. Eles partem do princípio do “faça você mesmo”, ou seja, conquistam o público com seus próprios conteúdos. Essa liberdade gera afinidade entre quem produz e quem assiste, muito mais que isso, uma fidelidade, criando assim novos astros. Muitos desses personagens recebem convites de trabalho para atuarem fora da internet, como, participação em filmes para o cinema como personagens ou como dubladores, campanhas publicitárias, presença em eventos e outros, tornando a atividade rentável financeiramente. Seguindo esta tendência, a websérie Latitudes deu início ao projeto, com um tom de inovação, pois, procurou seguir as características da plataforma digital, com episódios curtos, diálogos emoldurados em sequências de cenas rápidas. Além de estar totalmente disponível na web num canal próprio no site do Youtube, onde seu público pode fazer comentários e assistir quantas vezes quiserem. Essas ferramentas capacitam os indivíduos ao arquivo, à apropriação e recirculação do conteúdo das mídias, mudando as suas relações com os meios. Henry Jenkins (2009) destaca que, “se os antigos consumidores eram previsíveis e ficavam onde mandavam que ficassem; os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma declinante lealdade a redes ou a meios de comunicação” (Jenkins 2009, p. 47). 4 | CONCLUSÃO O objetivo deste estudo foi de verificar os fenômenos estéticos que perpassam pelos três meios de comunicação de massa, cinema, televisão e internet, que não constituem mais mundos periféricos de arte, mas sim, estão integrados nos universos de produção, de comunicação e de comercialização, o que Jenkis (2009) conceitua como convergência das mídias. Ao pensar o atual cenário de produção artística, dominado pelo capitalismo gerador de tendências e estilos, onde tudo o que envolve essa área transforma-se em grandes projetos feitos em larga escala, como enfatiza Lipovetsky e Serroy (2015, p. 27) a arte está passando por um momento de “desdefinição” que para os autores implica numa forma inédita de experiência estética, num universo de superabundância e inflação estética, um mundo “transestético” (idem) em que a arte se infiltra nas indústrias, virando uma necessidade de consumo e que já não pode estar fora da vida das pessoas. Um exemplo citado foi à obra brasileira transmidiática Latitudes desenvolvida dessa maneira para que atingisse um público maior, o que acarreta numa leitura estética diferente conforme a sua plataforma. No cinema, quando traz ao expectador um momento insuperável da felicidade da evasão. Aquele momento em que se volta a uma realidade que se faz flutuar, que extasia e remete ao sonho sem precisar sonhar. E que hoje, altamente estetizado no quesito comercial, proporciona uma experiência surreal momentânea.
  • 183. Arte Comentada Capítulo 14 183 Na televisão, aparato indispensável como que fosse um membro do corpo humano, ou como um integrante da família que já faz parte da rotina escutá-la mesmo que sem querer. Ligada, muitas vezes não interfere no ambiente, mas se desligada parece provocar um imenso vazio. A dependência desse equipamento faz girar um universo sociocultural, seja através da aproximação que faz com a realidade por meio da identificação do público com as imagens, ou, seja pela imposição estética que ela proporciona pelas suas obras ficcionais. E na internet, já incorporada na rotina das pessoas, liberta o público à partir do momento em que não se faz necessário a submissão aos padrões culturais dispostos pela indústria. Pode-se acessar a conteúdos nos momentos oportunos, podendo transformar expectadores em produtores, atores, participantes e realizadores. REFERÊNCIAS ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1989. AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 2012. COVALESKI, Rogério. Cinema e publicidade: intertextos e hibridismos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015. FERRY, Luc. Kant: uma leitura das três críticas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o modernismo e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. LATITUDES FILME. Los Bragas House. BR, 24/05/2013. 81mins. <https://www.youtube.com/ watch?v=5siPcZr-ws>. Acesso em:15 dez 2015. LIPOVETZKY, Gilles; SERROY, Jean. A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Estratégias de transmidiação na ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013. ________________________________. Ficção televisiva e identidade cultural da nação. Alceu (PUCRJ), v. 10, p. 05-15, 2010. Disponível em: <http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu20_ Lopes.pdf>. Acesso em: 20/01/2016. STAM, Robert; SHOHAT, Ella. “Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos ‘pós’”. In RAMOS, Fernão Pessoa (org,). Teoria contemporânea do cinema I. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2005. p. 393-424. TALON-HUGON, Carole. A estética: história e teorias. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2009.
  • 184. Arte Comentada Capítulo 15 184 CAPÍTULO 15 IMAGEM E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA A PARTIR DO ARQUIVO DO FOTÓGRAFO PROFISSIONAL Thiago Guimarães Azevedo Professor Auxiliar III do curso de Design da Universidade do Estado do Pará em Paragominas, Doutorando em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes pela UFPA, MBA em Marketing pela UNAMA e Bacharel em Design pela UEPA. Pesquisa atualmente a relação imagem e memória, fotografia e poética do imaginário amazônico pela fotografia. azevedo_thiago@yahoo.com.br RESUMO: Apresente pesquisa nasce a partir da dissertação de mestrado em artes desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA e tinha como foco a compreensão de como funciona a relação arte e memória no aplicativo Instagram, em virtude da identificação da mudança do suporte da imagem, do campo concreto o álbum para o virtual, da imagem postada. A partir disso chegou-se a proposta atual que visa buscar essa relação entre imagem e memória através dos profissionais que atuam com fotografia em Belém do Pará, pois este grupo se dedica a efetivar o registro de diversos grupos sociais em seus ritos coletivos como casamentos, festas de aniversário, formaturas, entre outros. Dessa forma, suas memórias sobre esses grupos estão efetivadas a partir dos recortes realizados por meio das imagens que estabelecem entre a memória do profissional e a memória coletiva do grupo. Outro aspecto que marca o fotografo profissional como um marco significativo de estudo, pois, o arquivo segundo Derrida é um elemento de poder, visto que este profissional é detentor do material que será disponibilizado para realização de memórias coletivas. A fotografia pode ser entendida como a relação entre a Experiência de Mundo e a Experiência Vivida, levando em conta que a primeira tem relação com aspectos sociais e culturais, ou seja, podendo se relacionar com a memória coletiva e a segunda tem a ver com as percepções do indivíduo no mundo, que podem ser entendidas como as memórias do indivíduo em torno da imagem retratada. No caso da pesquisa, pode-se pensar que o primeiro tem relação com o grupo social retratado e da experiência do Fotógrafo Profissional com esse grupo e o segundo com as subjetividades do próprio profissional. A presente pesquisa tem como abordagem a Fenomenologia. Segundo Masini (2000) a pesquisa com abordagem Fenomenológica possui caráter no homem enquanto animal racional que garante a ele sua identidade. Ou seja, vê no indivíduo sua importância na forma como ele racionaliza o mundo vivido, ou seja, “propõe um retorno a essa totalidade do mundo vivido”. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia, Imagem, Memória, Profissional de Fotografia, Memória
  • 185. Arte Comentada Capítulo 15 185 Coletiva. 1 | INTRODUÇÃO Essa pesquisa nasce a partir da dissertação de mestrado em artes desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA e tinha como foco a compreensão de como funciona a relação imagem e memória no aplicativo Instagram, em virtude da identificação da mudança do suporte da imagem, do campo concreto o álbum para a galeria virtual. Durante a pesquisa na efetivação do recorte do campo, foi tomado o blog do aplicativo1 como parâmetro para seleção dos atores sociais que seriam pesquisados. Ao efetuar a seleção, fui desenvolvendo uma tessitura de profissionais que atuam com a imagem como designers, artistas e fotógrafos. Esses últimos relataram durante a pesquisa seu envolvimento com a fotografia seja como técnica, ou como espectadores da imagem, pôde-se perceber que esses profissionais possuem dois tipos de relação com a memória por meio da imagem, deles como indivíduos retratados e de como aqueles que retratam. A partir disso chegou-se a proposta atual que visa buscar essa relação entre imagem e memória através dos profissionais que atuam com fotografia em Belém do Pará, pois este grupo se dedica a efetivar o registro de diversos grupos sociais em seus ritos coletivos como casamentos, festas de aniversário, formaturas, entre outros. Dessa forma, suas memórias sobre esses grupos estão efetivadas a partir dos recortes realizados por meio das imagens que estabelecem entre a memória do profissional e a memória coletiva do grupo. 2 | O MUNDO SOCIAL E A FOTOGRAFIA O mundo social é marcado pela presença das imagens, estas que nos cercam e nos fazem interpretar o mundo, ou seja, damos a elas significados diversos e a usamos como linguagem ou para descrevê-lo e tornar nossas percepções tangíveis, ou para ilustrar fatos ocorridos na relação com o texto escrito. Nesse ponto a fotografia faz parte da vida como elemento que registra o momento, ao mesmo tempo em que se dimensiona para além de suas bordas na construção de memórias. Para Dubois (1993, p. 30) O papel da fotografia é conservar o traço do passado ou auxiliar as ciências em seu esforço para uma melhor apreensão da realidade do mundo. Em outras palavras, na ideologia estética de sua época, Baudelaire recoloca com clareza a fotografia em seu lugar: ela é um auxiliar (um “servidor”) da memória, uma simples testemunha do que foi. 1 Ver em blog.instagram.com/
  • 186. Arte Comentada Capítulo 15 186 A fotografia pode ser entendida como a relação entre a Experiência de Mundo e a Experiência Vivida2 , levando em conta que a primeira tem relação com aspectos sociais e culturais, ou seja, podendo se relacionar com a memória coletiva e a segunda tem a ver com as percepções do indivíduo no mundo, que podem ser entendidas como as memórias do indivíduo em torno da imagem retratada. No caso da pesquisa, pode- se pensar que o primeiro tem relação com o grupo social retratado e da experiência do Fotógrafo Profissional com esse grupo e o segundo com as subjetividades do próprio profissional. Nesse diálogo em Benjamin (1994) vemos o contato entre dois extremos: da técnica do fotógrafo que efetua o registro e eterniza a memória de forma poética por meio da estética da imagem e do observador que [...] sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo olhando para trás. (BENJAMIN, 1994, p. 94) Nesse sentido, o olhar que retrata ou é retratado no momento não é o mesmo que contempla, visto que nesse processo, há o que está além da imagem, seu contexto, suas micro-histórias3 que estão no entorno da imagem e que servirão de mecanismos motores para rememoração sob forma de imagens-lembranças4 . 3 | A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE IMAGEM E MEMÓRIA Essa relação é importante ser estudada em virtude de primeiramente observar esse movimento da memória que tem a imagem como elemento mediador, nesse caso, ela tem sido vista sob a perspectiva do observador, ou seja, daquele que vivencia o momento que é retratado. Todavia, quem retrata é ao mesmo tempo um agente ativo, pois registra o momento, por outro lado, no ato de rememorar é colocado como agente passivo, pois não participa da verdade material5 , tornando esse indivíduo, um rastro de memória, entretanto, ele também possui suas memórias sobre o que há dentro e fora da imagem captada. Assim, analisar a imagem do ponto de vista da memória do arquivo é importante, pois Derrida (2001) aponta primeiramente o conceito de arquivo como começo e comando, pois exerce um processo de ordenamento da memória, no caso do Fotógrafo, a imagem impressa representa o princípio físico, ou material do arquivo que inicia e dá comando ao processo de rememoração dos fatos, ao mesmo tempo em que esse profissional como detentor da imagem, exerce poder sobre a memória, visto que ele é possuidor do recorte tempo/espaço na imagem, então, ele estabelece a ordem social 2 Ver em Benjamin (1994) 3 Ver em Bensa (1998) 4 Ver em Bergson (2006) 5 Ver em Derrida (2001)
  • 187. Arte Comentada Capítulo 15 187 da memória dos indivíduos retratados. Outro ponto significativo nessa perspectiva da imagem como mediadora do processo de memória é o que aponta Bergson (2006), visto que ela representa um mecanismo motor que ativa o movimento da Memória Espontânea, que segundo o autor, representa aquilo que está presente, mas adormecido e que através desses mecanismos é ativado e se manifesta através de imagens-lembranças. Nesse sentido, o em relação a esses dois universos (do produtor de imagens e observado) observa-se que o que os diferencia é o olhar, com isso, em Barthes (2011) encontramos a definição de dois tipos de olhares, o studium e punctum. Para o studium o olhar é estabelecido pelo todo, de forma generalizada, sem observar detalhes, com isso, é um tipo de imagem que se olha, mas não há um relacionamento emocional com ela, no sentido de que ela lhe traga algo de significativo. Diferente do punctum, que é explicada pela analogia da ferida, ou seja, uma fotografia que fere através de aspectos particularizados, esse tipo de imagem prende seu Spectator através de aspectos perceptivos, como se este se sentisse mortificado pela imagem, não pelo todo, mas por detalhes particulares, na linguagem que tratamos aqui, o Spectator do punctum em Barthes (2011) é o que chamamos de observador, no mesmo sentido na linguagem fenomenológica de Merleau-Ponty (1999), o studium está no campo da percepção enquanto que o punctum está no campo dos sentidos. Essa compreensão da imagem studium está no entendimento de Barthes (2011), na ordem do gosto/não gosto, like/I don’t, ou seja, o observador não é estimulado a desenvolver uma relação emocional com a imagem, pois é “um meio-desejo, um meio- querer; é a mesma espécie de interesse vago, uniforme, irresponsável, que temos por pessoas, espetáculos, roupas, livros que consideramos ‘distintos’”. (BARTHES, 2011, p. 37) A compreensão do que foi levantado por Barthes em relação ao campo proposto da pesquisa é compreender essa dimensão de interação e interesse envolvido com a imagem tanto do produtor, quanto do observador. Isso influencia diretamente na forma como essa memória será construída a partir do arquivo. É importante também sob o aspecto de ao conciliar os pontos de vistas sobre esse arquivo, tanto do Fotógrafo quanto dos grupos retratados, podemos encontrar estruturas da memória a partir da imagem, que atuam num diálogo entre a memória dos indivíduos (Experiência de vida/Erlebins) e da memória coletiva (Experiência de mundo/Erfahrung)6 e com isso, compreender como esses dois grupos ordenam esse diálogo entre a verdade material e verdade histórica a partir dessas imagens. 6 Erlebins tem relação com as experiências individuais, estas não compartilhadas, diferente de Er- fahrung que tem relação com o ato coletivo de relatar as experiências vividas, estas são sociais. Ver em Benjamin (1994)
  • 188. Arte Comentada Capítulo 15 188 4 | O QUE É A IMAGEM Em Belting (2005) a imagem é um processo simbólico, pois tem relação com a memória e se relaciona entre o visual e o mental. Em Eliade (1979) a existência humana e marcada por símbolos e estes marcada por imagens, dessa forma pode-se dizer que nossa sociedade é da imagem. Aumont (1993, p.78) afirma que nenhuma imagem é gratuita, pois as imagens tem cunho individual ou coletivo e coloca que uma das razões essenciais para produção de imagens “provém da vinculação da imagem em geral com o domínio do simbólico, o que faz com que ela esteja em situação de mediação entre o espectador e a realidade”. Para o autor a imagem possui três valores: a. Valor de representação b. Valor simbólico c. Valor de signo Nesse processo de construção da imagem há a relação entre espectador que a constrói, entretanto também é construído pela imagem nesse sentido “o espectador consiste antes de tudo em trata-lo como parceiro ativo da imagem, emocional e cognitivamente”. (AUMONT, 1993, p. 81). A partir desse ponto da relação entre espectador e imagem, há a visão que segundo Català-Domènech (2011) extrapola a dimensão biológica do olho, mas está na relação que o corpo possui com a realidade, dessa forma, as experiências dimensionam a forma como construímos as imagens sobre o mundo que nos cerca, com isso: “Perceber, ser receptor ou usuário de uma imagem, significa em primeiro lugar iniciar um jogo entre a identidade social e a identidade individual” (CATALÀ- DOMÈNECH, 2011, p. 19). Diferente de Aumont (1993), Català-Domènech (2011, p. 23) aponta como função da imagem: a. Informativa (a imagem constata uma presença); b. Comunicativa (a imagem estabelece uma relação direta com o espectador ou usuário); c. Reflexiva (a imagem propõe ideias); d. Emocional (a imagem cria emoções). Essas funções estruturam a forma como a cultura organiza sua percepção em torno dela. Nesse sentido, a fotografia representa a forma concreta de relacionar essas funções e valores da imagem para a cultura. Para Barthes (2011) a fotografia é o campo da representação, não apenas da imagem que quer representar algo, mas dos sujeitos que querem ser vistos, pois A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí
  • 189. Arte Comentada Capítulo 15 189 se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte. (Barthes, 2011, p. 23). Dessa forma, a imagem existente na fotografia, dialogando com o Català- Domènech (2011) está no campo da construção da imagem enquanto discurso cultural, pois, ela faz parte dos imaginários construídos pela cultura, então o ato de fotografar está no âmbito de efetuar o registro desses ritos que marcam a sociedade, entretanto, esses eventos representados estão no campo da representação segundo Barthes (2011), há por trás da imagem, outras imagens que extrapolam a representação e desnudam os grupos sociais. Sobre isso Dubois (1993, p. 38) citando Rudolf Arnhein afirma: Arnheim propõe uma enumeração sintética das diferenças aparentes que a imagem apresenta com relação ao real: em primeiro lugar, a fotografia oferece ao mundo uma imagem determinada ao mesmo tempo pelo ângulo de visão escolhido, por sua distância do objeto e pelo enquadramento; em seguida, reduz, por um lado, a tridimensionalidade do objeto a uma imagem bidimensional e, por outro, todo o campo das variações cromáticas a um contraste branco e preto; finalmente isola um ponto preciso do espaço-tempo e é puramente visual (às vezes sonora no caso do cinema falado), excluindo qualquer outra sensação olfativa ou tátil. 5 | A IMAGEM ENQUANTO MEMÓRIA Nesse ponto, a imagem como campo perceptivo, estimula o movimento de memória, ao mesmo tempo em que a fotografia representa o ato concreto que estimula esse movimento, pois para Yates (2007) enfatiza a partir de Aristóteles que há dois princípios que estimulam a “arte da memória”: a associação e a ordem. Ricoeur (2007) pontua esse movimento em dois sentidos, do hábito e da memória, ele afirma que a memória está ligada ao passado e o hábito ligado à vivência com o presente. Em ambos os casos o tempo é o que ordena esses dois elementos. Nesse sentido o ato de descrever auxilia no processo de classificar e ordenar as experiências em relação ao tempo, com isso, a fotografia seria a forma visual de criar esse ordenamento da memória. A imagem enquanto mecanismo motor para ativação da memória é dividida em duasoutrasmemórias(memóriahábitoememóriaespontânea)segundoBergson(2006, p. 88), “a primeira registra, por meio de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data”. A memória não atua somente no campo do individual, mas de acordo com o Halbwachs (1990) apresenta uma construção social e coletiva, visto que nunca estamos sozinhos no mundo e as testemunhas dos acontecimentos que nos cercam, ajudam a construir nossas memórias que ele chama de “memória coletiva”. Nesse caso, ao contemplar uma imagem, não há somente o indivíduo que lembra, mas o grupo que faz parte da representação, além dessa coletividade, há também
  • 190. Arte Comentada Capítulo 15 190 quem está por trás da objetiva, no caso o fotógrafo profissional que efetua o registro. Esse processo do registro do fotógrafo há a construção do arquivo que na perspectiva de Derrida (2001) representa um ordenamento da memória, nesse aspecto a imagem a partir dos arquivos dos fotógrafos profissionais que atuam em Belém, representa esse ordenamento da memória, que estabelece vínculos com o tempo e espaço do acontecimento. Esse ordenamento, por parte do fotógrafo é o poder que ele possui em estruturar a memória, definir aquilo que pode ou não ser lembrado, visto que ele é proprietário do material registrado, ou seja, com isso há nele o controle das suas memórias através da imagem e daqueles que irão rememorar o acontecimento a partir do arquivo do fotógrafo. Nesse ponto, o arquivo é mais que um elemento físico que auxilia no processo de lembrança, mas seguindo o que Derrida (2001) aponta, é o mecanismo motor que auxilia no ordenamento da memória e a fotografia representa esse movimento que a memória faz para relacionar o que Bergson (2006) fala entre a memória hábito e memória espontânea. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse artigo, procurou-se estabelecer um diálogo teórico sobre os elementos que darão subsídios para se efetivar pesquisas em torno dessa relação da memória tendo a imagem como mediadora, ou seja, como esse mecanismo motor que ativa transformando a memória espontânea em memória hábito de acordo com que trata Bergson (2006). Assim, pensar a memória não somente por meio dos grupos sociais que vivenciam o momento, mas através daqueles que registram é significativo, pois estes personagens fazem parte da construção da tessitura da memória coletiva em um outro tipo de contexto. A partir disso, a imagem se torna mediadora da memória no sentido de se colocar entre aquele que olha e o que é olhado, pois, o registro do momento depende da percepção e do olhar desse profissional, com isso, ele possui poder sobre o que será revelado, assim, esse fotógrafo não é um mero profissional contratado, mas um interlocutor narrativo do momento a ser registrado. E através de sua lente, a história dos grupos sociais é contada sob o ponto de vista não apenas de quem vivenciou o momento, mas também de quem o registrou, nesse sentido, esse profissional deixa de ser um agente passivo da história e passa ter voz ativa na construção dessas memórias coletivas. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas-SP: Papirus, 1993.
  • 191. Arte Comentada Capítulo 15 191 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. In: Revista Concinnitas n. 8. Rio de Janeiro, 2005, p. 65-78. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BENSA, Alban. Da micro-história a uma antropologia crítica. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escalas: A experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. P. 39-76. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAMPOS, S.M.C.T.L. A imagem como método de pesquisa antropológica: um ensaio de Antropologia Visual. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 6:275-286, 1996. Disponível em <http://www.periodicos.usp.br/revmae/article/viewFile/109274/107772>. Acesso em 24 de agosto de 2016. CATALÀ-DOMÈNECH, Josep M. A forma do real. São Paulo: Summus, 2011. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas-SP: Papirus, 1993. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ELIADE, Mircea. Imagem e símbolo. Lisboa: Artes e Letras/Arcádia, 1979. FAZENDA, Ivani (org) Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2000. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia científica. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 1991 MARCONI, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003. MASINI, Elcie F. Salzano. Enfoque fenomenológico de pesquisa em educação. In MERLEAU-PONTY. Maurice. Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1999 MOREIRA, Daniel Augusto. O método fenomenológico na pesquisa. São Paulo: Pioneira, 2002. RICOEUR, Paulo. A memória, a história, o esquecimento. Campinas-SP: Editora Unicamp, 2007. YATES, Frances. A arte da memória. São Paulo: Editora Unicamp, 2007.
  • 192. Arte Comentada Capítulo 16 192 CAPÍTULO 16 OS PIONEIROS DA FOTOGRAFIA EM PONTA GROSSA: UMA ANÁLISE DO JORNAL O PROGRESSO E CASA DA MEMÓRIA Tais Maria Ferreira Faculdades Santa Amélia e Universidade Estadual de Ponta Grossa Ponta Grossa, Paraná Carlos Alberto de Souza Universidade Estadual de Ponta Grossa Ponta Grossa, Paraná RESUMO: A proposta deste trabalho foi identificar os profissionais que iniciaram atividades fotográficas na cidade de Ponta Grossa. A pesquisa foi desenvolvida tendo como recorte temporal o período de 1895 a 1920. A investigação foi desenvolvida por meio de análise de documentos públicos e de edições do jornal O Progresso (1907- 1912), arquivos disponibilizados pela Casa da Memória. A metodologia envolveu também pesquisa bibliográfica. Observa-se que os profissionais, alguns anônimos, contribuíram com seus registros para evidenciar o início da fotografia na cidade e marcaram o surgimento das primeiras empresas de fotografia, levando às novas gerações imagens que revelam aspectos históricos do município. Uma das evidências da pesquisa é que nesse período as fotografias eram utilizadas de forma publicitária, demonstrando que os jornais já trabalhavam com anúncios para se autofinanciar. PALAVRAS-CHAVES:Documentos,Fotografia, Ponta Grossa. ABSTRACT: The purpose of this study was to identify the professionals who started photographic activities in the city of Ponta Grossa. The research was developed with the temporal cut from 1895 to 1920. The investigation was developed through analysis of public documents and editions of the newspaper O Progresso (1907-1912), archives made available by the House of Memory. The methodology also involved bibliographic research. It is observed that the professionals, some anonymous, contributed with their records to evidence the beginning of the photography in the city and marked the appearance of the first companies of photography, taking to the new generations images that reveal historical aspects of the municipality. One of the evidences of the research is that in this period the photographs were used in advertising, demonstrating that the newspapers already worked with ads to be self- financing. KEYWORDS: Documents, Photography, Ponta Grossa. 1 | INTRODUÇÃO Esta pesquisa se propôs a fazer um levantamento dos primeiros fotógrafos de Ponta
  • 193. Arte Comentada Capítulo 16 193 Grossa a partir de uma análise no acervo da Casa da Memória e em edições do Jornal O Progresso, que circulou no Município no período de 1907 a 1912. Além de apontar para o nome daqueles que iniciaram a profissão de fotógrafo, o trabalho relaciona as contribuições que tais profissionais legaram à cidade e ao desenvolvimento do campo fotográfico na região dos Campos Gerais. Com a indicação das primeiras empresas na área da fotografia. O trabalho envolveu uma pesquisa bibliográfica e documental, arquivos imagéticos digitais, disponibilizados pela Casa da Memória do Paraná, de Ponta Grossa, que possui um grande acervo para pesquisa. Porém, os registros sobre fotografia e seus autores encontram-se fragmentados. A intenção não é desenvolver um estudo aprofundado sobre estes personagens e pioneiros da fotografia em Ponta Grossa. Parte da história desses fotógrafos foi pesquisada no período de 1895-1920, por meio de suas publicações, “obras” arquivadas na Casa da Memória. Pode-se evidenciar a importância de seus registros fotográficos, pois foram eles que, ao congelar um momento no passado, possibilitam um resgate histórico das transformações da sociedade, da cultura e da história no final do século XIX e começo do século XX, quando ainda se experimentava, em várias partes do país, o uso da fotografia. Na pesquisa, identifica-se imagens que são importantes historicamente para Ponta Grossa, como é o caso da fotografia, produzida por Frederico Lange, que retrata, em 1905, o Hotel Palermo, onde atualmente funciona o QG do Exército, localizado ao lado do histórico prédio da Pró-reitoria de Extensão da UEPG. Aquela área central, sempre valorizada, abriga hoje a Igreja Matriz Catedral de Sant’Ana. Ele também é o responsável por fotos que retrataram as obras da Estrada de Ferro da cidade, que ajudaram no desenvolvimento do Município, atraindo para a região fazendeiros, e, posteriormente, empresas e grandes indústrias. Hoje, Ponta Grossa é reconhecida por seu parque industrial. O primeiro profissional a publicar anúncios no Jornal O Progresso foi Miguel Herdace. Ele aproveitava o espaço da imprensa para anunciar seus trabalhos e sua empresa na área da fotografia, procurando atrair com esta estratégia a clientela de Ponta Grossa. Outra imagem que tem peso histórico para a memória da cidade, revelando estilo de vida e comportamento, é de autoria Edmundo Canto. Um de todos trabalhos dele, que se encontra na Casa da Memória, mostra dois carros antigos, seus proprietários trajando Paletó, botas e chapéus - no ano de 1915-, o que evidencia o retrato de uma época do Brasil e seus costumes. 2 | FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: O VALOR HISTÓRICO DA IMAGEM Registrar por meio de pesquisa, o início da fotografia em Ponta Grossa, têm importância para a memória e história da cidade.Afotografia, como já observaram vários
  • 194. Arte Comentada Capítulo 16 194 pesquisadores como, por exemplo, Kossoy (2001, p.28), é “um intrigante documento visual, cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções”. A fotografia e os fotógrafos contribuem, com seus registros, para a história e para a sociedade, mostrando o passado e as transformações no meio social. Suas imagens possibilitam pistas para contar histórias de um tempo passado. Ele enfatiza que “toda fotografia é um resíduo da história.” (KOSSOY, 2001, p. 47). Veiga (2006, p. 17) salienta que a imagem transforma “em imortal uma história, uma pessoa, a singeleza de um gesto ou de um momento”. Outro que defende o valor da fotografia é Straube (2012, p. 5). Ele define que “a fotografia registra um precioso momento que só o fotógrafo poderá sentir, dentro de sua sensibilidade ótica”. Lima (1989, p. 39) observa que o fotógrafo trabalha “com o que vai desaparecer, pois nada, nada mesmo, se repete”. Sobre a importância da máquina e do ato fotográfico, convém neste momento atentar para o que diz Straube: O artista da máquina fotográfica era, sem dúvida, um privilegiado. Privilegiado por ter captado cenas que hoje nos remetem ao passado, permitem reconhecer familiares e pessoas já falecidas, acontecimentos alegres e tristes, contar enfim a história de um momento e por terem, às suas expensas, trazidos até nós nostálgicos momentos (STRAUBE, 2012, p. 5). É impossível voltar no tempo. Mas, graças ao desenvolvimento da máquina fotográfica e de outros dispositivos de gravação de imagens, consegue-se entender o passado. Hoje se compreende ou se tem pistas de como viveram os homens das cavernas e de outras civilizações, por causa , por exemplo, de suas pinturas. Os fatos e as imagens acompanham a história da humanidade em diferentes cenários e contextos. Neste estudo, a pesquisa foi ao encontro de registros dos pioneiros da fotografia (1895-1920) em Ponta Grossa, procurando destacar o seu trabalho e suas atividades em favor da história da cidade em seus vários aspectos. Trata-se de um tempo em que os fotógrafos não se preocupavam em assinar suas imagens. Muitas fotos disponíveis na Casa da Memória são anônimas, o que dificultou a pesquisa, que tinha como propósito revelar os primeiros profissionais da área na cidade, atividades e empresas no ramo. Essa preocupação com o crédito da imagem só começa a ser forte com a profissionalização do jornalismo. A partir do uso mais frequente da fotografia em jornais e da profissionalização do fotógrafo, é que é que isso começou a ser exigido. Verificou-se que as informações pessoais e profissionais dos fotógrafos da época nem sempre eram registradas, mas os conteúdos de suas imagens continuam tendo valor histórico. De acordo com Straube (2012, p.5), tudo que passou pela retina daquele que soube reconhecer um instante mágico, permitiu “eternizá-lo”. Percebeu-se que poucos profissionais tiveram a percepção a respeito do cuidado com a fotografia e seus registros, fato comprovado no trabalho. Além de revelar alguns nomes importantes da fotografia de Ponta Grossa, a pesquisa mostra que muito de
  • 195. Arte Comentada Capítulo 16 195 suas imagens fazem referência a Ponta Grossa de antigamente, suas ruas, prédios, praças, monumentos e o cotidiano. Na análise de O Progresso, verificou-se que as empresas fotográficas da cidade fazem anúncios no jornal para divulgar seus produtos. Entre elas, Thomen&Bianchi, Photographia, Atelier Photographico A Flamula&Irmão. Miguel Herdace (O PROGRESSO, 1909, p. 2), proprietário de Photographia, foi o primeiro fotógrafo a anunciar neste jornal. Posteriormente, surgiram publicidades do estabelecimento Thommen & Bianchi (O PROGRESSO, dez. 1909,) sendo um dos proprietários Luis Bianchi, que foi um dos grandes fotógrafos da cidade, responsável pela cobertura de solenidades sociais, políticas e outros eventos da cidade. Bianchi ainda não atuava com fotografia, fato que veio acontecer logo em seguida. Thommen&Bianchi era uma empresa de Secos&Molhados Outra figura importante da área fotográfica, que também aparece no Progresso, foi Alfredo Flamuler. Ele, igualmente, utilizou o espaço no jornal para apresentar seu trabalho. Era o proprietário do Atelier Photographico A Flamula & Irmão (O PROGRESSO, 1910, p.2). A atividade fotográfica na cidade neste período foi baseada em álbuns de famílias e retratos, além de coberturas no trabalho, atividades de lazer, fotos cotidianas, acompanhando o dia-a-dia da cidade. 3 | UMA CIDADE DENOMINADA PONTA GROSSA Ponta Grossa, fundada em 15 de setembro de 1823, segundo Fernandes (2003, p. 63) “pode crescer e prosperar”. A cidade dona de um grande entroncamento rodoferroviário, conforme Oliveira afirma, também já foi nominada de Casa de Telha, Estrela, Ponta Grossa, Pitangui. Pela lei nº 309, de 05 de abril de 1872, retornou ao nome atual - Ponta Grossa (OLIVEIRA, 1988, p.02 e 03). Os anos passaram e Ponta Grossa acompanhava os padrões de modernidade de cada época. Suas ruas centrais ganharam calçamentos, iluminação elétrica, entre outras melhorias para atender à população crescente e os visitantes vindos de diversas localidades do estado, do país e até do exterior. As comunicações tornam-se mais ágeis com o uso do telégrafo e do telefone. Os automóveis passaram a dividir espaços com carroções e charretes. As fábricas surgiram com as suas chaminés esfumaçantes. Seus operários, colonos russo-alemães e viajantes, compuseram um novo quadro com personagens que chegaram para contribuir com este cenário emergente (MIKAELLI, 2008, p.3). Na virada do ano de 1900, Ponta Grossa tinha 8.335 habitantes, mais que o dobro de duas décadas anteriores. Seu crescimento populacional esteve relacionado à chegada da ferrovia em 1894. “Este crescimento estimula a abertura de pequenas e médias empresas e a integração à economia nacional” (BUCHOLDZ, 2007, p.20). Hábitos requintaram-se e a cidade se movimentou em meio a cafés, casas
  • 196. Arte Comentada Capítulo 16 196 comerciais desfilando seus produtos, hotéis, cine-teatros, bailes, praças arborizadas, clubes sociais, espetáculos esportivos. Surgiram seus símbolos de poder como Prefeitura, Catedral, Fórum, Cadeia. Espaços que estavam localizados no centro da cidade foram ocupados por segmentos da elite que notoriamente controlavam a política e a economia do município (BUCHOLDZ, 2007, p.65-66). Uns identificados e citados, outros anônimos. Chaves (2009, p. 28) definiu esses personagens, registrando que a cidade “se constrói exatamente a partir da ação dos homens que a ocuparam e que lhe deram vida e sentido”. Foram as pessoas que diuturnamente, com seus trabalhos, costumes e ações fizeram a cidade prosperar e progredir, deixando um legado para o futuro. Assim foi a contribuição dos profissionais dafotografia.Queaoregistrar,acompanharosacontecimentoseevoluçãodomunicípio, com suas lentes, possibilitaram que a cidade de outrora pudesse ser conhecida e pesquisada atualmente. 3.1 O JORNAL O PROGRESSO Parte da contribuição desses profissionais, como já foi explicado, encontra-se na Casa da Memória e nas publicidades do Jornal O Progresso, que revelavam o comércio fotográfico crescente na cidade. A escolha pelo jornal O Progresso se justifica pelo fato do mesmo ter sido utilizado para a divulgação dos nomes de fotógrafos no período pesquisado. Os meios impressos de comunicação tinham e têm um papel social e documental importante na sociedade. Além disso, o jornal foi um dos documentos mais representativo de preservação da memória da cidade, daquela época. São os seus registros do cotidiano que possibilitam compreender o passado. Pontes (2006, p.12) observa que O Progresso, fundado em 1907, teve por objetivo “ divulgar e impulsionar o avanço material e intelectual da cidade”. Na busca por informações sobre a imprensa ponta-grossense, o estudo deparou- se com nomes de jornais que circularam pelo município. São periódicos registrados em livros que tiveram “vida efêmera”. O primeiro jornal registrado foi “O Precursor” que surgiu, em 1892; posteriormente, no ano de 1893 e 1900, o Jornal “Campos Gerais”; em 1898, o “Jornal Clube Pontagrossense” e “Gazeta dos Campos”; em 1903, “O Ponta Grossa”, “Jubileu Operário”, “Luz Essenia” e “O Pigmeu”; e em 1904, “O Ridor” e “O Commercio”; 1907, chega “O Progresso”. (CARDOSO, 1969, p. 216 a 219). Bucholdz (2007, p. 24) explica que os jornais não possuíam uma periodicidade. Surgiam e desapareciam rapidamente. Havia muitas dificuldades financeiras e em relação a estrutura, além de contendas políticas para manter um jornal em operação. Por esta razão, muitos não conseguiram transpor o caráter panfletário. Pontes retrata um pouco desta situação vivida pelos jornais da época: O jornal é o lugar em que acontecimentos, regularidades, relacionamentos, mudanças entram em conflito e, consonância, provocam, registram, interferem. O jornal é capaz de afetar, incitar, causar ações e reações e ao mesmo tempo, ser
  • 197. Arte Comentada Capítulo 16 197 afetado por discursos que permanecem em seu limiar e que lhe propõem escolhas que definirão o resultado de sua produção (PONTES, 2006, p. 17) Aldo Silva, proprietário do jornal O Commercio, segundo Bucholdz (2007, p.09) relatou a Jacob a dificuldade em manter seu estabelecimento. Por este motivo, Aldo ofereceu a um conto de réis a tipografia completa. Este, por sua vez, sendo um homem empreendedor, vislumbrou a oportunidade. E, somado aos equipamentos, que lhe rendeu ainda um - funcionário experiente -, João Antunes foi o gráfico do jornal. Com ajuda de amigos, conseguiu o dinheiro e comprou os maquinários, para então fundar o seu jornal. Assim surge O Progresso, que veio a substituir O Commercio. Ele foi criado em 1907, pelo capitão Jacob Holzmann. Seu processo de produção foi totalmente manual. Com apenas cinco colunas, sem títulos, sem fotos. Os textos seguiam o estilo telegráfico, linguagem pessoal e periodicidade semanal. “Ao iniciarmos hoje na afanada lida jornalística com esse nosso modesto e despretensioso jornal hebdomadário, nesta cidade inquestionavelmente predestinada a um grandioso futuro [...]” (BUCHOLDZ, 2007, p.21-25). O crescimento da cidade foi visível. Paralelamente, o jornal em meio a reformas, seguiu o mesmo rumo. Passou a ser impresso em duas páginas, e três vezes por semana. Em 1911, Jacob e Hugo dos Reis deixaram o jornal. O novo proprietário foi Eliseu Campos Mello, também dono da Companhia Tipográfica Pontagrossense que incorporou O Progresso e o pequeno acervo do Correio dos Campos. Em 14 de novembro de 1912, nasceu um novo jornal que em 1913 troca de nome, passa a se chamar O Diário dos Campos, (circulando até 1990, sofre uma interrupção, voltando a circular em 1999. E que permanece até os dias atuais) seguiu como um jornal diário, “este era o sonho do antigo dono”, como afirma Bucholdz (2007, p. 30-40). Muitos foram os temas tratados pelo jornal. A exemplo de saúde, meio ambiente, recados para familiares, recados por extravios de pertences e documentos, mudança de endereços. A publicidade também fez parte do periódico. Ao constatar nas páginas do periódico anúncios sobre a atividade fotográfica em desenvolvimento em Ponta Grossa. Observou-se que o periódico contribuiu para que essa atividade popularizasse. Foi possível, com os registros em suas páginas, comprovar a existência de empresas de fotografia no período da pesquisa e o nome dos profissionais que tocavam a atividade. A escolha do Jornal e da Casa da Memória para a investigação deu-se pela importância desta última em manter intactos arquivos importantes da cidade e do próprio O Progresso, onde se conseguiu registros sobre a atividade da fotografia e o nome de alguns profissionais que atuaram na área. Humberto (2000, p. 98), trata do valor da imagem ao explicar que por meio da fotografia retém-se um “fragmento do real” o que é fundamental para a melhoria de um lugar. Muitas imagens fotográficas daquela época foram encontradas na Casa de Memória, alguns delas sem nenhuma informação sobre seus respectivos fotógrafos.
  • 198. Arte Comentada Capítulo 16 198 Outros dados foram encontrados em livros de alvarás da Prefeitura, livros de pagamentos de impostos. A pesquisa foi iniciada primeiramente pelo jornal O Progresso. Apesar de ter conhecimento que, neste momento histórico, o mesmo ainda não fazia uso de imagens fotográficas, por outro lado dispunha de informações sobre a atividade, revelada por meio de anúncios. Daí foi possível identificar alguns dos profissionais que atuavam na cidade e que se consagraram na profissão. Apesar de não ser comum, encontrou-se nas páginas do jornal O Progresso (1909, p.2) uma foto, retrato preto e branco, formato 3x4 cm, no ano de 1909. Esse retrato documentava que o “Elixir de Nogueira” do Pharmaceutico Chimico, do senhor João da Silva Silveira, havia curado José Maria Pereira da Silva. Fato este acontecido na cidade de Santos, o qual foi noticiado pelo periódico A Tribuna de Santos, de 1907. Acredita-se ser a primeira foto publicada pelo O Progresso. Este fato chamou muito a atenção. A fotografia e o jornal foram usados para dar credibilidade a cura e ao remédio. Ao mesmo tempo revelava que a fotografia teria futuro e importância nos jornais locais, o que se confirmou nos anos que se seguiram. 4 | A FOTOGRAFIA EM PONTA GROSSA Ao pesquisar as páginas do jornal O Progresso, agora digitalizado pela Casa da Memória em Ponta Grossa (1909 - 2º semestre, 1910 refeito, 1911 e 1912), na busca por fotógrafos e fotografias publicadas no jornal, identificou-se fotógrafos, que utilizaram a publicidade, para se afirmar no comércio de Ponta Grossa. Nessa investigação, verificou-se nomes como Bianchi, Herdace, Frederico Lange e outros profissionais que adotaram a fotografia como atividade profissional. Abaixo, procura- se relacionar alguns deles, conforme arquivos encontrados no Progresso e Casa da Memória. 4.1 Miguel Herdace, “trabalho o mais lindo e perfeito” Como mencionado anteriormente, um dos primeiros fotógrafos encontrados nas páginas do jornal foi Miguel Herdace, em um anúncio publicitário em 12 de junho de 1909, quando o periódico fez referência a sua empresa denominada Photographia. “Para obter retratos, trabalho o mais lindo e perfeito, physionomia verdadeira, artística. Em qualquer tamanho até o ponto natural só no Miguel Herdace, Rua Dr. Collares, Ponta Grossa-Paraná” (O PROGRESSO, 1909, p.2). Herdace seguiu publicando seu trabalho sozinho até 1910. Em 11 de dezembro de 1909 (O PROGRESSO,1909, p.2) Herdace passou a dividir espaço no periódico com a empresa Thommen & Bianchi. Herdace também foi referenciado no Album do Paraná, da época, como o sobrenome Herdage. O estabelecimento, de sua propriedade e da esposa, Anna
  • 199. Arte Comentada Capítulo 16 199 Herdage, “exerceu sua difícil e dedica arte por cinco anos (TRINDADE, 1924/1928.). A empresa funcionava na rua Dr. Collares, nº 01. Foi verificado que o sobrenome Herdace no periódico e Herdage no Álbum, era a mesma pessoa. Neste trabalho não se encontrou imagens fotográficas sobre seus feitos. 4.2 Luis Bianchi, brinquedos, perfumaria, cine e foto A empresa Thommen & Bianchi foi noticiada no Progresso pela primeira vez em 11 de dezembro de 1909 (PROGRESSO, 1909. p.2). O anúncio, na página do jornal, referia-se a um Bazar de Brinquedos. A empresa não se dedicava a fotografia, mas o nome Bianchi passou a ser de grande relevância na fotografia da cidade até os dias atuais. E em 05 de julho de 1910, a empresa de Bianchi trocou o nome para Armarinhos-Brinquedos-perfumarias. Estes dois fotógrafos passaram a disputar os espaços de anúncio do jornal. Percebeu-se a existência de uma concorrência entre as duas empresas em relação à ocupação dos espaços publicitários. Mais tarde, em 06 de outubro, de 1910, a empresa passa a se chamar Bazar Cinematográfico. Situado na rua 15 de novembro, nº 33, esquina com Augusto Ribas. Bianchi também emprestou seu nome a um Atelier de Pintura, em que sua esposa era a proprietária (Atelier de Pintura Bianchi), em 1º de dezembro, 1910 (O PROGRESSO, p. 2). Luis Bianchi passou a atuar como fotógrafo na cidade de Ponta Grossa, oficialmente em 31 de dezembro de 1913, conforme registro em Alvará de número, 714. Seu estabelecimento comercial era situado na Rua Cel. Theodoro Baptista Rozas, (LIVRO 04, 1911-1914, alvará 714). Bicudo (2010, p.20) relatou que Bianchi com suas imagens fotográficas retratou as famílias princesinhas, municípios paranaenses, lojas comerciais, casamentos, igrejas, praças, ruas, grupos musicais, futebol e outros temas. Seu acervo fotográfico foi adquirido em 2001 pela prefeitura e é disponibilizado ao público na Casa da Memória. Por meio de suas imagens e dos demais fotógrafos tornou-se possível conhecer um pouco da história de Ponta Grossa do começo do século 20. É Bianchi o maior acervo fotográfico disponível na Casa da Memória. Muitos pesquisadores usam seus trabalhos para entender o passado e retratar as transformações da cidade. As informações sobre ele e seus cadernos de anotações demonstraram que Bianchi foi uma pessoa que se preocupou com seus registros pessoais e imagéticos. 4.3 Atelier Photographico A Flamula & Irmãos Outro nome importante foi encontrado no jornal, no desenvolvimento da pesquisa. Trata-se do Atelier Photographico A Flamula & Irmãos, de propriedade de Alfredo Flamuler, registrado nas páginas do Jornal, em 09 de agosto de 1910 (O
  • 200. Arte Comentada Capítulo 16 200 PROGRESSSO, 2010, p.02). Neste momento, a disputa pelo espaço publicitário do periódico é entre o Atelier de pintura Bianchi e A Flamula. Em 20 de março de 1913, A Flamula & Irmãos foi transferida para o Sr. Edmundo Canto (LIVRO 04,1911-1914, alvará 656, p. 27). Porém, não foram encontrados registros sobre as atividades dessa empresa, com a nova administração. Há registros depagamentodeimpostosdeEdmundoCanto,photographo,em1914(LIVRO53,p.38). Também foi possível encontrar uma fotografia dele em arquivos da Casa da Memória, datada de 1915. Nela consta Informação impressa, com a seguinte inscrição “Atalipio Macedo Pai do Dr. Fulton, Foto A Flamula e Cia”, (FOTOGRAFIA, nº, A.01601.001). 4.4 José Ruhland Photograpia José Ruhland foi o primeiro fotógrafo a ser identificado em atividade profissional em Ponta Grossa, janeiro de 1901. Seu estabelecimento denominado de José Ruhlannd e Companhia, era situado na Rua Quinze de Novembro, (LIVRO 01, 1899/1904, alvará nº40. p. 10). Porém, não foram encontradas imagens fotográficas deste profissional. Outra informação encontrada do fotógrafo José Rohland Photographia, foi em 30 de setembro 1905. Ele havia pago seus impostos à prefeitura, em função das atividades que exercia no Município (LIVRO 1901, nº45, p.23). 4.5 Frederico Lange de Secos e Molhados à Fotografia Outra figura importante do mundo fotográfico de Ponta Grossa e que fez história na cidade foi Rodolfo Carlos Frederico Lange, proprietário de uma empresa de Secos e Molhados, localizada à Rua 15 de novembro, nº 17. Foi dono do Atelier Fotográfico, atendendo a clientela nas horas vagas. Fez registros fotográficos importantes das obras da Estrada de Ferro de Ponta Grossa, produziu muitas fotografias do Paraná, do Brasil e mesmo do exterior. (LANGE, R, 2012, p. 123-124). Foram vários os registros fotográficos encontrados com a sua assinatura, a exemplo da foto do “Hotel Palermo, atual Quartel General do Exército, localizado ao lado, naquela época, do 1º Correio de Ponta Grossa”, fotografia produzida em 1905. (FOTOGRAFIA, nº, 008.01.002). Ao analisar algumas de suas imagens fotográficas, a pesquisa observou que em muitos momentos é possível contar parte da história da cidade por meio dessas imagens. Os fotógrafos vivenciaram a construção das primeiras avenidas, prédios da cidade, monumentos públicos, praças e outros equipamentos municipais. Frederico Lange também registrou um fato grave, ocorrido Ponta Grossa: a chuva de pedra de 11 de setembro de 1906. (LANGE, 1998, p. 288). A partir dessa imagem, teve-se certeza que isso aconteceu de fato, o que confirma o valor documental de uma imagem.
  • 201. Arte Comentada Capítulo 16 201 4.6 A. Silva e Filhos da Typographia para Fotografia Em um Livro de Alvará, também foi localizado a empresa denominada A. Silva e Filhos. Uma Oficina Typographica (LIVRO1899/1904. Alvará nº 76, p.27). Aldo Silva foi proprietário do jornal O Commercio, (LIVRO 1905/46, p. 37-38), situada à Rua Santana. A empresa foi identificada, pelo pagamento do imposto municipal, como de Litographia - encadernação, Tipographia; ou fotografia, em 1º de fevereiro de 1905. Registros dos nomes e datas de muitos desses profissionais não foram encontrados no periódico ou em bibliografias. Não foi possível encontrar também relatos desses fotógrafos e de suas obras. Encontrou-se sim algumas imagens que ora eram descritas manualmente, o local (cidade) em cima da foto ou no verso, mas raramente o nome do estabelecimento e do profissional eram mencionados. A exceção foi Holzmann (1966, p. 85- 86) em um relato publicado em seu livro. O documento mostra as rivalidades entre as bandas Euterpe e Lira da região princesina, retratadas por ele em 1905. Tratava-se de um flagrante capturado na estação ferroviária dacidadedeCastro.ForamfotografadososcomponentesdaBandacastrense,Euterpe, comandada por Benedito Alves Pereira, que estavam muito bem fardados juntamente com os componentes da Banda Lira dos Campos, ponta-grossense, comandada por Jacob Holzmann, estes um grupo de paisanos. Os dois mestres, conforme relatos, também fizeram parte da imagem fotográfica. O autor descreveu o material fotográfico, “a foto, copiada em cartão postal, foi o veículo de boas-festas pela entrada do ano de 1906, distribuído pelo Beneditinho”. Nada constava sobre o fotógrafo. Isso, reforça que não se tinha o cuidado e atenção com o autor da fotografia, dando-se destaque na época só ao conteúdo da imagem. Em outras ocasiões nem isso era mencionado. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a realização deste estudo foi necessário ir a Casa da Memória por diversas vezes, no período de 2015 e 2016. A pesquisa foi realizada também em documentos da Prefeitura de Ponta Grossa, bibliografias, periódicos, artigos, sites. Observou que muitos dos profissionais relacionados neste trabalho deixaram poucos registros sobre sua atuação no município. Outros continuam anônimos pelo fato de, naquela época, não se ter preocupação com a autoria das fotos, preocupação que existe nos dias de hoje. O que se pode afirmar é que, mesmo em fase inicial, a fotografia na cidade de Ponta Grossa foi importante para a história e memória do Município, revelando o surgimento de uma nova atividade e, o mais importante, cenas das pessoas, prédios e o cotidiano. Se as imagens fotográficas fazem as pessoas pensar, como afirma Humberto (2000, p. 47), também é verdade que elas são importantes registros que os fotógrafos levam as gerações futuras. Esses profissionais que iniciaram a fotografia em Ponta
  • 202. Arte Comentada Capítulo 16 202 Grossa cristalizaram momentos importantes da cidade. Na análise que se fez dos documentos, em busca das empresas e dos fotógrafos que iniciaram a fotografia em Ponta Grossa, percebeu-se igualmente a importância da Casa da Memória e do Jornal o Progresso para o resgate da história da cidade. O registro fotográfico das ruas e avenidas, das casas comerciais, dos casamentos e festejos, das famílias e do cotidiano de Ponta Grossa fazem com que se compreenda aspectos da história e do desenvolvimento da região, ou seja, as raízes do que é hoje Ponta Grossa. Kossoy (2001, p. 45) faz referência a imagens do passado quando afirma que “as vicissitudes por que se passou, as mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que despertou […] são portanto, a fotografia como recorte, o fotógrafo um acréscimo de interpretação, o fotografado e o observador [...] elementos que simbolicamente ou não, representaram a ação contida na imagem” e que revelam um tempo. Finaliza-se a pesquisa com as palavras de Bresson (2004, p. 11) fotografar é por “na mesma linha da mira cabeça o olho e o coração”. REFERÊNCIAS BICUDO, Fabricio. Nos Trilhos e Memórias do Passado. O portal, Ponta Grossa, nº43, p.20, abril, 2010. BRESSON, Henri Cartier. O imaginário segundo a natureza. Barcelona, Espanha: Editorial Gustavo Gili, 2004. BUCHOLDZ, Alessandra Perrinchelli. Diário dos Campos: memórias de um jornal centenário. Ponta Grossa: UEPG,2007. CARDOSO, Rosy de Sá, et al. História do Paraná: breves notas sobre a Imprensa do Paraná. Curitiba: Gráfica Editora Paraná Cultural Ltda. 3ed. 1969. CHAVES, Niltonci Batista; WOSNIAK, Rosângela Zulian; VEIGA, Zaclis. Visões de Ponta Grossa: Mosteiro da Ressurreição, 25 anos. Curitiba: edição bilíngue. Pós Escrito, 2006. CHAVES, Niltonci Batista. História e cidade: cotidiano, cultura e sociabilidade, in. História, Arte e Cultura. Ponta Grossa: UEPG/NUTEAD,2009. v. II. FERNANDES, Josué Corrêa. Das colinas do pitangui… Ponta Grossa: Editora Gráfica Planeta Ltda. 2003. HOLZMANN, Epaminondas. Cinco histórias convergentes. Curitiba: Ed. Curitiba, 1966. HUMBERTO, Luis. Fotografia, a poética do banal. Brasília Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado.2000. KOSSOY, Boris, Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial,2001. LANGE, Francisco Lothar Paulo. Os Campos Gerais e sua princesa. Curitiba: COPEL, 1998. LANGE, FREDERICO. Fotografias centenárias do Paraná e de outros locais. Curitiba: Corgraf, 2012.
  • 203. Arte Comentada Capítulo 16 203 LIMA, Ivan, Fotojornalismo brasileiro: realidade e linguagem. Rio de Janeiro: Fotografia Brasileira, 1989. MIKAELLI, Aldo. Transformações de uma cidade: Ponta Grossa-185 anos. Ponta Grossa: Editora Gráfica Planeta Ltda., 2008. OLIVEIRA, Itacil Ferreira de. Álbum de Ponta Grossa: Gente nossa. Ponta Grossa: 1988. v.3. O PROGRESSO. Ponta Grossa: João Dutra. 1907-1912. Digitalizado pela Casa da Memória PONTES, Felipe Simão. Nuances de uma análise histórica do jornalismo: homens, mulheres e a cidade nas páginas do Diário dos Campos (1910-1923). 2006.217fs. Monografia (Comunicação Social-Jornalismo). Universidade Estadual de Ponta Grossa, UEPG. 2006. TRINDADE, J.P. Álbum do Paraná. 1924-1928.
  • 204. Arte Comentada 204Sobre a Organizadora SOBRE A ORGANIZADORA JEANINE MAFRA MIGLIORINI Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003) e em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2007), Especialista em História,Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Mestre em Gestão do Território pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora do ensino superior na Unicesumar eprofissionalliberaldaarquitetura.TemexperiêncianaáreadeArquiteturaeUrbanismo, com ênfase em Projeto de Arquitetura. Explora principalmente os temas: arquitetura modernista, história da arquitetura, projetos de arquitetura, dança, preservação, paisagem modernista. Cursando Gastronomia na Unicesumar e pós graduações em Projeto de Interiores; Docência no Ensino Superior: Tecnologias Educacionais e Inovação e Design Thinking e Criatividade nas Organizações.